Vítimas que contam e vítimas que não contam
"Dividir o mundo em vítimas que contam e que não contam é uma tática usada para justificar nossos crimes e demonizar nossos inimigos", escreve Chris Hedges
Por Chris Hedges
(Publicado no site Scheerpost.com, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247)
Os governantes dividem o mundo em vítimas que contam e vítimas que não contam, aquelas de quem nos é permitido ter pena – como os ucranianos que sofrem com o inferno da guerra moderna – e aquelas outras cujo sofrimento é minimizado, dispensado, ou ignorado. O terror que nós e nossos aliados aplicamos contra os civis iraquianos, palestinos, sírios, líbios, somalis e iemenitas faz parte do lamentável custo da guerra. Ecoando as promessas vazias de Moscou, nós alegamos que não alvejamos civis. Os governantes sempre pintam os seus militares como humanos que lá estão para servir e proteger. Danos colaterais ocorrem, mas são deploráveis.
Esta mentira só pode ser sustentada entre aqueles que não tem familiaridade com munições explosivas e as grandes zonas de morte dos mísseis, das bombas de fragmentação de ferro, dos morteiros, da artilharia e dos cartuchos de canhões de tanques e das metralhadoras alimentadas por cinturões de balas. Esta bifurcação entre vítimas que contam e vítimas que não contam – como assinalam Edward Herman e Noam Chomsly no livro “Manufacturing Consent: The Political Economy of the Mass Media” (Fabricando o Consenso: A Economia Política das Mídias de Massa) – é um componente-chave da propaganda, especialmente na guerra. Para Moscou, a população de fala russa na Ucrânia são vítimas que contam. A Rússia é a salvadora destes: Os 1,5 milhão de refugiados e as milhões de famílias ucranianas encolhidas em porões, estacionamentos e estações de metrô são “Nazistas” que não contam.
Vítimas que contam permitem aos cidadãos de ver-se como sendo empáticos, compassivos e justos. Vítimas que contam são uma ferramenta eficaz para demonizar o agressor. Estas são usadas para obliterar a nuance e a ambiguidade. Mencione as provocações executadas pela aliança ocidental com a expansão da OTAN para além das fronteiras de uma Alemanha unificada – uma violação das promessas feitas à Moscou em 1990; o posicionamento de tropas e baterias de mísseis da OTAN na Europa Oriental; o envolvimento dos EUA na destituição do presidente ucraniano Viktor Yanukovych em 2014 – que levou à guerra civil no leste da Ucrânia entre separatistas apoiados pela Rússia e o exército da Ucrânia, um conflito que causou dezenas de milhares de vidas – e você será descartado como um apologista de Putin.
Isto é para tingir a santidade das vítimas que contam e, por extensão, a nós mesmos. Nós somos bons. Eles são o mal. As vítimas que contam são usadas não somente para expressar ultraje hipócrita, mas para alimentar a auto-adulação e o nacionalismo venenoso. A causa torna-se sagrada, uma cruzada religiosa. Evidências baseadas em fatos são abandonadas, como ocorreu durante as conclamações para invadir o Iraque. Charlatães, mentirosos, vigaristas, falsos desertores e oportunistas tornam-se especialistas usados para alimentar o conflito.
Como os poderosos, as celebridades orquestram cuidadosamente as suas imagens públicas, derramam os seus corações para as vítimas que contam. Estrelas de Holiwood como George Clooney fazem viagens a Darfur para denunciar os crimes de guerra cometidos por Khartoum ao mesmo tempo em que os EUA estavam matando dezenas de civis no Iraque e no Afganistão. A guerra no Iraque foi tão selvagem quanto as matanças em Darfur, porém expressar ultraje sobre o que estava ocorrendo lá com vítimas que não contam seria rotulado como o inimigo – o qual, obviamente, como Putin ou Sadam Hussein, sempre são os novos Hitlers.
