Xi e Putin defendem o ganhos-para-todos versus o soma-zero
Para o jornalista Pepe Escobar, as falas de Xi Jinping e Vladmir Putin em Davos foram de fato complementares, enfatizando o "desenvolvimento econômico sustentável e com ganhos para todas as partes, principalmente as do Sul Global"
Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Então, a Agenda de Davos chegou ao fim.
Ali teve lugar a pré-estreia do Grande Reset, a Grande Reinicialização, trazida pelo anfitrião Herr Klaus Schwab, partidário de Kissinger e Oráculo do Fórum Econômico Mundial (WEF, em inglês).
Ainda assim, os chamados "líderes" empresariais e políticos continuarão a cantar em prosa e verso a Quarta Revolução Industrial - ou seus subprodutos mais brandos, como o Build Back Better (Reconstruir Melhor), o slogan favorito dos novos inquilinos da Casa Branca.
Os co-patrocinadores do WEF – da ONU e FMI até a Blackrock, a Blackstone e o Grupo Carlyle – continuarão a ampliar sua sincronicidade com Lynn Forester de Rothschild e seu fortemente empresarial Conselho para o Capitalismo Inclusivo com o Vaticano - com o Papa Por Francisco no comando.
E, sim, eles aceitam Visa.
Como seria de se esperar, os dois eventos de importância realmente crucial em Davos receberam pouquíssima ou nenhuma cobertura da imprensa por todo o cambaleante Ocidente: as falas do Presidente Xi e do Presidente Putin.
Já demos destaque ao cerne da fala de Xi. Além de sua vigorosa defesa do multilateralismo como sendo a única rota possível para o enfrentamento dos desafios globais, Xi ressaltou que nada de substantivo poderá ser alcançado se o abismo da desigualdade entre o Norte e o Sul não for reduzido.
A melhor análise aprofundada da extraordinária fala de Putin, de longe, foi apresentada por Rostislav Ishchenko, que tive o prazer de conhecer em Moscou, em 2018.
Ishchenko ressalta que "em termos de escala e impacto nos processos históricos, essa fala foi mais contundente que a soma das Batalhas de Stalingrado e de Kursk". A fala, acrescenta ele, foi totalmente inesperada, tanto quanto a estarrecedora intervenção de Putin na Conferência de Segurança de Munique, em 2007, que a "derrota acachapante" imposta à Geórgia em 2008 e que a volta da Crimeia, em 2014.
Ishchenko, além disso, revela também algo que o Ocidente jamais reconhecerá: "80 pessoas, dentre as mais influentes do planeta, não riram na cara de Putin como aconteceu em 2007 em Munique e, logo após essa fala pública, discretamente se inscreveram para uma conferência fechada com ele".
As importantes referências de Putin aos sinistros anos 1930 - "a incapacidade e a falta de disposição para encontrar soluções substantivas para problemas como esse, levaram, no século XX, à catástrofe da Segunda Guerra Mundial - justapuseram-se a uma advertência de senso comum: a necessidade de evitar que a Big Tech passe a dominar as políticas globais, já que ela, hoje, compete de fato com os estados.
As falas de Xi e Putin, na verdade, complementaram-se uma à outra - ressaltando um desenvolvimento econômico sustentável e com ganhos para todas as partes, principalmente as do Sul Global, aliado à necessidade de um novo contrato sociopolítico nas relações internacionais.
Esse ímpeto deve se basear em dois pilares: a soberania - ou seja, o velho modelo westphaliano (e não a "governança" mundial hiperconcentrada do Grande Reset) e o desenvolvimento sustentável propelido pelo progresso tecnocientífico (e não pelo tecno-feudalismo).
De modo que o que Xi e Putin propuseram, na verdade, foi um esforço coordenado para expandir as bases da parceria estratégica Rússia-China a todo o Sul Global: a escolha crucial que temos pela frente é entre os ganhos-para-todos e o jogo de soma-zero excepcionalista.
Mudança de regime naquele comuna
O mapa traçado por Xi e Putin já vem sendo examinado em exaustivos detalhes por Michael Hudson, por exemplo, neste ensaio baseado no primeiro capítulo de seu livro a ser brevemente lançado Cold War 2.0: The Geopolitical Economics of Finance Capitalism vs. Industrial Capitalism (Guerra Fria 2.0: A Economia Geopolítica do Capitalismo Financeiro versus Capitalismo Industrial). Muitos desses temas já foram tratados em uma conversa/entrevista recente entre Michael e eu.
O Sul Global inteiro está se perguntando como o contraste poderia ser mais gritante entre o modelo americano - a volta do neoliberalismo sob a forma da turbofinancialização - e o investimento produtivo no capitalismo industrial no Leste Asiático.
