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    Boaventura de Sousa Santos

    Sociólogo português

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    Viver entre ruinas: a condição humana abissal

    "A dominação moderna se baseia na linha abissal que separa de forma radical os seres plenamente humanos dos sub-humanos", escreve Boaventura

    Destruição em Khan Younis, sul de Gaza (Foto: Hatem Khaled / Reuters)

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    No momento em que escrevo, Gaza é a metáfora trágica do tempo que vivemos. Vivemos entre ruínas. Há memória recente de casas, de escolas, de hospitais, de gente viva, mas só presenciamos escombros e morte. Há memória recente de princípios éticos e de legalidade nacional e internacional, mas só observamos impunidade, indiferença, cumplicidade ou revolta impotente.

    Há memória de ideias e projectos de resistência contra a dominação moderna eurocêntrica (capitalista, colonialista e patriarcal), mas aparentemente foram derrotados pela oposição frontal que lhes foi movida pelas classes dominantes, sobretudo desde o início do século XIX, as burguesias nacionais e a burguesia global, sempre as mesmas e sempre diferentes.

    Foi esta a classe que sempre beneficiou do sistema de dominação e que hoje proclama com ruidoso triunfalismo que nunca permitirá ser desalojada dessa posição pacificamente.

    Uma das características fundamentais da dominação moderna é a linha abissal que de modo radical separa os seres considerados plenamente humanos dos seres considerados sub-humanos ou infra-humanos, e como tal tratados. Esta linha abissal está radicalmente ausente da consciência filosófica moderna. É essa ausência que legitima a persistência da linha abissal, tanto nas relações sociais, como no desempenho “normal” das instituições políticas, jurídicas e educativas.

    A ideia de que na era moderna eurocêntrica a humanidade não existe sem desumanidade é difícil de aceitar ou mesmo de entender, dado o extraordinário sistema de ilusões e de meias-verdades que, com o passar do tempo, se converteu em realidade para os que beneficiam desse sistema e, muitas vezes, mesmo para os que são vítimas dele.

    Certamente o par humanidade/desumanidade sempre esteve presente ao longo da história, sendo indiferente saber se se trata de um castigo divino, de um imperativo religioso, bíblico ou corânico, ou simplesmente de uma fatalidade humana. O que é específico da era moderna é a negação de que tal dualidade existe. Nos seus termos, a humanidade é uma só e sem excepções; o que está fora da humanidade é, por definição, natureza não-humana, vida não-humana, por mais parecida que seja com a vida humana.

    É notável a persistência dessa concepção. Os índios americanos eram seres inferiores e, como tal, extermináveis; os escravos africanos eram coisas transacionáveis; os palestinianos são, aos olhos dos sionistas de Israel, animais humanos; os imigrantes a caminho do Norte global são seres descartáveis, sempre que desnecessários para os interesses económicos dos países onde tentam chegar. Parafraseando James Baldwin, quem não tem o direito de dizer sim à vida, tal como o fazem os seres considerados plenamente humanos é, por definição, sub-humano.

    Ou, como diria Frantz Fanon, habita a zona do não ser. A condição sub-humana é, assim, construída como natural e como tal ninguém é culpado dela, ninguém é responsável por ela. Eliminá-la é que seria antinatural, uma violência contra a natureza das coisas. 

    A tragédia do tempo presente é que, embora a dualidade humanidade/desumanidade seja mais necessária do que nunca à sobrevivência do sistema moderno de dominação, há um mal-estar geral, uma malaise indefinida, decorrente do facto de, depois de séculos de convivência entre seres considerados plenamente humanos e seres considerados sub-humanos, ser impossível não ver que os seres sub-humanos são pessoas como todas as outras. O mal-estar que isso causa representa o momento em que a linha abissal se faz presente na consciência colectiva. 

    Do outro lado da linha abissal teimam em afirmar a sua presença pessoas consideradas sub-humanas que têm tudo para poder dizer sim à vida, tal como os seres considerados plenamente humanos. Mas, assim sendo, o que lhes falta para serem tratados como seres plenamente humanos? A malaise contemporânea reside numa perplexidade não assumida que decorre da suspeita de que a resposta a essa pergunta seja intolerável para quem a faz.