Os ataques de Saddam Hussein contra os curdos, considerados como vítimas que contam, produziram uma gritaria internacional, enquanto a perseguição dos israelenses contra os palestinos – sujeitos a implacáveis campanhas de bombardeio pela força aérea israelense e as suas unidades de artilharia e tanques, com centenas de mortos e feridos, seria, no melhor dos casos, uma reflexão tardia. No auge dos expurgos de Stalin nos anos de 1930, as vítimas que contavam eram os republicanos que lutavam contra os fascistas na guerra civil espanhola. Os cidadãos soviéticos foram mobilizados para enviar ajuda e assistência. As vítimas que não contavam eram as milhões de pessoas executadas por Stalin, algumas vezes após espalhafatosos julgamentos-espetáculos, e mandados para os gulags.
Enquanto eu reportava de El Salvador em 1984, o padre católico Jerzy Popieluszko foi assassinado pelo regime na Polônia. A sua morte foi usada para escoriar o govern comunista polaco, em forte contraste com a resposta do governo Reagan ao estupro e assassinato de quatro missionárias católicas em 1980 em El Salvador, perpetrados pela Guarda Nacional Salvadorenha. O governo do presidente Ronald Reagan procurou culpar as três freiras e uma trabalhadora civil pelas suas próprias mortes. A embaixadora de Reagan nas Nações Unidas, Jeane Kirkpatrick, disse: “As freiras não eram apenas freiras. As freiras também eram ativistas políticas.” O Secretário de Estado Alexander Haig especulou que “talvez elas tenham encontrado um bloqueio na estrada.”
Para o governo Reagan, as religiosas assassinadas eram vítimas que não contavam. O governo direitista de El Salvador, armado e apoiado pelos Estados Unidos, fez uma piada naquela época – 'Haz patria, mata un cura' (seja um patriota, mate um padre). O arcebispo Óscar Romero foi assassinado em março de 1980. Nove anos depois, foram abatidos a tiros seis jesuítas e outras duas pessoas na residência destes no campus da Universidade Centro-Americana em San Salvador. Entre 1977 e 1989, esquadrões da morte e soldados mataram 13 padres em El Salvador.
Não é que as vítimas que não contam não sofram, nem que elas não mereçam o nosso apoio e compaixão, o fato é que apenas as vítimas que contam são consideradas como humanas, gente como nós, enquanto que as vítimas que não contam não o são. Obviamente, também ajuda o fato, como ocorre na Ucrânia, de elas serem brancas. Mas as missionárias assassinadas em El Salvador também eram brancas e, mesmo assim, isso não foi suficiente para abalar o apoio dos EUA à ditadura militar do país.
“As mídias de massa jamais explicam porque Andrei Sakharov é uma vítima que conta, enquanto que Jose Luis Massera, no Uruguay, não conta” - escrevem Herman e Chomsky. “A atenção e dicotomização geral ocorrem 'naturalmente' como resultado do trabalho de filtragem de notícias, mas o resultado é o mesmo como se um comissário tivesse instruído as mídias: 'Concentrem-se na vítimas dos poderes inimigos e esqueçam-se das vítimas dos amigos.' Relatórios de abusos de vítimas que contam não só passam pelos filtros; estes também podem tornar-se a base de contínuas campanhas de propaganda. Se o governo ou a comunidade corporativa e as mídias sentem que uma história é útil, bem como dramática, eles focalizam nesta intensivamente e a usam para esclarecer o público”.
