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    Valéria Dallegrave

    Jornalista, escritora e dramaturga

    35 artigos

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    Xuxa, Mengele, Bolsonaro e a desumanização nossa de cada dia

    A “elite irresponsável”

    Mesmo afastada dos holofotes da mídia, Xuxa voltou a ser centro de polêmicas nos últimos dias. Em uma sociedade do espetáculo,  tudo que os famosos dizem ou fazem (de positivo ou negativo) chega com destaque ao público, ávido por saber sobre a vida de seus ídolos. Como professora de jornalismo, citei muito o exemplo da “rainha dos baixinhos” para ilustrar a chamada “elite irresponsável”. A denominação dada por Umberto Eco refere-se à camada da sociedade que, por ter projeção na midia, torna-se - até involuntariamente - um modelo social. Seriam parte desse grupo os artistas, esportistas e, atualmente, digital influencers.  

    Na época, o que levantava polêmicas era Xuxa ter anunciado sua intenção de uma “produção independente” para engravidar. Isso levou a muitos debates sobre o quanto ela poderia influenciar adolescentes a se aventurarem em uma gravidez que parecia, conforme seu ponto de vista, fácil e romântica. Para ficar bem claro: a opção da apresentadora em sua vida pessoal dizia respeito somente a ela, mas influenciou uma mudança de comportamento social, ao ser transmitida sob a ótica do espetáculo. Ou seja, a responsabilidade pela possivel repercussão  entre os jovens coube aos meios de comunicação, por divulgarem e ampliarem uma decisão individual como se fosse dominante, sem esclarecer os problemas sociais, econômicos e psicológicos que surgem para a maioria das mulheres, bem menos privilegiadas que Xuxa, quando acontece uma gravidez que precisam assumir sozinhas.

    Agora, Xuxa volta ao centro do debate por sugerir que presos sejam usados para testar vacinas: “acho que se são pessoas que está provado que irão passar sessenta anos na cadeia, cinquenta anos na cadeia, e que irão morrer lá... acho que poderiam usar ao menos um pouco da vidas delas para ajudar outras pessoas provando remédios, vacinas, provando tudo nessas pessoas.” Ela falou isso em uma live sobre os direitos dos animais. Com o propósito de defender que os mesmos não sejam usados em testes, ofereceu a alternativa nada original de substituí-los por humanos...   

    Foi muito criticada, provocando denúncias como a de que mais de 30 % dos encarcerados no Brasil nem sequer passaram por julgamento, ou que a maioria dos presos são pretos e pobres - os ricos conseguem ser mais “convincentes”? Não é difícil imaginar o motivo...

    O fato é que, mesmo sem levar em conta a dificuldade de existir uma justiça imparcial para todos, até em casos nos quais o indivíduo está condenado a passar o resto de seus dias na cadeia, a proposta “bem intencionada” de Xuxa é extremamente cruel, afinal seu pensamento parte de princípios como:

    •  A vida humana não tem valor em si, deve ter alguma utilidade prática
    •  Há vidas humanas de maior ou menor valor  
    •  Há quem tenha o direito de decidir quais são as vidas de maior ou menor valor e, no caso das consideradas de menor valor, decidir pelo indivíduo como deve ser “usada” sua vida


    Xuxa, Mengele e outros...  

    O que parece simples e lógico na sua opinião é um caminho sem volta. Foram princípios como estes que levaram a experimentos extremamente cruéis e sádicos por parte dos nazistas.  Para Mengele, conhecido como “anjo da morte”, a vida dos judeus não servia para nada e, aliás, eles iriam morrer na câmara de gás mesmo... Antes disso, poderiam contribuir para a humanidade com avanços na ciência – e, por extensão, no aprofundamento de estudos sobre a prática da eugenia no nazismo.  

    Com o objetivo da busca da pureza da raça, o tema predileto de Mengele era a genética. Embora diversos campos de concentração fizessem “experimentos” variados, usando judeus como cobaias, em Auschwitz, onde ele atuava, os gêmeos eram especialmente separados para “uso científico”. No início, passavam por exames de saúde, recebiam refeições melhores, e até eram incentivados a chamá-lo de “titio”. Depois eram mantidos em jaulas, tinham  tinta injetada nos olhos, na tentativa de alterar a pigmentaçao da íris - o que levava à infecção ou cegueira -, clorofórmio injetado no coração para causar morte simultânea - e comparar, na autópsia, os efeitos em cada um. Também obrigava casais de irmãos a fazer sexo, e chegou a costurar as costas e os pulsos de dois gêmeos na tentativa de criar artificialmente xipófagos.  Às vezes, tirava órgãos de crianças ainda vivas, sem anestesia, para ver se sobreviviam... 

    Mengele mergulhou fundo nas mesmas ideias que fundamentaram o raciocínio de Xuxa, até perder qualquer parâmetro de humanidade. Conta-se que fazia outras “pesquisas”, ainda... há relatos de que mandou cobrir com fita adesiva os seios de mães com bebês em fase de  amamentação, para descobrir quanto tempo levava até as crianças morrerem de fome. E fazia experimentos cruéis com grávidas, até ter como resultante dois corpos para o crematório.  

    A história da ginecologista romena judia Gisella Perl, poupada das câmaras de gás para trabalhar com Mengele, mostra em especial o pesadelo insano que teve lugar na Alemanha, então. Ela era incumbida de tentar trazer de volta à vida prisioneiros usados como “bolsas de sangue” para soldados feridos no front. Ao tomar conhecimento do destino reservado às grávidas, decidiu usar sua experiência para tentar salvar a vida das mães, induzindo-as a partos prematuros em sigilo. De um jeito ou de outro, porém, as crianças não sobreviviam - vale a pena ler a história completa na reportagem do El País “A mulher que 'destruiu' centenas de bebês para salvar suas mães dos nazistas”. 

