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Pepe Escobar

Pepe Escobar é jornalista e correspondente de várias publicações internacionais

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Você diz que quer uma Revolução (Russa)?

O livro mais recente de Andrei Martyanov fornece abundantes evidências sobre o tipo de letalidade que espera as forças militares dos Estados Unidos em uma possível futura guerra contra exércitos reais (não o Talibã ou o exército de Sadam Hussein)

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Por Pepe Escobar, de Moscou - Especialmente para o Consortium News

Tradução de Patricia Zimbres para o 247

Muito de vez em quando é publicado um livro indispensável, que defende de forma clara a sanidade nisso que é hoje um mundo pós-insano. Essa responsabilidade é desempenhada por "The (Real) Revolution in Military Affairs" (A (Verdadeira) Revolução nos Assuntos Militares, de Andrei Martyanov (Clarity Press), talvez o livro mais importante de 2019.

Martyanov é o pacote completo — que vem com os atributos extra de ser um analista militar russo de primeira linha, nascido em Baku nos velhos tempos Back in the U.S.S.R, e de viver e trabalhar nos Estados Unidos e escrever artigos e blogs em inglês.

Logo de partida, Martyanov, sem perder tempo, destrói não apenas os delírios de Fukuyama e Huntington, mas principalmente o infantil e totalmente sem sentido argumento da Armadilha de Tucídides de Graham Allison — como se a equação de poder entre os Estados Unidos e a China no século XXI pudesse ser interpretada com base em um paralelo com a inevitabilidade da Guerra do Peloponeso entre Atenas e Esparta há mais de 2.400 anos. O que vem a seguir? Xi Jinping como o novo Genghis Khan?

(Por sinal, o melhor ensaio atual sobre Tucídides é em italiano, de autoria de Luciano Canfora (Tucidide: La Menzogna, La Colpa, L’Esilio). Não há Armadilha nenhuma. Martyanov, visivelmente, se delicia em definir a Armadilha como "produto da imaginação" de gente que tem uma "compreensão muito vaga do que vem a ser a guerra real no século XXI. Não é de admirar que Xi tenha afirmado explicitamente que a Armadilha não existe). 

Martyanov já havia detalhado em seu esplêndido livro anterior, "Losing Military Supremacy: The Myopia of American Strategic Planning" (A Perda da Supremacia Militar: a Miopia do Planejamento Estratégico Americano), de que forma a "falta de experiência histórica em guerras continentais" acabou por "plantar as sementes da destruição final da mitologia militar americana  dos séculos XX e XXI, que está na base do declínio americano, devido à hubris e ao distanciamento da realidade". Ao longo de todo o livro, ele, ininterruptamente, fornece evidências sólidas sobre o tipo de letalidade que espera as forças militares dos Estados Unidos em uma possível futura guerra contra exércitos, forças aéreas, defesas aéreas e poderio naval  reais (não o Talibã ou o exército de Sadam Hussein).

Faça os Cálculos

Uma das conclusões é o fracasso dos modelos matemáticos americanos: os leitores do livro têm que digerir um número significativo de equações matemáticas. O ponto principal é que esse fracasso levou os Estados Unidos a "uma espiral descendente contínua de diminuição de capacidade militar frente à nação [Rússia] que eles pensaram ter derrotado na Guerra Fria".  

Nos Estados Unidos, a Revolução nos Assuntos Militares  (RMA - Revolution in Military Affairs) foi criada pelo falecido Andrew Marshall, também conhecido como Yoda, o antigo diretor do Office of Net Assessment - ONA (Gabinete de Avaliação Geral, o laboratório de ideias do Pentágono) e o verdadeiro inventor do conceito do "pivotar para a Ásia". Martyanov, no entanto, nos diz que o RMA, na verdade, começou como MTR (Military Technological Revolution), e foi criado por teóricos militares soviéticos na década de 1970. 