Isto foi a verdade, por exemplo, quando os soviéticos abateram o avião civil coreano KAL 007 no início de setembro de 1983 – o que permitiu uma extensa campanha de difamação de um oficial inimigo, o que avançou em muito os planos de armas do governo Reagan” - escrevem Herman e Chomsky. “Como Bernard Gwertzman notou com complacência no New York Times em 31 de agosto de 1984, as autoridades dos EUA 'garantem que a crítica mundial sobre a maneira como os soviéticos lidaram com a crise fortaleceu os Estados Unidos nas relações com Moscou.' Em agudo contraste com isso, o abatimento de um avião civil líbio por Israel em fevereiro de 1973 não produziu gritaria alguma no Ocidente, nem denúncias de 'assassinato a sangue frio', e nenhum boicote. Esta diferença de tratamento foi explicada pelo New York Times precisamente com base na sua utilidade num editorial de 1973: 'Nenhum propósito útil foi atendido pelo amargo debate sobre a culpabilidade da derrubada de uma avião comercial líbio na península do Sinai na semana passada.' Havia um 'propósito muito útil' servido em focalizar no ato soviético a assim seguiu-se uma massiva campanha de propaganda.
É impossível responsabilizar os culpados por crimes de guerra se as vítimas que contam merecem justiça e as vítimas que não contam não o merecem. Se a Rússia for aleijada com sanções por invadir a Ucrânia – o que eu acredito que deveria – os Estados Unidos deveriam ser aleijados com sanções por invadir o Iraque, uma guerra lançada tendo como base mentiras e evidências fabricadas.
Imagine se os maiores bancos dos EUA – J.P. Morgan Chase, Citibank, Bank of America e Wells Fargo – fossem retirados do sistema bancário internacional. Imagine se os nossos oligarcas – Jeff Bezos, Jamie Diamond, Bill Gates e Elon Musk – que são tão venais quanto os oligarcas russos, tivessem os seus ativos congelados e as suas propriedades e yachts de luxo apreendidos. (O yacht de Bezos é o maior do mundo, estima-se que custa uns US$ 500 milhões e mede 17 metros a mais do que um campo de futebol.) Imagine se importantes lideranças políticas – como George W. Bush, Dick Cheney e “oligarcas” estadunidenses fossem impedidos de viajar sob restrições de vistos. Imagine se as maiores linhas de transporte marítimo do mundo suspendessem os transportes de carga para e dos EUA. Imagine se as notícias dos veículos de midias internacionais dos EUA fossem forçadas a sair do ar. Imagine de não pudessemos comprar peças de reposição para as nossas empresas comerciais de aviação e que os nossos aviões fossem banidos do espaço aéreo europeu. Imagine se os nossos atletas fossem impedidos de hospedar ou participar de eventos esportivos internacionais. Imagine se os nossos maestros de orquestras sinfônicas e estrelas da ópera fossem proibidos de apresentar-se a não ser que denunciassem a guerra no Iraque e, numa espécie pervertido de voto de lealdade, eles condenassem George W. Bush.
A hipocrisia da hierarquia é assombrosa. Algumas das mesmas autoridades que orquestraram a invasão do Iraque – as quais, sob a lei internacional são criminosos de guerra por executar uma guerra preventiva – agora estão punindo a Rússia pelas suas violações da lei intrenacional. A campanha de bombardeio dos EUA contra centros urbanos do Iraque, chamada de “Choque e Temor”, despejou 3.000 bombas em áreas civis, as quais mataram mais de 7.000 não-combatentes nos dois primeiros meses da guerra. A Rússia ainda não chegou a este extremo.
“Um apresentador da FOX News disse recentemente à Condoleezza Rice, que serviu como conselheira de Segurança Nacional de Bush durante a guerra do Iraque: “Argumentei que quando você invade uma nação soberana, isto é um crime de guerra”.
E Rice respondeu: “Isso certamente vai contra todos os princípios da lei internacional e da ordem internacional, e é por isso que jogar o livro neles em termos de sanções e punições econômicas também faz parte disso.” E ela seguiu: “E eu penso que o mundo está alí. Certamente, a OTAN está alí. Ele (Putin) conseguiu unir a OTAN de maneiras que eu não pensei que jamais veria após o fim da Guerra Fria.”