    Em outros campos de concentração alemães, buscando descobertas científicas “em prol da humanidade”, eram testados agentes imunizantes e soros para prevenir e tratar doenças contagiosas como a malária, o tifo, a tuberculose, a febre tifóide, a febre amarela e a hepatite infecciosa. Claro que, para tanto, já que a vida dos que iam para as câmaras de gás nada valia, os prisioneiros eram primeiramente inoculados com essas doenças...  

    Mas a ideia de “usar” humanos como cobaias andou em outras partes do mundo. Nos anos 40, na Guatemala, os governos dos EUA e da Guatemala co-patrocinaram um estudo sobre sífilis que envolveu a infecção deliberada – e até onde se sabe sem o consentimento dos indivíduos – de prisioneiros e pacientes com doenças mentais (a vida deles valia menos?). Os Estados Unidos se desculparam oficialmente por isso, depois que um artigo de jornal levou a público as “experiências” realizadas - lembremos que o jornalismo pode ser decisivo para mudar os rumos de algumas situações inadmissíveis para a humanidade. Também é bom lembrar que o pai da ginecologia moderna, J. Marion Sims, ganhou muito de sua fama fazendo cirurgias experimentais em escravas (a vida delas valia menos?), sem anestesia, ao que consta.  

    Hitler, Bolsonaro e a desumanização

    Hitler (considerado um excelente estrategista por Bolsonaro) convenceu todo um país que era possível buscar uma “pureza racial”, baseado no pressuposto de que  alguns seres humanos eram superiores a outros - e suas vidas valeriam mais, sem dúvida. Inúmeras situaçóes desumanas surgiram a partir daí, além das câmaras de gás e campos de concentração. Um exemplo pouco conhecido é de que, para incentivar que homens e mulheres considerados “racialmente puros” se reproduzissem, o nazismo criou um programa de prostituição. Na Noruega, mulheres locais foram incentivadas a fazer sexo com militares alemães e dar luz aos filhos destes (o projeto Lebensborn). A frase de Hitler usada para publicizar o incentivo à maternidade entre alemães era: “Cada criança que uma mãe traz ao mundo significa uma batalha vencida para a continuidade do seu povo”.  A sentença, porém, era interpretada também no sentido reverso, como justificativa para matar crianças judias...

    As ideias que inspiram nossas ações são portas que se abrem para novas propostas de mundo, o nazismo gerou uma ferida indelével na humanidade, pois conduziu a um mundo hediondo, não mais de humanos, mas de bestas abomináveis. A história nos mostra que algumas ideias que inicialmente parecem inofensivas, quando acesas no coração dos homens, correm como rastilhos de pólvora, e destróem tudo ao redor. Um simples fósforo destrói florestas inteiras...  

    Por isso precisamos aprofundar os questionamentos, ir além da crítica à representante da “elite irresponsável” em pauta. Xuxa parece ter se dado conta que cruzou um limite perigoso, após ver a repercussão de sua fala gravou um pedido de desculpas. De minha parte, já cansei de criticá-la. Entendo que ela expressou, infelizmente, o pensamento de muitas pessoas, e nos deu a oportunidade de levantar reflexões sobre o tema. A sociedade ocidental, e talvez toda a humanidade, tem construído seus valores afastando-se do humano (no sentido de “sensível”). É recorrente que, na tentativa de resgatar vidas e direitos dos animais, se caia na desvalorização de vidas humanas. É tão difícil assim chegar ao sentimento (não pensamento) budista de que vidas simplesmente VALEM? Há uma grande ausência de compaixão por aí...

    Na sociedade em que o dinheiro comanda, cada um vale o capital que tem. Não se valorizam vidas, mas cifrões. Não é para menos que é aceito como normal o discurso do despresidente de que é preciso escolher entre o trabalho e a vida. Seu posicionamento isenta a responsabilidade do Governo Federal por salvar vidas, ao desconsiderar a possibilidade de oferecer um auxílio emergencial consistente – o que outros países fizeram pelo tempo necessário para controlar a pandemia. Sua postura, por que não dizer, genocida, tem sido bem pouco questionada pela imprensa corporativa acéfala, lamentavelmente. 

    Há que haver mais humanidade na política, no jornalismo, no comércio, em todas as áreas. E há que se perceber que fazemos parte da mesma espécie, e apenas com a superação do individualismo exacerbado iremos sobreviver. Portanto, quando tomo precauções contra a transmissão do vírus, não penso só em mim, penso naqueles que podem ser atingidos por minha irresponsabilidade. Os que ainda não saíram do estágio egoísta pensam apenas na ameaça ao seu “direito de ir e vir” e reivindicam o direito de  “arriscar suas próprias vidas”, sem perceber que a situação vai muito além disso. São crianças que precisam amadurecer, e rápido - antes que o rastilho de pólvora, com pandemia e desumanidade, crie um incêndio incontrolável...

    FONTES:  

    http://www.senado.gov.br/noticias/opiniaopublica/inc/senamidia/historico/1999/8/zn08122.htm

    https://hypescience.com/7-experimentos-medicos-monstruosos/

    https://super.abril.com.br/mundo-estranho/8-experimentos-crueis-do-nazista-josef-mengele-em-auschwitz/

    https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/16/internacional/1534433283_583698.html

    https://www.revistaplaneta.com.br/nazismo-livro-traz-novas-atrocidades-cometidas-por-josef-mengele/

    https://www.revistaplaneta.com.br/lebensborn-as-vitimas-pouco-conhecidas-da-loucura-nazista/

    https://www.brasildefato.com.br/2021/03/25/cinco-vezes-que-bolsonaro-ou-pessoas-ligadas-a-ele-recorreram-a-simbolos-nazistas

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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