Venezuela — aliança militar-policial-popular
Governar com uma “aliança militar-policial-popular” não investe nenhum governo de legitimidade
Não fui eu que disse, foi o presidente Nicolás Maduro que classificou esta estranha aliança, onde Estado e sociedade, sociedade civil e sociedade política, não são separadas pelo perímetro da lei. Ele falou para o mundo que a sua aliança venceria qualquer contenda contra a aliança da direita, do conservadorismo tradicional, da centro-direita, da extrema direita, parte dela organizada com bandos sabidamente golpistas — sempre atuantes na Venezuela — (venceria) porque seu Governo era resultado de uma aliança militar-policial-popular, de caráter nacional e anti-imperialista, para construir um regime socialista na Venezuela.
Socialismo a parte, se tivéssemos alguma dúvida sobre se o confronto na Venezuela era entre dois blocos políticos indiferentes à democracia ancorada num Estado de Direito, esta dúvida terminaria ali, com estas declarações de Nicolás Maduro. A declaração é, todavia, a base sobre a qual se pode evitar uma guerra civil na Venezuela, com a verificação independente dos seus resultados e uma auditagem nos seus mecanismos de proteção às fraudes. Pelo histórico do conflito, as duas partes podem ter fraudado ou tentado fraudar os resultados depois de uma revolução popular, como se pode deduzir do que ocorreu na Revolução Sandinista da Nicarágua.
Faço esta premissa como ponto de partida de um raciocínio político de fundo, porque a defesa da democracia sem adjetivos de despistes — que garanta a rotatividade no poder, baseada em eleições periódicas com resultados verificáveis – é a barreira mais eficaz para arquivar tanto o caudilhismo militar-policial, como a besta-fera do nazi-fascismo, em alta em todo o globo.
Afirmo isso por dois motivos: primeiro, porque a depender da situação da economia e da política global, que transita pelo mercado da mídia tradicional, não se criarão condições suficientes de convivência democrática, que excluam a possibilidade da extrema direita chegar legalmente ao poder; e, segundo, porque as classes médias altas serão majoritariamente uniformes, na sua adesão ao fascismo, se ele se revelar novamente como possibilidade real de poder. Já ocorreu no Brasil, na Argentina e em outros países do globo.
Uma aliança militar-policial-popular (tomado aqui como “popular” a parte do povo armado pelo governo de Jair Bolsonaro, somado aos setores pobres atingidos pelo dinheiro desviado das suas finalidades orçamentárias para comprar votos) — esta aliança — poderia ter sido instalada no Brasil.
Bastaria o polo golpista ter no seu comando quadros de prestígio de dentro das próprias corporações de Estado que o golpe, com a vitória desta turba nas eleições do Brasil, ou mesmo com a desconfiança de que a eleição seria roubada por Lula, seria aberta a via de um banho de sangue e se instalaria aqui uma ditadura de fato, por dentro de um Estado de direito vulnerável.
A nota da Executiva do PT foi omissa ao não ressaltar claramente a necessidade de que se firmassem pressupostos de legitimidade de um novo governo na Venezuela, através da apresentação das atas eleitorais, que Nicolás Maduro não fez e a oposição também não fez. A corajosa decisão do governo Lula, juntamente com os governos do México e da Colômbia foi, portanto, certeira, quando substituiu a valentia “militar-policial” de quem está no poder e detém mecanismos de controle da administração do Estado, pela verificação explícita da vontade popular.
A Guerra Fria instaurou em várias gerações uma moralidade histórica bastante convincente, baseada em pressupostos éticos e em observações empíricas, comprováveis a “olho nu”: a URSS e seus “satélites” representavam a resistência ao nazismo, comprovada na 2ª. Guerra Mundial, quando o imperialismo mostrava — pensava-se à época — o clímax da sua desumanidade ao atacar o Vietnã, que buscava — com sua resistência heroica construir (e construiu) — uma nação livre e soberana, através de uma justa guerra de libertação nacional.
Essa constatação se torna importante para analisar os fenômenos políticos desta etapa da globalização, porque é impossível usar as mesmas categorias analíticas da época da “guerra fria”, para compreender o presente, onde os supostos “bem” e o “mal” estão fundidos – no ciclo atual — nos interesses das grandes nações que são dominantes sobre o segundo e o terceiro mundo. Por acaso a China, por exemplo, não é a maior nação detentora de títulos públicos do Império Americano? Não é verdade, por acaso, que tanto a China como os EEUU têm relações econômicas e de “bem-estar político”, com governos ditatoriais sórdidos, de todo o mundo, para protegerem seus interesses históricos imediatos?
As relações de apoio recíproco entre os “grandes” do capitalismo globalizado são conformadas em torno dos temas mais imediatos do processo de dominação imperial-colonial, não mais pelas grandes narrativas civilizatórias em nome da democracia, do socialismo ou dos projetos reverenciais do paternalismo de Sua Majestade Inglesa, com a iluminação fictícia da igualdade e da democracia.
Numa passagem do texto “Introdução à leitura de Winckelmann”, escrito por Gerd Bornheim (Reflexões sobre a arte antiga, Ed. Movimento, p.12), está relatado o célebre encontro de Goethe com Napoleão em Iena. É o encontro de dois símbolos de uma época na qual o Imperador, que na sua juventude acalentava a ideia de se tornar um César europeu, “como que pede a Goethe” a sua glorificação, a ser feita através de um “drama” histórico, que seria escrito pelo genial poeta e filósofo alemão.