Rice inadvertidamente apresentou a razão pela qual ela deveria ser posta em julgamento com o resto dos manipuladores de Bush. Ela ficou famosa por justificar a invasão do Iraque ao dizer: “O problema aqui é que sempre haverá alguma incerteza sobre quão rapidamente ele (Sadam Hussein) pode adquirir armas nucleares. Mas nós não queremos que a arma fumegante seja uma nuvem (radioativa) em forma de cogumelo.” O raciocínio para justificar uma guerra preventiva – a qual, sob as leis pós Nuremberg é uma guerra criminal de agressão – não é diferente daquilo que foi vendido pelo ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, que diz que a invasão russa está sendo executada para evitar que a Ucrânia obtenha armas nucleares.
E isso me leva à RT America, na qual eu tinha um show chamado “On Contact”. Agora a RT America está fora do ar, depois de ser des-plataformizada e incapacitada de disseminar o seu conteúdo. Este era de há muito um plano do governo dos EUA. A invasão da Ucrânia deu à Washington a abertura para fechar a RT. A rede tinha uma presença mínima nas mídias. Porém, ela deu uma plataforma para dissidentes estadunidenses que desafiavam o capitalismo corporativo, o imperialismo, a guerra e a oligarquia estadunidense.
A minha denúncia pública da invasão da Ucrânia foi tratada de maneira muito diferente pela RT America do que a minha denúncia pública da guerra no Iraque foi tratada pelo meu ex-empregador, o The New York Times. A RT America não fez comentário algum, publicamente ou em privado, sobre a minha condenação da invasão da Ucrânia na minha coluna no ScheerPost.com . A RT tampouco comentou sobre as declarações de Jesse Ventura – um veterano do Vietname e ex-governador do estado de Minnesota – que também tinha um show na RT America; ele escreveu o seguinte: “Há 20 anos, perdí o meu trabalho porque me opús à Guerra no Iraque e a invasão do Iraque. Atualmente, eu ainda me posiciono pela paz. Como eu disse previamente, eu me oponho a esta guerra, esta invasão, e se posicionar-me pela paz me custará outro trabalho, que assim seja. Eu sempre falarei contra a guerra.
A RT America foi fechada seis dias depois de eu haver denunciado a invasão da Ucrânia. Se a rede tivesse continuado, Ventura e eu poderíamos ter pagado com os nossos trabalhos, mas pelo menos por aqueles seis dias eles nos mantiveram no ar.
O The New York Times emitiu uma reprimenda escrita formal em 2003 que me proibiu de falar sobre a guerra no Iraque, apesar de eu ter sido o Chefe do Bureau do Oriente Médio do jornal, de ter passado sete anos no Oriente Médio e de falar o árabe. Esta reprimenda me preparou para ser demitido. Caso eu violasse a proibição, segundo as regras da liga (de jornalistas), o jornal teria uma justificativa para terminar o meu emprêgo. John Burns, um outro correspondente estrangeiro do jornal, apoiou publicamente a invasão do Iraque. Ele não recebeu uma reprimenda.
Meus repetidos avisos em forums públicos sobre o caos e o banho de sangue que a invasão do Iraque provocaria, que acabaram sendo corretos, não eram uma opinião. Eram fruto de uma análise baseada em anos de experiência na região, incluindo o Iraque, e um entendimento íntimo do instrumento da guerra – o que faltava aos que estavam na Casa Branca de Bush.
Aqueles de nós que nos opusemos à guerra no Iraque – não importando quanta experiência tivessemos na região – fomos atacados e vilipendiados. Ventura, que tinha um contrato de três anos com a MSNBC, teve o seu show cancelado.
