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    Roberto Gervitz

    Diretor, roteirista, montador e compositor

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    Um vírus no cinema

    Datafolha mostra que o cinema perdeu 62% de espectadores em comparação com os números pré-pandemia. Os números impressionam, mas não surpreendem

    (Foto: Divulgação)

    Por Roberto Gervitz
    Foto do perfil: Bob Wolfenson

    A epidemia de Covid-19 foi um trauma brutal, o maior de nossa história para o qual mal temos coragem de olhar, queremos mais é esquecer.  Graças a um governo criminoso que incentivou o contágio, brandindo uma teoria absurda (imunidade de rebanho) e propagandeando remédios sabidamente ineficazes. Suas consequências vão se fazer sentir durante muito tempo. O medo de morrer se espalhou por nossa sociedade, na qual cada indivíduo se viu só, com seu corpo, diante de uma doença terrível. Mas assim como nunca acreditei nas profecias de que a pandemia transformaria o mundo, pois estávamos obrigados a parar (somente as classes mais favorecidas, vale dizer) para repensar os nossos caminhos, eu creio que buscar apenas na pandemia as razões pelas transformações nos hábitos culturais é não olhar para além da superfície de processos que se desenvolvem há muitos anos. 

    1-) Os dados divulgados pela pesquisa Datafolha segundo os quais o cinema perdeu 62% de espectadores em comparação com os números pré-pandemia impressionam, mas não surpreendem. E por diversos motivos: 

    1. Os filmes vieram perdendo público a olhos vistos; primeiro, devido a transformações profundas ocorridas no mercado e na tecnologia ao longo dos últimos 40 anos: 
    2. O advento das plataformas de streaming que se se seguiu ao surgimento de diversas mídias para se assistir a um filme em casa, como o VHS, depois os DVDs e ainda os Blu-ray (s). 
    3. Há ainda o surgimento de equipamentos caseiros de grande qualidade de projeção, inclusive em tela grande. Hoje há poucos motivos de ordem técnica que justifiquem que alguém saia de casa para ir ao cinema que por vezes tem qualidade de projeção pior do que a caseira. 

    A tendência que mais se desenha é que o cinema passe a ser um local para os chamados filmes-evento, cheios de efeitos especiais e ação, voltando à sua origem de ser uma das grandes atrações num parque de diversões. Entretenimento puro e espetacular. 

    1. Há também as questões de ordem econômica como o preço dos ingressos, somado ao custo dos deslocamentos e ainda o consumo de alimentos como pipocas e refrigerantes. O programa sai caro. O consumidor de classe média-média para baixo faz as contas desse custo e vai cada vez menos ao cinema, a não ser justamente para os filmes-evento. 
    2. Há ainda as questões relativas às mazelas urbanas como as horas que as pessoas que trabalham passam no trânsito e no transporte público que, somadas ao tempo de trabalho são extenuantes, ainda mais nas grandes cidades em que a vida cultural sempre foi mais intensa. 
    3. Há porém, uma série de transformações de caráter cultural e social, para mim as mais importantes, que poderiam ser sintetizadas em nosso Zeitegeist, o espírito do nosso tempo.
    4. Eu cresci em meio à ditadura militar, em um mundo fechado e claustrofóbico para os jovens. O cinema naquele momento era uma janela privilegiada para o mundo, o oxigênio necessário para a alma, um apelo à inventividade, fonte de entendimento de nossos conflitos mais íntimos, um espaço privilegiado em que nos defrontávamos com respostas e questionamentos no interior do mundo livre do imaginário. Mas tudo isso, mesmo em um mundo sombrio, era movido pela esperança e a crença humanista de um mundo melhor. Havia esperança e a afirmação da necessidade da arte era a promessa de que o ser humano podia ser melhor. E a arte retroalimentava as nossas utopias. Eu creio que fica muito difícil existir arte sem uma esperança profunda na humanidade. A necessidade da arte tem a ver com a esperança, mesmo que inconsciente. 

    Eu não sei quando os frequentadores de museus, cinemas, salas de teatro, concertos - os cidadãos,  passaram a ser consumidores de   teatro, de cinema, de música e museus. Hoje mais do que nunca,  somos coisas que consomem coisas, em um tecido social esgarçado e um sentimento de pertencimento que não mais existe. Hoje, somos indivíduos isolados em guerra desesperada para vencer. Ver um filme, uma peça, um concerto, são atos coletivos, mas hoje o   sentimento é que o outro atrapalha e ameaça. A arte virou consumo,  só vale quando “agrega valor”. Qual a função da arte nos nossos  dias? É só a de manter a nossa “saúde mental”? O que é exatamente saúde mental, o que entendemos por isso?

    Os filmes que nos formavam e nos faziam mergulhar em outros mundos, vive-los e fazer da nossa vida uma experiência mais rica, hoje são casos raros, fracassos de bilheteria. Hoje quem sabe nos ajudem a esquecer o que é estar vivo nesse duro momento histórico. 

    O tempo virou algo que nos agonia porque nunca o alcançamos, vivemos “correndo atrás”. Não somos mais capazes de nos entregar a um filme por duas horas. Talvez por isso, a moçada hoje assista a um filme com a velocidade alterada para o dobro no celulares. Não há mais paciência para ver e ouvir, parecemos estar   esgotados. Do quê?

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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