Alastair Crooke delineou a "atração" dúbia do modelo americano, inclusive a dos "mercados de ativos... separados de qualquer conexão com retornos econômicos"; mercados que "não são livres, e sim geridos pelo Tesouro"; e o "capitalismo empreendedor... transmutado em oligarquismo monopolista".
O óbvio contraponto a Xi-Putin em Davos foi um assim-chamado "relatório estratégico" lançado pelo The Atlantic Council, um think-tank da OTAN com o pomposo título de The Longer Telegram (O Telegrama mais Longo), como se o documento tivesse a relevância do Telegrama Longo, de George Kennan, de 1946, que projetou a contenção da União Soviética.
Bem, o mínimo que podemos dizer ao anônimo "ex-funcionário de alto escalão do governo com profundos conhecimentos" sobre a China é: Senhor Anônimo, você não é George Kennan". Na melhor das hipóteses, estamos lidando com um sub-Mike Pompeo curtindo uma tremenda ressaca.
Em meio a um tsunami de banalidades, ficamos sabendo que a China é uma "potência revisionista" que representa um grave perigo para todo o mundo democrático", e que é melhor que a liderança chinesa entre na linha e passe a "funcionar dentro da ordem internacional liberal liderada pelos Estados Unidos em vez de construir uma ordem rival".
A costumeira mistura tóxica de arrogância e condescendência entrega por completo o jogo, que pode ser resumido em: "conter a China e evitar que ela cruze as linhas vermelhas dos Estados Unidos" e aplicar o velho Dividir e Governar kissingeriano no caso Rússia-China.
Ah, e não se esqueçam da mudança de regime: caso a "estratégia" funcione, "Xi, a seu tempo, será substituído pela forma mais tradicional de liderança do partido Comunista".
Se for isso o que passa por poder de fogo intelectual nos círculos atlanticistas, Pequim e Moscou sequer precisam de inimigos.
O centro de gravidade asiático
Martin Jacques, hoje professor visitante na Universidade Tsinghua e pesquisador sênior no Instituto China da Universidade Fudan, é um dos poucos ocidentais verdadeiramente "especialistas" em China.
Ele, agora, vem enfocando o principal campo de batalha do choque entre os Estados Unidos e a China que hoje se desenrola: a Europa. Jacques observa que "a tendência em direção a um maior distanciamento entre a Europa e os Estados Unidos será lenta, tortuosa, eivada de conflitos e dolorosa". Estamos agora em um "novo território. O declínio norte-americano significa que o país tem cada vez menos a oferecer à Europa".
A título de exemplo, saltemos para uma característica distintiva da Iniciativa Cinturão e Rota (ICR)/Novas Rotas da Seda e de um de seus principais nós, o Corredor Econômico China-Paquistão (CECP): a Rota da Seda Digital .
Em parceria com a Huawei, cabos de fibra ótica vêm sendo instalados por todo o Paquistão - como vi com meus próprios olhos quando viajei pela Rodovia Karakoram, na região norte do CECP. Esse cabo de fibra ótica, indo do Karakoram até o Baloquistão, irá se conectar ao cabo submarino Paquistão-Norte da África Conectando-se à Europa (PEACE, em inglês) no Mar da Arábia.
O resultado será uma conectividade de ponta entre uma série de países participantes da ICR e a Europa, uma vez que a secção mediterrânea já está em construção, indo do Egito à França. Antes do final de 2021, a totalidade do cabo de fibra ótica de 15 mil quilômetros estará em funcionamento.
O que mostra que a ICR não trata apenas da construção de estradas, represas e redes de ferrovias de alta velocidade, mas também, e especialmente, da Rota da Seda Digital, intimamente ligada à cibertecnologia estado da arte chinesa.
Não é de surpreender que Jacques tenha perfeita compreensão de que a "tração gravitacional exercida pela China e pela Ásia em geral vem atraindo a Europa para o Oriente. Nada ilustra melhor esse fenômeno que a Iniciativa Cinturão e Rota proposta pela China".
Em ReOrient: Global Economy in the Asian Age, (ReOriente: a Economia Global na Era Asiática), um livro extraordinário publicado ainda em 1998, o falecido e grande Andre Gunder Frank destruiu exaustivamente o eurocentrismo, demonstrando que a ascensão do Ocidente não passou de uma falha histórica e de uma consequência do declínio do Oriente, datando de inícios do século XIX.
Agora, apenas dois séculos depois, o centro de gravidade do planeta retorna à Ásia, como foi pela maior parte da história escrita. O destino daqueles que preferem se cegar às evidências, e que são incapazes de se adaptar, é condenarem a si mesmos à mais total irrelevância.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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