    Há, pois, dois tipos de perguntas: as perguntas que se fazem para conhecer a resposta e as perguntas que se fazem para evitar a resposta. As primeiras são motivadas pela curiosidade, as segundas, pelo pânico. A antecipação do pânico é tão paralisadora quanto o pânico em si mesmo.

    O caracter inquietante da pergunta — o que lhes falta? — reside em que na era moderna eurocêntrica os seres considerados plenamente humanos só o são porque outros seres tão humanos quanto eles foram expropriados da capacidade de dizer sim à vida.

    Essa resposta põe a totalidade dos seres humanos no centro da tragédia contemporânea. Os seres considerados plenamente humanos deixam de poder clamar inocência. A resposta credível não reside em assumir a culpa individual, mas antes em assumir a quota-parte individual de uma responsabilidade colectiva que criou este estado de coisas contraditório em que os princípios e valores do humanismo universal são, na prática, o privilégio exclusivo de alguns à custa do sacrifício de outros.

    Isto significa que a linha abissal é tão desumanizante para os seres considerados plenamente humanos como para os seres considerados sub-humanos. Os seres considerados plenamente humanos são postos perante a ideia aterradora de que o seu bem-estar assenta num roubo há muito legalizado do bem-estar dos seres considerados sub-humanos. Os seres plenamente humanos são individualmente pessoas honestas, mas são colectivamente ladrões. São individualmente incapazes de violência, mas coletivamente assassinos profissionais. São cidadãos obedientes à lei, mas colectivamente beneficiam de uma impunidade sem limites.

    De um lado, um privilégio injusto, do outro, um sacrifício injusto, ambos ocultados por um diáfano manto de princípios e valores universais (liberdade, igualdade, fraternidade). Não há psiquiatra que resolva esta antinomia quando ela se instala no corpo e na alma, tanto dos seres considerados plenamente humanos como dos seres considerados sub-humanos. A essa mesma conclusão chegou o grande psiquiatra Frantz Fanon.

    É necessário analisar fenomenológica e existencialmente tanto a condição abissal das populações, relativamente cada vez mais numerosas, que foram expropriadas do direito a dizer sim à vida, como a condição dos que beneficiaram e beneficiam dessa expropriação. É fundamental ter em conta três factos.

    Primeiro, a existência da linha abissal é uma constante da era moderna eurocêntrica. Contudo, a linha não é fixa e historicamente tem-se movido, quer no sentido de incluir mais população na plena humanidade, quer no sentido inverso.

    Segundo, é possível passar individualmente de um lado para o outro da linha abissal e aí permanecer com alguma estabilidade; o que não é possível é que o colectivo a que o indivíduo originalmente pertenceu passe colectivamente para o outro lado da linha. 

    Terceiro, nas condições prevalecentes, sobretudo no Norte global, é possível que indivíduos transitem diariamente da plena humanidade para a sub-humanidade, e vice-versa.

    Viver do lado de lá da linha abissal. 

    A condição existencial de sub-humanidade consiste num conjunto imenso de características. Não significa que todas estejam presentes, mas algumas delas estarão. Uso o plural masculino universal para designar indivíduos e colectividades sub-humanizados.

    Não pertencem ao mundo que oficialmente se reconhece como mundo, mas vivem nele. Tal como nem todos os que vivem na cidade pertencem à cidade.

    Conhecem os princípios e os valores universais (liberdade, igualdade, fraternidade), mas sabem, por experiência, que eles não os protegem; no máximo, contribuem para promover a sua passividade.

    São constantemente avaliados e julgados pelo que são, e não pelo que fazem.

    Só partilham duradouramente a amizade, a alegria e o sofrimento com os que estão do mesmo lado da linha abissal. Os considerados plenamente humanos aparecem e desaparecem segundo as suas conveniências.

    O máximo reconhecimento oficial que podem obter deve-se ao facto de serem úteis ou, pelo menos, de não serem considerados perigosos.