Um dos elementos básicos do RMA diz respeito a nações capazes de produzir mísseis de cruzeiro de ataque terrestre, ou TLAMs. Na situação atual, apenas os Estados Unidos, a Rússia, a China e a França  detêm essa capacidade. E existem apenas dois sistemas globais que fornecem orientação por satélite a mísseis de cruzeiro: o GPS americano e o GLONASS russo. Nem o BeiDou chinês nem o Galileo europeu qualificam-se - ainda - como sistemas globais de GPS.

Há também a Guerra Centrada em Redes (Net-Centric Warfare -  NCW). O termo foi cunhado pelo falecido Almirante Arthur Cebrowski em 1998, em um artigo escrito em colaboração com John Garstka, intitulado Network-Centric Warfare – Its Origin and Future" (A Guerra Centrada em Redes - sua Origem e Futuro). 

Com o uso de suas equações matemáticas, Martyanov não tarda a nos revelar que "a era dos mísseis subsônicos anti-navios  chegou ao fim". A OTAN, esse organismo com morte cerebral (copyright de Emmanuel Macron) agora tem que enfrentar o supersônico russo P-800 Onyx e o Kalibr-class M54 em um ambiente de guerra eletrônica altamente hostil". A totalidade das forças armadas modernas hoje emprega a Guerra Centrada em Redes (NCW), desenvolvida pelo Pentágono na década de 1990. 

Representação de uma futura rede de sistemas de combate. (soldiersmediacenter/Flickr, CC BY 2.0, Wikimedia Commons)

Martyanov menciona em seu novo livro algo que aprendi em minha visita a Donbass, em março de 2015: como os princípios da  NCW, "baseados nas capacidades C4ISR russas, fornecidas pelas forças armadas da Rússia aos exércitos numericamente inferiores das Repúblicas de Donbass (LDNR), foram empregados com efeitos devastadores nas batalhas de Ilovaisk e Debaltsevo, ao atacar as pesadas e pouco ágeis forças armadas ucranianas, ainda da época soviética".  

Não há como escapar do Kinzhal

Martyanov fornece informações abundantes sobre o mais recente míssil da Rússia – o Kinzhal aerobalístico Mach-10 hipersônico, recentemente testado no Ártico. 

O que é mais importante, explica ele, é que "nenhuma das atuais defesas antimísseis da Marinha dos Estados Unidos é capaz de derrubá-lo, mesmo no caso de o míssil ser detectado". O Kinzhal tem um alcance de 2.000 quilômetros, o que torna seus portadores, o MiG-31K e o  TU-22M3M, "invulneráveis à única defesa que uma esquadra de porta-aviões dos Estados Unidos, o principal pilar do poderio naval americano, é capaz de montar - os porta-aviões de combate. Esses aviões de combate simplesmente não têm alcance suficiente. 

O Kinzhal foi um dos armamentos anunciados na fala de 1º de março de 2018 proferida pelo Presidente russo Vladimir Putin na Assembleia Federal, que se constituiu em um verdadeiro divisor de águas. Esse foi o dia, afirma Martyanov, em que teve início a verdadeira Revolução nos Assuntos Militares (RMA), "alterando por completo e de forma drástica a face da guerra entre pares, a competição e o equilíbrio de poder global". 

Oficiais de alta patente do Pentágono, como o General John Hyten, vice-presidente do Estado Maior, admitiram oficialmente que não há "atualmente, medidas defensivas" contra, por exemplo, o veículo planador hipersônico Mach 27 Avangard (que torna inúteis os sistemas de mísseis antibalísticos), dizendo à Comissão de  Serviços Armados do Senado americano que a única saída seria a "dissuasão nuclear". Também não há, atualmente, medidas defensivas contra mísseis antinavios como o Zircon e o Kinzhal.

