Uma receita do inferno em sociedade
Paulo Moreira Leite: Remuneração estratosférica de executivos do mercado financeiro retrata desigualdade com efeitos políticos óbvios antes e depois da eleição
Por Paulo Moreira Leite
Com a frieza dos jornais econômicos, o Valor Econômico acaba de divulgar a remuneração prevista dos diretores dos grandes bancos brasileiros.
Embora a desigualdade seja um traço conhecido da sociedade brasileira desde tempos coloniais, nem por isso os dados deixam de ser chocantes.
Descobre-se que oito diretores do Nubank, que em 2014 lançou seu primeiro produto -- um cartão de crédito internacional -- irão dividir uma bolada de R$ 804 milhões ao longo de 2022. Em média, cada um terá direito a R$ 100 milhões por ano, ou R$ 8,3 milhões por mês. (No Brasil de Bolsonaro, essa quantia equivale ao pagamento do auxilio emergencial para 20 000 famílias/mês).
No Itaú, aprovou-se uma bolada de R$ 425 milhões para seus diretores -- o que dá R$ 17 milhões por ano para cada um, ou R$ 1,4 milhão por mês. No Santander, a conta fecha em 850 000 mensais e, no Bradesco, 700 000 por mês. No Banco do Brasil, os diretores recebem 200 000/mês em média, valor que, em comparação com o setor privado, permite questionar as frequentes denúncias de privilégios como exclusividade do setor público.
Num país onde o salário mínimo é de R$ 1212,00 (ou 0,0001515 Nubank), a média de um trabalhador do setor financeiro fica em R$ 3000 (0,000217647058 de um executivo do Itaú). Já um um professor -- salário médio 5000 reais --recebe 0,005882352941 daquilo que embolsam os diretores do Santander.
Os exemplos matemáticos são eloquentes, definitivos, e cada um tem o direito de fazer novos exercícios matemáticos com nossa desigualdade social. É sempre instrutivo, numa sociedade onde a desigualdade é um processo histórico permanente e cumulativo, que atravessou inúmeras gerações e se reconstruiu em todas formações históricas.
E assim sabemos o que aconteceu -- a construção de uma das mais desiguais sociedades do planeta, que atualiza e reforça formas de hierarquia social e opressão, até agora incapaz de livrar-se definitivamente de nenhuma delas.
Mesmo projetos parciais, limitados, como os direitos dos trabalhadores ensaiados nos anos 40, a industrialização iniciada nos anos 50, o progresso social sonhado pela Carta de 1988, os vários programas progressistas dos anos Lula e Dilma, acabam enfraquecidos, reformados e até revogados. Quando não foram abolidos em reformas constitucionais espúrias, acabaram abandonados pela vista grossa de autoridades irresponsáveis ou apenas corruptas.
Este é o país que, dentro de seis meses, irá escolher um novo presidente da República. Avançamos e recuamos várias vezes.
Pela sua experiência e sua história, Lula caminha para conquistar uma oportunidade única de retomada de um processo histórico.
A crueldade de um país onde a classe dominante está habituada a oferecer migalhas estatísticas à maioria, traduz uma conta que não fecha. Aquilo que se chama andar de cima terá de ceder -- a alternativa será marasmo e retrocesso, ou mesmo ataques à democracia.
Caberá a Lula liderar brasileiras e brasileiros numa rara chance de mudança oferecida pela história, liderando 200 milhões para a saída de nosso inferno social.
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