    São muitas as opiniões sob a sua condição com imagens próprias de quem observa uma paisagem num safari urbano para turistas ou analisa resíduos de uma história infeliz que felizmente foi superada ou é melhor esquecer.

    Têm opiniões próprias, mas ninguém as tem em conta no mundo oficial senão na medida em que forem consideradas perigosas ou apropriáveis.

    Quando se vêem ao espelho têm a sensação de que o espelho os vê, segundo as circunstâncias, ora com desconfiança, resignação, complacência, ora com orgulho e incontida revolta.

    Quando saem de casa (se a tiverem) entram num mundo hostil que, no máximo, os aceita condicionalmente e por razões pragmáticas que lhes são estranhas. Quando a repressão tem sede de sangue, a casa é tão perigosa quanto a rua.

    O seu trabalho, quando pago, é sempre sobredesvalorizado e precário. Quando lhes é dada autonomia, é sempre sem condições para serem autónomos. A autonomia é uma das mil formas de autoescravização.

    Se viverem num país onde os escravos viveram no mesmo território que os seres considerados plenamente humanos, nunca deixarão de ser descendente de escravos, mesmo que sejam descendentes de reis ou de rainhas.

    Não podem planear a sua vida nem a da sua família. A cada momento ocorrem emergências e riscos que põem tudo a perder, inclusivamente a própria vida. Por mais que eduquem os filhos, sabem que eles muito provavelmente nunca poderão fugir a essa contingência.

    São tratados ocasionalmente com benevolência pelos seres considerados plenamente humanos, mas sabem que nenhum deles gostaria de ser como eles ou de viver com eles.

    Têm marcadores corporais, ideológicos ou religiosos que os tornam suspeitos aos olhos dos seres considerados plenamente humanos até prova em contrário, uma prova que nunca vale para o colectivo a que pertencem.

    São instigados a imitar o mundo dos seres considerados plenamente humanos, mas sob a condição de nunca lhe pertencer ou de o usar para benefício próprio.

    São permanentemente vigiados e policiados. A convivência de proximidade com os seres considerados plenamente humanos, aparentemente benévola e educativa, é muitas vezes a mais insidiosa.

    Vão à escola para desaprender tudo o que a família ou os antepassados lhes ensinaram e, sobretudo, para não conhecerem as verdadeiras razões da sua condição sub-humana. O que aprendem ensina-os a viver imitando os considerados plenamente humanos, mas nunca os ensina a serem diferentes deles e iguais a eles. O máximo que a escola lhes pode ensinar é não desprezar ou odiar, apesar de serem desprezados e odiados.

    Têm momentos de intensa alegria, mas isso é muito diferente de ser feliz.

    Sabem que ninguém controla o destino, mas que, no caso deles, alguém, que não eles, controla o seu destino.

    Alguém lhes disse que no passado havia uma classe de gente que não tinha nada a perder senão as suas grilhetas. Perguntam-se: tudo o que têm pode ser considerado grilhetas?

    Quando recebem ajuda travam a garganta para não ter de gritar: Maldita seja a ajuda por ser necessária!

    Estarem conscientes que foram expropriados e desarmados é a arma primordial para resistir.

    Viver do lado de cá da linha abissal

    Na sociedade moderna eurocêntrica (capitalista, colonialista e heteropatriarcal), viver do lado de cá da linha abissal é sinónimo de ser considerado plenamente humano. Ser plenamente humano nas condições da modernidade ocidental é poder viver realisticamente uma existência com as características diametralmente opostas às que acabei de enumerar para caraterizar a sub-humanidade.

    Viver a plenitude humana como se fosse uma condição universal é a inocência existencial primordial da modernidade ocidental. Ao longo de vários séculos foi-se construindo a imensa biblioteca da inocência ocidental, enumerando, analisando, detalhando, criticando, propondo incessantemente novas interpretações para todos os princípios, valores e ideais supostamente universais, constitutivos dessa inocência, e organizando toda a parafernália institucional político-jurídica, ideológica e educacional que oculte a fractura abissal em que assenta essa inocência.