Aqueles que incentivavam a torcida pela guerra – como George Packer, Thomas Friedman, Paul Berman, Michael Ignatieff, Leon Wieseltier e Nick Kristof, a quem Tony Judt chamou de “os idiotas úteis de Bush” - dominaram o panorama das mídias. Eles pintavam os iraquianos como oprimidos, vitimas que contam, a quem os militares dos EUA libertariam. A luta das mulheres sob o regime dos Talibã foi um grito de guerra para bombardear e ocupar o país. Estes cortesãos do poder serviram aos interesses da elite do poder e da indústria da guerra. Eles diferenciavam entre as vítimas que contavam e as vítimas que não contavam. Foi uma boa jogada para as suas carreiras. E eles sabiam disso.
Entre os repórteres no Oriente Médio, havia muito pouca controvérsia sobre a loucura de invadir o Iraque; porém a maioria não queria arriscar as suas posições ao falar publicamente. Eles não queriam que o meu destino se tornasse o deles, especialmente depois que fui vaiado no palco de uma formatura em Rockford, no estado de Illinois, por fazer um discurso contra a guerra e por tornar-me um saco de pancadas para as mídias de direita. Eu andava pela redação do jornal e os repórteres que eu conhecia há anos olhavam para baixo e viravam as suas cabeças, como se eu tivesse lepra. Minha carreira havia acabado. E não apenas no The New York Times, mas em qualquer organização maior de mídia – que era onde eu estava, tornado órfão, quando Robert Scheer me recrutou para escrever para o website Truthdig – o qual ele editava então.
O que a Rússia está fazendo militarmente na Ucrânia – pelo menos até agora – compara-se em muito com a selvageria dos EUA no Iraque, no Afganistão, na Síria, na Líbia e no Vietname. Este é um fato inconveniente que a imprensa, banhada em encenações morais, não tratará.
Ninguém dominou a arte da guerra técnica e matança por atacado como os militares estadunidenses. Quando as atrocidades vazam – como o massacre de civis vietnamitas em My Lai, ou os prisioneiros de Abu Ghraib – a imprensa faz o seu dever ao rotulá-las como aberrações. A verdade é que estas matanças e abusos são deliberados. Os mesmos são orquestrados nos níveis mais altos das forças militares. As unidades de infantaria, auxiliadas por artilharias de longo alcance, jatos-bombardeios, bombardeiros pesados, mísseis, drones e helicópteros aplainam vastas faixas de território “inimigo”, matando a maioria dos seus habitantes. Durante a invasão do Iraque a partir do Kuwait, as forças militares dos EUA criaram uma zona de livre-tiro de seis milhas de largura que matou centenas, senão milhares, de iraquianos. A matança indiscriminada incendiou a insurgência no Iraque.
Quando eu entrei no sul do Iraque na primeira Guerra do Golfo, o território estava aplainado. Aldeias e cidades estavam em ruínas queimadas. Havia corpos – incluindo os de mulheres e crianças – espalhados pelo chão. Os sistemas de purificação de água foram bombardeados. Escolas e hospitais foram bombardeados. Pontes foram bombardeadas. Os militares dos Estados Unidos sempre fazem guerra com “overkill” (matança exagerada) – é por isso que eles despejaram o equivalente a 640 bombas atômicas do tamanho daquela de Hiroshima no Vietname, sendo que a maior parte destas foram jogadas no sul, onde os nossos supostos aliados vietnamitas residiam. Eles despejaram no Vietname mais de 70 milhões de agentes herbicidas; três milhões de foguetes de fósforo branco – o fósforo branco atravessa o corpo humano, queimando-o todo – e estimadas 400 mil toneladas de napalm incendiário em gelatina.
Nick Turse escreve sobre a guerra do Vietname - “35% das vítimas morreram em 15-20 minutos.” A morte vinda dos céus, assim como a morte na terra, frequentemente era deslanchada caprichosamente. “Não era incomum que as tropas dos EUA explodissem uma aldeia inteira ou bombardeassem uma área vasta, num esforço para matar um único atirador.”