Qualquer analista militar tem conhecimento de que o Kinzhal, na Síria, destruiu um alvo terrestre do tamanho de um Toyota Corolla, depois de ser lançado de uma distância de 1.000 quilômetros em más condições atmosféricas. O corolário provoca pesadelos na OTAN: o comando e as instalações de controle da Organização são, na verdade, indefensáveis. 

Martyanov vai direto ao assunto: "É certo que a introdução de armas hipersônicas joga baldes de água gelada na obsessão americana em defender o continente norte-americano de ataques retaliatórios". 

O Kh-47M2 Kinzhal na Parada do Dia da Vitória de 2018, em Moscou. (Kremlin via Wikimedia Commons)

Martyanov, portanto, não perdoa os formuladores de políticas norte-americanos, a quem "falta o instrumental necessário para compreender a realidade geoestratégica atual, na qual a verdadeira revolução em assuntos militares... já havia rebaixado drasticamente as sempre infladas capacidades militares americanas, e continua a redefinir o status geopolítico dos Estados Unidos de forma bastante diferente de sua auto-proclamada hegemonia". 

E o que é ainda pior: "Essas armas asseguram uma retaliação garantida [os itálicos são de Martyanov] sobre os próprios Estados Unidos". Até mesmo as forças de dissuasão nuclear russas - e, em menor grau, as chinesas, como demonstrado recentemente - "são capazes de vencer os sistemas anti-balísticos norte-americanos  e destruir os Estados Unidos", apesar de toda a propaganda tosca que o Pentágono tenta vender. 

Em fevereiro de 2019, Moscou anunciou o término dos testes de um motor alimentado a energia nuclear para o míssil de cruzeiro Petrel. O Petrel é um míssil de cruzeiro subsônico com propulsão nuclear que pode permanecer no ar por um tempo bastante longo, cobrindo distâncias intercontinentais e capaz de atacar das direções mais inesperadas. Martyanov, em tom malicioso, descreve o Petrel como "uma arma de vingança, no caso de alguma autoridade americana que tenha contribuído para precipitar uma nova guerra mundial tente se esconder dos efeitos daquilo que eles mesmos desencadearam, se refugiando na relativa segurança do Hemisfério Sul". 

A Guerra Híbrida Enlouquecida 

Parada em Pequim celebrando o 70º aniversário da República Popular, em outubro de 2019 (Screenshot do YouTube)

Uma seção do livro trata dos avanços militares da China e dos frutos da parceria estratégica Rússia-China, como por exemplo a compra por Pequim de mísseis antiaéreos  S-400 Triumph  - "idealmente adequados para lidar com o exato tipo de equipamento de ataque que os Estados Unidos usariam no caso de um conflito convencional com a China". 

Em razão de sua data, a análise não chega a tratar do arsenal apresentado em inícios de outubro na parada em celebração do 70º aniversário da República Popular, em Pequim. 

Aí se incluem, entre outros, o "porta-aviões matador" DF-21D, projetado para atingir navios de guerra em alto mar a uma distância de até 1.500 quilômetros; o "Guam Killer" de alcance médio DF-26; o míssil hipersônico DF-17 e os mísseis de cruzeiro antinavio de longo alcance YJ-18A lançados de submarinos e de navios. Para não falar do DF-41 ICBM – a espinha dorsal das forças de dissuasão chinesas, capazes de alcançar o território continental dos Estados Unidos portando múltiplas ogivas. 

Martyanov não pode deixar de tratar da RAND Corporation, cuja razão de existir é a insistente pressão por mais dinheiro para o Pentágono - culpando a Rússia pela "guerra híbrida" (uma invenção americana), ao mesmo tempo em que se lamenta da incapacidade dos Estados Unidos de derrotar a Rússia em todos os jogos de guerra. Os jogos de guerra da RAND, atiçando os Estados Unidos e seus aliados contra a Rússia e a China, invariavelmente terminaram em catástrofe para a "melhor força de combate do mundo". 

