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    Emiliano José

    Jornalista e escritor

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    Ustra, Fleury e Adyr Fiuza de Castro: Noite de São Bartolomeu na Bahia

    Neste 26 de junho, Dia Internacional de Combate à Tortura, o jornalista Emiliano José relata os horrores da Operação Acarajé: "Quase 50 pessoas presas num sítio clandestino denominado Fazendinha, homens e mulheres, por 10 dias, dormindo ao relento, algemadas e unidas por uma corda, sob o comando direto de Carlos Alberto Brilhante Ustra e Sérgio Paranhos Fleury"

    (Foto: Arquivo)

    Por Emiliano José

    Quase 50 pessoas presas num sítio clandestino denominado Fazendinha, homens e mulheres, por 10 dias, dormindo ao relento, algemadas e unidas por uma corda, sob o comando direto de Carlos Alberto Brilhante Ustra e Sérgio Paranhos Fleury, torturadas à base de muita porrada e muito choque elétrico, decorrente da chamada “Operação Acarajé”, destinada a desmontar o PCB na Bahia, parte da “Operação Radar”, ofensiva da ditadura contra o PCB em todo o País entre 1973 e 1975.

    Isso aconteceu entre o início e meados de julho de 1975, 46 anos completados agora, e além da presença daqueles dois célebres torturadores e dirigentes do aparato repressivo no País, Ustra e Fleury, contava, ainda, na direção de toda a operação com o general Adyr Fiuza de Castro, comandante da 6ª Região Militar, em Salvador, signatário do documento do Ministério do Exército, mais especificamente da 2ª Seção da 6ª Região Militar, contendo a visão do Exército sobre os episódios de terror e tortura daqueles dias. 

    O DOI-CODI, na operação, prendeu ou chamou para prestar depoimento, em torno de 300 pessoas, e levou 48 delas para a Fazendinha, um terreno localizado no município de Alagoinhas, a 126 quilômetros de Salvador, onde estava sendo erguido em fase inicial um quartel do Exército, hoje 2ª Companhia de Suprimentos. Os levados para a tortura eram considerados, em princípio, dirigentes do PCB, a maioria homens, mas também algumas mulheres, e 4 de julho foi o dia do início do terror, quando começaram a ser recambiados todos encapuzados de Salvador para a “Central de Interrogatórios” – eufemismo para centro de torturas. Entre as mulheres, na Fazendinha, estavam Lúcia Carvalho, Ieda Santana e Maria Nazaré Lima, ao menos as que consegui confirmar. 

    No documento assinado pelo general Fiuza de Castro, informa-se: a chamada Central de Capturas funcionou no próprio Quartel General, na Mouraria, certamente sob o comando direto do comandante da 6ª Região Militar. Dali, partiram as diversas equipes para efetuar as prisões. Havia um Posto de Coleta e Triagem, observem o nome, localizado “nas futuras instalações do DOI”, e não se informa onde seriam tais instalações. Decidiu-se montar o centro de torturas na Fazendinha, em Alagoinhas, por Salvador não dispor de local apropriado para tanto, de acordo com o documento. Talvez por conta do número de pessoas.

    Esse centro de torturas talvez tenha sido o mais clandestino de todos os locais empregados pela repressão na Bahia. O mais célebre, Forte do Barbalho. Secundando-o, Quartel de Amaralina, Quartel dos Fuzileiros Navais, Quartel do Forte de São Pedro, Quartel dos Fuzileiros Navais, Quartel dos Aflitos, Quartel dos Dendezeiros, todos em Salvador. Havia, ainda, o da Mouraria, mas como era Quartel General, parece, evitava-se a tortura ali, ao menos a violenta. Antes, nos idos de 1964, o 19º BC, no bairro do Cabula, mais como local de prisão provisória que de tortura. A Fazendinha, ao que se sabe, foi utilizada apenas naquela ocasião e restou desconhecida, pouco falada.

    A “Operação Acarajé” contou com a participação de 110 agentes, incluindo um médico, e necessitou de 32 veículos. Consumiu 3361 litros de gasolina. São dados do documento do Exército. 