Os aldeões vietnamitas – incluindo mulheres, crianças e idosos – frequentemente eram juntados em pequenos cercados de arame farpado, conhecidos como “jaulas de vacas”. Eles eram submetidos a choques elétricos, as mulheres eram violentadas por gangues e os homens eram torturados pendurados de cabeça para baixo e espancados – eufemisticamente chamados de “vôos de avião” - até que estivessem inconscientes. As suas unhas eram arrancadas. Os dedos eram desmembrados. Os presos eram talhados com facas. Eles eram surrados com tacos de baseball até perderem os sentidos e passavam por afogamentos. Assassinatos mirados, orquestrados pelos esquadrões da morte da CIA, eram onipresentes.
A destruição por atacado, incluindo de seres humanos, é orgiástica para os militares estadunidenses – como talvez o seja em qualquer força militar. A capacidade de desencadear rajadas de fogo de rifles automáticos, centenas de rodadas de fogo de metralhadora, rodadas de projéteis de 90 mm disparados de tanques, um número sem fim de granadas, morteiros e cargas de artilharia sobre uma aldeia – às vezes suplementados por projéteis explosivos de 2.700 libras (mais de 1.200 kg) disparados de navios de guerra ao longo da costa, eram formas pervertidas de entretenimento no Vietname, assim como o foi mais tarde no Oriente Médio. As tropas dos EUA enchem o campo com minas de argila. Latas de napalm, bombas-margaridas, foguetes anti-pessoas, foguetes de altos explosivos, foguetes incendiários, bombas de fragmentação, cargas de altos explosivos e bombas de fragmentação de ferro – incluindo as cargas de bombas de 40.000 libras (mais de 18.000 kg) despejadas de bombardeiros gigantes B-52 Strarofortress – junto com desfoliantes químicos e gases químicos jogados do céu, são os nossos cartões de visita. Vastas áreas são designadas como zonas de tiro livre – um termo mais tarde mudado pelos militares para “zonas específicas de ataque”, que soam como neutras – nas quais todos nestas zonas são considerados como inimigos, mesmo os idosos, as mulheres e as crianças.
Soldados e fuzileiros navais que tentaram denunciar os crimes de guerra que eles testemunharam podem enfrentar um destino pior do que sofrer pressão, serem desacreditados, ou ignorados. Em 12 de setembro de 1969, escreve Nick Turse no seu livro “Kill Anything That Moves: The Real American War in Vietnam” (Mate Qualquer Coisa Que se Mova: A Verdadeira Guerra Estadunidense no Vietname): George Chunko enviou uma carta aos seus pais explicando como a sua unidade entrou numa casa onde havia uma jovem mulher vietnamita, quatro crianças jovens, um homem idoso e um homem de idade militar. Parecia que o homem jovem era um desertor do exército vietnamita. O jovem homem foi desnudado e amarrado a uma árvore. A sua esposa ajoelhou-se e implorou por misericórdia aos soldados. Chunk escreve que o prisioneiro foi “ridicularizado, esbofeteado e teve lama esfregada na sua face.” E daí então, ele foi executado.
Um dia depois de escrever a carta, Chunko foi assassinado. Turse escreve que os pais de Chunko “suspeitavam que o filho deles foi assassinado para acobertar um crime.”
Tudo isso permanece não-mencionado à medida que expressamos a nossa angústia pelas pessoas na Ucrânia e nos deleitamos na nossa superioridade moral. A vida de uma criança palestina ou iraquiana é tão preciosa quanto a vida de uma criança ucraniana. Ninguém deve viver no medo e no terror. Ninguém deve ser sacrificado no altar de Marte. Porém, até que todas as vítimas importem, até que todos que fazem a guerra sejam responsabilizados e levados à justiça, este jogo hipócrita de vida e morte continuará. Alguns seres humanos importarão na vida. Outros, não. Arrastem o Putin ao Tribunal Criminal Internacional e coloquem-no em julgamento. Mas assegurem-se que George W. Bush esteja na cela ao lado dele. Se não podemos ver-nos, não podemos ver os demais. E esta cegueira leva a catástrofe.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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