    Foi assim que se controlou e legitimou a parcela da humanidade a que foi concedido o privilégio de representar a totalidade da humanidade titular dos princípios e valores universais. Foi um investimento ideológico e político imenso. O que estava em causa era a reprodução da linha abissal e a garantia da sua invisibilidade para poder ser plenamente eficaz na reprodução do sistema moderno e eurocêntrico de dominação.

    Se a biblioteca da inocência ocidental tiver de ser definida por conceitos essenciais, dois parecem evidentes: o liberalismo e o esquecimento da história. O liberalismo consistiu na prerrogativa de universalizar o que convinha à burguesia emergente e de particularizar (e, portanto, descartar) tudo o que se lhe opunha. O esquecimento da história consiste em concebê-la como passado e nunca como presente. Os EUA foram construídos à custa do extermínio dos índios, mas isso é passado ou filmes de Hollywood e John Wayne. O bem-estar dos europeus foi construído tanto com o roubo dos recursos naturais dos povos colonizados, quanto com o roubo dos seus recursos humanos através da escravatura, mas isso terminou com o fim da escravatura e as independências das colónias.

    A vigência dos princípios e valores universais e as instituições que lhes foram dando corpo nunca impediram que houvesse exclusões sociais no interior do mundo dos seres considerados plenamente humanos. Mas tais exclusões foram controladas e minoradas pela vigência efectiva desses princípios e instituições: primado do direito, democracia, direitos humanos. Ou seja, direitos e garantias a serem accionados para eliminar ou minorar tais exclusões.

    A cegueira constitutiva do liberalismo foi não ver que do outro lado da linha abissal, no mundo das relações entre os seres considerados plenamente humanos e os seres considerados sub-humanos, tais princípios e instituições não vigoravam, precisamente porque, se funcionassem do mesmo modo, poriam em causa a fractura abissal que lhes dera vida. Por isso, as práticas sociais nunca puseram em causa a universalidade dos princípios que violavam.

    O preço que se paga por se ser considerado plenamente humano e protegido como tal nestas condições reside num risco existencial. O risco de, em algum momento, vir a ser-se confrontado com a ideia de que essa condição de plenitude, longe de ser um direito natural e universal, é um cruel privilégio que, desde o século XVI, assenta na necessidade inelutável de submeter populações inteiras à condição de sub-humanidade.

    A ideologia da vigência universal que sustenta o princípio do primado do direito ou o princípio dos direitos humanos é tão hegemónica que as populações consideradas sub-humanas não têm sequer outra alternativa para minorar o sofrimento injusto a que são sujeitas senão apelar para esses princípios, mesmo sabendo que eles só virão em sua ajuda para aliviar marginal e transitoriamente a sua condição e para garantir a sua passividade ante o sistema de dominação.

    Ser plenamente humano nas condições da modernidade ocidental implica um grau de desumanização. Implica ter de viver com a ideia de que a plenitude humana, de que tanto se orgulham os modernos eurocêntricos, assenta nos escombros, nas ruínas, nas valas comuns da humanidade de tantos seres humanos ao longo da história moderna, e hoje mais que nunca. Arrisco-me a afirmar, pensando em Gaza, que esse grau de desumanização é vivido hoje com mais intensidade do que nunca, mesmo que seja uma vivência de passividade. É o resultado de processos sociais complexos e até contraditórios, tão contraditórios quanto as soluções que estão a ser dadas a essa vivência existencial.

    As sociedades contemporâneas estão dramaticamente divididas entre os grupos sociais que não querem lembrar a história e os grupos sociais que a não podem esquecer. Por isso, concluo este texto com a voz do grande poeta palestiniano, Mahamoud Darwish:

    A guerra vai acabar
    Os líderes apertarão as mãos
    A mulher idosa continuará à espera do seu filho martirizado
    A rapariga esperará pelo seu amado marido
    E as crianças esperarão pelo seu pai herói
    Não sei quem vendeu a nossa pátria
    Mas vi quem pagou o preço.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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