    Na Fazendinha, 10 dias de terror: o veterano dirigente comunista Luís Contreiras chegou a ter costelas quebradas, Carlos Marighella e Marco Antônio Rocha Medeiros, também muito torturados, como os demais, todos algemados e unidos como “corda de caranguejos”, uma corda amarrada a uma pilastra juntando todos, dormindo ao relento, quando conseguiam. Medeiros fez chegar às minhas mãos recentemente esse documento do Exército, confirmando muito do publicado por mim no “Galeria F : Lembranças do Mar Cinzento IV”, onde ele próprio é um dos protagonistas.

    Depoimentos de Carlos Marighella, filho do velho comunista, e de Marco Antônio Rocha Medeiros, revelam: Ustra fez questão de falar, discursar, mostrar a cara, na Fazendinha. No primeiro dia, avisou:

    - Escutem bem o que vou dizer: vocês estão aqui porque o presidente Geisel resolveu virar a mesa. Os principais corruptos e  comunistas estão todos presos. Esta será a Noite de São Bartolomeu. 

    Passados dez dias de torturas, os presos sendo arrumados para voltar pra Salvador, pede para os policiais tirarem as vendas e os capuzes dos presos, e faz um discurso:

    - Estou indo embora. Sei que não vão renunciar à ideologia comunista. Mas, quero fazer uma advertência: toda vez que vocês voltarem a se organizar, eu voltarei. E voltarei porque o presidente Geisel não aceita o comunismo e nem a corrupção.

    Tinha certeza da impunidade.

    Disse mais:

    - Vocês sabem: serão julgados pela Justiça Militar. Sabem também que as penas de vocês já estão previamente definidas por mim.

    Voltando ao documento do Exército: a data escolhida para desencadear a operação foi bem pensada. Pesou na escolha o fato de o Legislativo encontrar-se em recesso, estudantes em férias, e a data coincidir com o fim de semana, dia 4 de julho era uma sexta-feira, e coincidir também com o término das comemorações do 2 de Julho. O momento era propício, impedia ou dificultava reações.

    A avaliação das repercussões da operação na opinião pública é fantasiosa, dadas como positivas. Ao contrário, uma intensa mobilização da sociedade civil condenou a repressão. Dezenas de entidades se insurgiram, abaixo-assinados com as presenças de personalidades e intelectuais, entre os quais Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, intervenção direta do arcebispo de Salvador e Primaz do Brasil, dom Avelar Brandão Vilela. 

    Um ano depois, julho de 1976, 14 daqueles presos foram condenados pela Auditoria da 6ª Região Militar, grande parte dirigentes do PCB. Eram o vereador do MDB, Sérgio Santana e seu irmão Marcelo Santana, da Ala Jovem do MDB; o funcionário da FAO, Heitor Casaes e Silva; o vice-presidente do Clube de Engenharia da Bahia e veterano dirigente do PCB, Luís Contreiras de Almeida; o também diretor do Clube de Engenharia da Bahia, Marco Antônio Rocha Medeiros; os então operários Carlos Marighella, Sebastião Amaral do Couto e José Ivan Dantas Pugliesi; o professor de Física da Universidade Federal da Bahia, Roberto Argolo; os economistas Albérico Bouzon e Maria Lúcia de Carvalho; os assessores do Departamento Estadual de Estradas de Rodagem da Bahia (Derba), Winston Carvalho e  Ieda Santana e o relojoeiro de profissão, Paulino Vieira, tradicional dirigente do PCB. Penas entre dois e cinco anos. 

    A ditadura ainda tinha força para isso. Na Operação Radar, dez dirigentes do PCB foram assassinados. A ditadura continuava a matar, tal e qual prometera Ernesto Geisel, o ditador da distensão lenta e gradual. Só desapareceria, deixando rastros, em 1985. Os rastros ainda nos incomodam, muito. 

    Não custa lembrar: o dia 26 de Junho é o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura, estabelecido pela ONU em 1997, como marco da assinatura da Convenção contra a Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, firmada em 26 de junho de 1987. Por tudo, a luta continua. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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