Venezuela sem autoritarismo
"A situação de crise, extremamente agravada pelos embargos econômicos, deve ser resolvida no âmbito interno de um país soberano", escreve Carol Proner
A imprensa hegemônica no Brasil está em surto desde que ocorreram as eleições na Venezuela. Diante do impasse na divulgação das atas, tudo o que importa é que o ditador seja extirpado do poder para que os brasileiros possam viver em paz. Dadas as circunstâncias, o desfecho venezuelano também é o principal assunto nos círculos da esquerda, com opiniões de todas as cores.
Coloridas também foram, e ainda são, as estratégias para desequilibrar governos em diversos lugares do mundo. As chamadas revoluções de cores, desenvolvidas no espaço pós-soviético sob pretexto de derrubar regimes autoritários, incluíam táticas não violentas de resistência, discurso democratizante, liberalizante e pró-ocidental. Foram consideradas bem-sucedidas na Iugoslávia, na Georgia, na Ucrânia, no Quirguistão, no Líbano, na Tunísia, no Egito, no Yemen e na Armênia. Outras várias tentativas foram frustradas, mas ajudaram a aprimorar os métodos de ingerência civil-militar externa suave por meio das tecnologias e da ciberguerra, combinando táticas jurídicas (lawfare), diplomáticas e campanhas midiáticas para instalar a desinformação e a desconfiança em processos eleitorais contra líderes e partidos considerados alvos.
Sempre haverá quem argumente que são meras conjecturas da conspiração, mas deveríamos lembrar dos fatos ocorridos na Bolívia durante as eleições de 2019 e comparar com o que ocorre atualmente na Venezuela. Precedida de uma campanha extremante racista contra o povo andino, impulsionada por milhares de contas falsas no Twitter acusando Evo Morales de assassino, corrupto e narcotraficante, as eleições bolivianas de 10 de novembro de 2019, vencidas pelo partido MAS (Movimento ao Socialismo), foram repudiadas pela oposição com acusações de fraude na contagem dos votos. No mesmo dia da apuração, diante de resultados ainda provisórios anunciados pelo Tribunal Supremo Eleitoral, que indicava a vitória de Evo Morales com mais de 10 pontos de diferença, a Organização dos Estados Americanos e a União Europeia precipitaram-se em questionar a regularidade do pleito, posicionamento que serviu de combustível para a onda de violência e terror que obrigou o candidato vencedor a sair do país para evitar ser assassinado. Como resultado da grave ingerência externa em nome da democracia, instalou-se o governo interino de Janine Añez que, durante um ano, facilitou contratos de privatização e rapinagem das riquezas bolivianas.
Assim como na Bolívia, nas últimas décadas ocorreram diversos outros casos que ilustram fatores de desestabilização programática no México, na Argentina, no Equador, na Colômbia, no Peru, na Guatemala e mesmo na Venezuela, muitos que inclusive estão em curso, mas não precisamos ir a outros países para entender como ocorrem os tais “golpes não tradicionais” que, aliados às elites entreguistas em cada caso, provocam a tempestade perfeita. Basta olhar para o Brasil a partir de 2013 ou mesmo antes. Ainda que fatores de ingerência internacional não apareçam como tão evidentes, a interferência estrangeira sempre esteve nas entranhas programáticas da desestabilização brasileira, seja na cooperação e treinamento militar, judicial e diplomático, nas manifestações de rua desejando a volta dos militares contra um governo civil de esquerda, ou no uso ensaiado do verde-e-amarelo em carros de som financiados por novos partidos, e em tudo o que se seguiu: impeachment sem lastro no direito, governo Temer “trocando o regime”, desestatizando e reformando o conteúdo social da Constituição, prisão do “Lula-ladrão” e eleição de Jair Bolsonaro, tudo em meio a uma campanha de desinformação, fakenews, ciberataques e do uso indevido do direito (lawfare) para acusar, processar e prender líderes, desestruturar empresas, eliminar empregos e atacar a soberania política e institucional do país.
Tanto na Bolívia como no Brasil, ocorreram processos de desestabilização e troca de regimes que agora aparecem – mais uma vez – como tentativa na Venezuela. Mesmo completamente diferentes entre si, algumas táticas são equivalentes, assim como coincidem alguns personagens. É o caso de Elon Musk, neoconquistador do lítio na Bolívia, desafiante das leis brasileiras e agora inimigo de Nicolás Maduro, em todos os casos atuando muito sinceramente contra governos de esquerda. Os traços comuns nos três casos, e em outros atualmente em curso na América Latina, também incluem centros de estratégia e pensamento (think tanks) como o Atlantic Council, o Atlas Network, a Oper Society Fondations, a National Endowment for Democracy, a Usaid e a OEA de Luís Almagro, para além dos tradicionais órgãos de ingerência do imperialismo estadunidense.
Tudo isso está no contexto das atuais eleições da Venezuela, para além das platitudes repetidas à exaustão pela grande imprensa. Em mais de 25 anos de poder desde que o MVR foi fundado (Movimento 5ª República, fundado em 1997 por Hugo Chávez), a população foi chamada à consulta popular em mais de 30 oportunidades. Nas eleições de 2013 o roteiro da crise foi parecido com o atual: a oposição recursou-se a aceitar os resultados e, mesmo tendo sido negado o recurso diante do órgão eleitoral, incitou protestos que duraram 3 meses com um saldo de mais de 40 mortos, além de centenas de feridos, durante as chamadas “guarimbas”, espécie de barricadas urbanas formadas para protestar contra o governo.
Assim como diversos países, também a Venezuela enfrenta problemas importantes em matéria de direitos humanos, e não são poucas as denúncias de violação de direitos em tribunais internacionais. Mas a situação de crise, extremamente agravada pelos embargos econômicos interpostos pelos Estados Unidos, é um problema que deve ser resolvido no âmbito interno de um país soberano. Aliás, neste caso sim, a Comunidade Internacional deveria reagir para coibir as ilegais sanções coercitivas unilaterais, mais de 150 sanções que, em última instância, sacrificam a vida do povo e o desenvolvimento do país.
Confiando na sabedoria dos diplomatas encarregados em orientar a posição brasileira diante do impasse, bem como na experiência do Presidente Lula, um dos principais atingidos no processo de desestabilização à brasileira, seguramente o Brasil respeitará a institucionalidade na definição dos resultados eleitorais do país vizinho. O Brasil respeitará o princípio da presunção de regularidade dos atos eleitorais e a soberania política tão logo sejam anunciados, pelo Poder Eleitoral da Venezuela, os resultados definitivamente considerados.
Certamente esta será igualmente a posição da Colômbia e do México, lembrando que os três países emitiram comunicado conjunto, informando estarem atentos ao pleito e reiterando o chamado para que as autoridades eleitorais da Venezuela avancem na exposição da regularidade das eleições pela via institucional e verificação imparcial.
Essa é a única posição respeitosa à soberania nacional e ao princípio de não interferência em assuntos internos por parte de terceiros países. Essa é a única posição decente por parte de juristas sabedores do direito público e eleitoral soberano de um Estado, seja qual for. E este é o ponto de partida para que os órgãos de imprensa façam a cobertura de modo isento e imparcial e, como tal, justo. No mais, seria puro autoritarismo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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