Martyanov trata também dos S-500s, capazes de atingir aviões AWAC e, possivelmente de interceptar alvos hipersônicos não-balísticos. O S-500 e seu mais recente sistema estado-da-arte de defesa aérea de médio alcance, o S-350 Vityaz estarão prontos para entrar em operação em 2020.

Sua principal conclusão: "Não há paridade entre a Rússia e os Estados Unidos nos campos de defesa aérea, armas hipersônicas e desenvolvimento de mísseis em geral,  para citar apenas alguns - os Estados Unidos ficaram para trás em todos esses campos, não apenas em termos de anos, mas de gerações" [itálicos meus]. 

Por todo o Sul Global, são muitos os países que têm perfeito conhecimento de que a "ordem" - ou desordem - econômica norte-americana está à beira do colapso. Por outro lado, relações externas cooperativas, conectadas e baseadas em regras entre nações soberanas vem avançando na Eurásia - simbolizadas pela fusão das Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cinturão e Rota (BRI), da União Econômica Eurasiana (EAEU), da Organização de Cooperação de Xangai (SCO), do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura (AIIB) e do NDB (o banco dos BRICS).

Os principais fiadores desse novo modelo são a Rússia e a China. E Pequim e  Moscou não alimentam qualquer ilusão quanto à dinâmica tóxica de Washington. Conversas que tive com analistas de primeira linha no Cazaquistão, no mês passado, e em Moscou, na semana passada, mais uma vez ressaltaram a futilidade de negociar com pessoas descritas - com uma superposição de tons sarcásticos - como excepcionalistas fanáticos. A Rússia, a China e muitos países da Eurásia já entenderam que não há qualquer possibilidade de  negociações significativas com uma nação que insiste em descumprir todas as negociações. 

Indispensável? Não: Vulnerável

Martyanov não pode deixar de evocar a fala de Putin à Assembleia Federal, em fevereiro de 2019, depois de Washington ter abandonado unilateralmente o tratado INF, abrindo caminho para que os Estados Unidos empregassem mísseis de curto e médio alcance posicionados na Europa e apontados para a Rússia:

"A Rússia será forçada a criar e empregar tipos de armamentos... apontados contra as regiões de onde vêm as ameaças diretas, mas também contra as regiões que abrigam os centros onde são tomadas as decisões sobre o uso desses sistemas de mísseis que nos ameaçam.

Tradução: a Invulnerabilidade Americana chegou ao fim - para sempre. 

No curto prazo, as coisas sempre podem piorar. Em sua tradicional entrevista coletiva de fim de ano, em Moscou, que durou quase quatro horas e meia, Putin afirmou que a Rússia está mais que pronta para "simplesmente renovar o Novo Acordo START", que expira no início de 2021: "Eles [os Estados Unidos] podem nos enviar o acordo amanhã, ou nós podemos assinar e encaminhar a Washington". E no entanto, até agora nossas propostas ficaram sem resposta. Se o Novo START deixar de existir, nada neste mundo evitará uma corrida armamentista. Em minha opinião,  isso é ruim". 

"Ruim" é um eufemismo.  Martyanov prefere ressaltar que "a maioria das elites americanas, pelo menos até agora, ainda reside em um estado de dissonância cognitiva orwelliana", mesmo depois de a RMA real ter "destruído o mito da invencibilidade convencional americana fora da água". 

Martyanov é um dos poucos analistas - sempre de diferentes países da Eurásia - que advertiram quanto ao perigo de os Estados Unidos "entrarem acidentalmente  em uma guerra contra a Rússia, a China ou ambas, uma guerra impossível de ser ganha por meios convencionais, e menos ainda pelo pesadelo de uma catástrofe nuclear global". 

Será que isso bastaria para instilar ao menos um mínimo de bom-senso naqueles que comandam essa imensa galinha dos ovos de ouro que é o complexo industrial-militar de segurança? Não contem com isso.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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