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Francine Oliveira

Tradutora e revisora, pesquisadora sobre a extrema direita

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Uma viagem pela ideologia de gênero que ajudou a eleger Jair Bolsonaro

O caso de Espino é bastante curioso, pois ele acredita em “ideologia de gênero”, que é uma teoria da conspiração, mas, ao mesmo tempo, a diferencia da identidade de gênero, mesmo tendo uma concepção equivocada desta última

(Foto: Reprodução)

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O vereador Diego Espino (PSL-MG) se exaltou durante discurso na quinta-feira, 28, na Câmara de Divinópolis a ponto de desmaiar. Sua irritação se deu por ter sido associado à “ideologia de gênero”.

Espino, curiosamente, é autor de um projeto de lei municipal pelo reconhecimento do uso do nome social de pessoas trans. Segundo o parlamentar, quando a pessoa tem uma “opção sexual” diferente e “escolhe” viver como alguém de outro gênero, temos a obrigação de respeitar.

Apesar de seu discurso e de suas ideias obsoletas, equivocadas e que mostram um entendimento pífio a respeito de pessoas trans, precisamos reconhecer que seu projeto seria benéfico a esse segmento da população.

Em reação ao referido projeto do vereador, como já seria de se esperar, conservadores e companheiros de partido passaram a divulgar uma montagem com a foto de Espino diante de uma bandeira do movimento LGBTI+, acusando-o de apoiar a “ideologia de gênero”.

Antes de desmaiar, o vereador afirmou ser contrário à tal ideologia e a seu ensino nas escolas, mas que conhece pessoas trans e vê seu sofrimento por não terem respeito da sociedade. “Eu nunca fui a favor de ideologia de gênero, nunca fui e nunca vou ser. Isso é identidade de gênero. A pessoa pode escolher o que quiser ser, e vocês têm que respeitar!” – exclamou.

O texto do Projeto de Lei nº CM 206/2021 prevê que os registros institucionais tenham o nome social da pessoa trans e travesti em destaque, acompanhado do “nome civil”, visando evitar constrangimentos.

O caso de Espino é bastante curioso, pois ele acredita em “ideologia de gênero”, que é uma teoria da conspiração, mas, ao mesmo tempo, a diferencia da identidade de gênero, mesmo tendo uma concepção equivocada desta última.

A questão da “ideologia de gênero” vem assombrando conservadores há algum tempo, graças a um esforço que começou com a Igreja Católica.

Nascido do ativismo católico, o temor ao “gênero” foi elaborado como forma de se voltar contra o movimento feminista e a defesa de direitos reprodutivos e sexuais. Segundo ativistas católicas envolvidas no debate promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU), na década de 1990, o uso da palavra “gênero” sem uma definição precisa poderia ter desdobramentos perigosos.

Dale O’Leary, jornalista, escritora e ativista católica escreveu um artigo em 1995 no qual alertava para uma suposta “ameaça epistemológica” com a adoção do termo “gênero” durante o comitê preparatório para a Conferência Internacional da Mulher em Pequim, no mesmo ano. Essa Conferência estabeleceu uma Plataforma de Ação para os países signatários da ONU, pela década seguinte, referente à saúde das mulheres e jovens. Entre as demandas, entraram questões como direitos reprodutivos e aborto seguro.

No texto, com um alarmismo que vai se tornar característico do discurso conservador antigênero, O’Leary sugere que a defesa de que não haveria as essências feminina e masculina — na forma biológica da fêmea e do macho — poderia levar ao questionamento da sexualidade humana como algo natural. A consequência disso seria a desconstrução dos papéis da mulher e do homem na reprodução.

Os movimentos ligados à Igreja Católica alegam se tratar de uma tentativa de impor uma agenda cultural que nega a biologia e as leis divinas. Essa narrativa se desenvolve a ponto de o Vaticano passar a denunciar o “gênero” como uma estratégia ligada à “doutrinação homossexual”, com o objetivo de disseminar um controle populacional por meio da não reprodução sexual. Essa agenda, juntamente com a defesa do aborto, seria parte de uma “cultura da morte”.

Em 2008, o então Papa Bento XVI, Joseph Ratzinger, fez um discurso para Cúria Romana antes do Natal, em que falou dos perigos da palavra “gênero”, que estaria promovendo uma emancipação do ser humano dos preceitos de Deus e da verdade.

Em 2011, foi publicado no Brasil o livro Ideologia de gênero: O neototalitarismo e a morte da família, do advogado argentino Jorge Scala — que atualmente está envolvido na política argentina e é apoiador de Javier Milei. No mesmo tom alarmista de O’Leary, o autor a considera “a ideologia mais radical da história”, comparando-a ao marxismo e ao nazismo, “utilizando a propaganda para mudar as mentes e os corações dos homens” (SCALA, 2011, p. 11).