Goethe, o grego homérico, reluta em comprometer-se com Napoleão, o romano épico: “como glorificar quem desfigura o Grego”, perguntou-se o filósofo, olhando a poesia de fora dos encantos da subjetividade romântica. Trump, Putin e Zelensky, são as faces mais agudas que transitam no mundo, com diferentes moedas de valorização da revogação do humanismo moderno e com as diferentes formas de apropriação — pelas filiais do capitalismo financeiro — em diferentes continentes do mundo. Seus esteios são as guerras, o que não é épico nem homérico, mas trágico.
Outra memória que me assalta é uma passagem dos Dez dias que abalaram o mundo (John Reed) que logo após a tomada do poder pelos bolcheviques fez uma reportagem histórica sobre a grandeza, os problemas e as tragédias iniciais, daquele momento da história europeia e mundial, que varria o czarismo, sua autocracia e a servidão camponesa que a sustentava. Falo da resposta automática, dada por um operário-soldado da Revolução, que respondia às indagações sobre a as dificuldades da implantação do socialismo, com uma frase monocórdia: “só tem dois lados, a burguesia e o proletariado!”. É o que conta John Reed.
A dominância desta contradição política e material não desapareceu em termos absolutos, mas mitigou-se — por um largo período ainda não definido — dando lugar às formas políticas, ditadura ou democracia, que seriam aptas — em cada país — ou para impedir uma aliança estratégica da extrema direita com a direita, e com o centro pálido (tradicional) em suas várias gradações, ou para o trânsito à barbárie. Esta possibilidade pode ocorrer em qualquer país em que a eleição seja considerada ilegítima, pela maioria da população ou que ela seja roubada pela extrema direita, como Jair Bolsonaro tentou fazer no Brasil, para dar solidez à aliança já na formação de um novo governo.
Na unidade dos dois episódios de Goethe e John Reed, é possível notar convergências e diferenças. Napoleão e Goethe conversavam sobre o sentido do iluminismo democrático na Europa – com as suas promessas de liberdade, igualdade e fraternidade — sobre as quais poder-se-ia dizer que alargariam as liberdades. E também as opções postas pelo individualismo moderno, as relações mercantis com sujeitos “livres” (da opressão feudal) num Estado organizado pelo Direito, com normas representativas destes interesses, que fariam a repartição do consumo para “dar algo” às “sobras” humanas do exército de reserva do proletariado e dos demais pobres e desvalidos.
John Reed e o seu operário politizado, de outra parte, perscrutavam sobre um “mundo ainda não existente”, uma utopia potencialmente livre de toda a opressão e exploração, que oporia — sempre — duas classes fundamentais em confronto, o que deveria ocorrer até a chegada “ideal” do proletariado no controle total do Estado. Ocorre que o proletariado, que sempre foi adjudicado a uma teoria do poder revolucionário, representar-se-ia — nas práticas do governo estatal — por uma burocracia superior, que reproduziria — a partir do próprio Estado — uma casta superior aos operários reais do socialismo real, que não interferiam sequer nas normas de repartição das carências dentro do regime.
Nos seus territórios dominantes, para firmar os interesses dos Estados-nação hegemônicos no mundo contemporâneo, o iluminismo democrático organizou uma Europa vocacionada para a Guerra. Um modelo subserviente aos modelos de exploração coloniais-imperiais — originários dos interesses econômicos e territoriais dos seus Estados — aliados entre si e coniventes com as monarquias feudais árabes, ou não coniventes, quando seus interesses imediatos são feridos.
De outra parte, a Revolução Russa se tornou uma revolução do iluminismo tardio, onde foram sepultadas não só as conquistas sociais em saúde, cultura, educação e combate à pobreza da Revolução bolchevique, mas também as liberdades democráticas, ainda vigentes no Estado de direito formal dos países constitucionalizados pelo centro democrático, em conjunto com as forças da esquerda tradicional.
Assim como a Ucrânia, todavia, tem o seu Batalhão Azov, composto por nazistas e fascistas, a Rússia tem seus batalhões de mercenários fascistas, bem pagos pelo governo de Vladimir Putin, acertados em contratos privados com o Estado russo, dominado pela nova burocracia do sistema do capital ali instalada. A oposição venezuelana, que agora pede as atas e também não as apresenta, é a mesma que já tentou golpes cruentos contra o regime de Hugo Chaves e Nicolás Maduro e que, com Donald Trump, designou o risível Guaidó, como presidente da nação, sem eleições e fora da lei.
De outra parte, governar com uma “aliança militar-policial-popular” — como insiste Nicolás Maduro — não investe nenhum governo de legitimidade para liderar um país em que a própria Constituição foi produto de um processo reconhecido, em todo o mundo, como democrático e que através de sucessivos pleitos desbancou as elites superiores das oligarquias tradicionais, que sequer se preocupavam com a alternância do poder, pois era certo que, nas eleições viciadas, o poder ficaria sempre nas mesmas mãos privilegiadas.
Recontagem e verificação independente, acordo de transição dentro da democracia, novas eleições com ou sem Governo de transição, são algumas das possibilidades para reestruturar a democracia na Venezuela, que soube se livrar das suas velhas oligarquias políticas e econômicas, mas não pode deslanchar para uma situação de guerra civil permanente e não declarada, que pode desestabilizar uma grande parte da América Latina, que lentamente se ergue para sua soberania com estabilidade democrática.
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