Scala afirma que o objetivo das pautas de gênero seria o desmonte do modelo tradicional de família e a imposição de um sistema totalitário que seria apoiado pela ONU e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Em 2012, outro livro publicado no Brasil e que influenciou o ideário conservador em torno da ideologia de gênero foi A estratégia: O plano dos homossexuais para transformar a sociedade, do Reverendo Louis P. Sheldon. Essa obra basicamente moldou o discurso neopentecostal que hoje vemos ser repetido à exaustão por lideranças evangélicas como Silas Malafaia e Damares Alves.

Vale a pena lembrar que em 2011 teve início a polêmica do “kit gay”, na esteira do debate em torno do Projeto de Lei 122/2006, pela tipificação de crimes por discriminação de gênero, sexo, identidade de gênero ou orientação sexual.

Os embates renderam declarações como a proferida pelo então senador Magno Malta durante a Marcha pela Família: “Se Deus criou macho e fêmea, não vai ser o Senado que vai criar um terceiro sexo com uma lei”. Entre os políticos que participaram da Marcha pela Família estava, obviamente, o então deputado federal Jair Bolsonaro, que continua a capitalizar em cima dessa guerra moral.

Além dos discursos apocalípticos voltados para a disseminação do pânico entre a população — na forma de ameaças como a de desconstrução da família cristã, de cooptação das crianças para se tornarem homossexuais e até de defesa do incesto e da legalização da pedofilia –, as campanhas difamatórias tiveram um importante papel na consolidação dos movimentos feministas e LGBT+ como inimigos da “moral e dos bons costumes”.

Até hoje, vemos montagens e vídeos editados de modo a distorcer as falas de ativistas, pesquisadores/as, professores/as, jornalistas, entre outras pessoas, a fim de reforçar a existência dessa tal conspiração. Esse material é disseminado pelas redes sociais, em especial pelo WhatsApp e por grupos no Facebook que reúnem conservadores e apoiadores do presidente Bolsonaro.

Mais importante do que conhecer as origens dessa narrativa conspiratória é compreender que ela teve um papel fundamental na aliança entre católicos, evangélicos e conservadores que, em 2018, ajudou a eleger Jair Bolsonaro à presidência. Não à toa, em seu discurso de posse, o presidente conclamou: “Vamos unir o povo, valorizar a família, respeitar as religiões e nossa tradição judaico-cristã, combater a ideologia de gênero, conservando nossos valores”. Para liderar o combate, Damares Alves foi nomeada como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Como pastora, Damares Alves se mostrava extremamente dedicada a provocar o pânico moral entre fiéis, através de declarações polêmicas que, apesar de infundadas, sempre foram muito eficientes em despertar a preocupação de pais e mães temerosos pela integridade e inocência das crianças.

Um bom exemplo disso pode ser visto em uma entrevista de 2016, em que Alves diz que a infância nunca havia corrido tantos riscos, alegando que, nas escolas, alunos estariam sendo ensinados, a partir dos três anos de idade, que poderiam escolher entre setenta identidades de gênero.

Em uma palestra ministrada em 2013, Damares Alves mostra um livro de educação sexual direcionado a adolescentes, intitulado Aparelho sexual & CIA (do cartunista suíço Zep e da escritora francesa Hélène Bruller, com tradução para o português de 2007), dizendo que a obra teria como objetivo ensinar crianças de dois e três anos de idade a fazer sexo. Esse foi o mesmo livro usado repetidamente por Bolsonaro em sua campanha presidencial para falar do “kit gay”, embora a publicação nunca tenha sido parte do material didático das escolas brasileiras.

No Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil tem se alinhado a países autoritários e conhecidos pela repressão aos direitos das mulheres, como Arábia Saudita, Iraque, Qatar e Egito. Em 2019, o país apoiou a proposta do Paquistão de eliminar a pauta da educação sexual da resolução da ONU sobre o direito à saúde sexual e reprodutiva. No mesmo ano, o Itamaraty emitiu instruções a diplomatas brasileiros, orientando a defenderem a noção de que o conceito de gênero deve estar unicamente baseado no sexo biológico.

Entre a extrema direita europeia, a questão da ideologia de gênero também está entre as pautas, como parte de um esforço para minar os direitos de pessoas trans. Em 2017, a justiça espanhola proibiu um ônibus fretado pelo grupo ultracatólico HazteOir, contendo mensagem transfóbica, de circular. Nas laterais do veículo era possível ler “Meninos têm pênis. Meninas têm vulva. Não se deixe enganar. Se você nasce homem, é homem. Se é mulher, continua sendo mulher”. Um dos parceiros e consultores da HazteOir? Jorge Scala, que chegou a dar uma palestra para a organização em 2011, promovendo o lançamento de seu livro.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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