YPF e Petrobrás: o papel do Estado na defesa da soberania energética na Argentina e no Brasil
Ontem, o governo argentino comemorou os 100 anos da fundação da YPF ( Yacimientos Petrolíferos Fiscales) que é a estatal argentina para a exploração, refino e venda do petróleo e derivados. O ato foi realizado em Tecnópolis (Buenos Aires), com 3 discursos de peso, do presidente da YPF (Pablo Gonzáles), da vice-presidenta (Cristina Kirchner) e do presidente (Alberto Fernandez), frente a vários ministros, governadores, prefeitos, políticos e líderes da Frente de Todos.
A YPF (Yacimientos Petrolíferos Fiscales) é a estatal argentina dedicada à exploração, refino e venda do petróleo e seus produtos derivados, como a Petrobrás. Desde longa data em 1922, a empresa foi criada no governo popular e democrático de Hipólito Yrigoyen, com apoio de setores militares nacionalistas, após 3 anos de tentativa para alcançar o auto-abastecimento nacional do petróleo negado pelo parlamento conservador. Yrigoyen enfrentou grandes setores econômicos nacionais e os monopólios anglo-americanos que, inclusive, o acusavam pelo seu convenio comercial com a URSS. O presidente da YPF era o engenheiro e militar Enrique Mosconi. Peron estruturou todas as medidas econômico-sociais nacionalistas posteriores, já respaldado na soberana YPF de Yrigoyen defendida com luta, suor e sangue dos trabalhadores petroleiros.
Cristina Kirchner, neste 100o aniversário da YPF, remarcou esta trajetória e o método em que a soberania energética nacional se impôs com decisão política, à revelia do parlamento conservador. Remarcou também, a batalha do seu governo kirchnerista em 2012 para recuperar a YPF que, com o avanço do neo-liberalismo de Carlos Menen em 1990, foi privatizada pela espanhola-Repsol, que controlou 97,8% do seu patrimônio; isso, somado, à avalanche de privatizações em outros campos da distribuição (gás, eletricidade), gerou empobrecimento e retrocessos na economia do país. Em 3 de maio de 2012, o projeto do governo de Cristina Kirchner para a YPF, declarado de interesse estratégico nacional, recuperou o abastecimento energético, expropriou e re-estatizou 51% da YPF com ampla votação na Câmara dos deputados, e virou lei.
Alberto Fernandez, destacou a atenção a dar sobre o presente e o futuro, sem deixar de valorizar a conquista histórica de Cristina e Nestor Kirchner na defesa da YPF soberana. É real que há que estar atento à contraofensiva golpista do poder hegemônico histérico, no presente, em todas os campos (financeiro, midiático e judicial) e que, em tempos de guerra, e escassez energética, ele está ávido a dar o bote neoliberal pior que nos anos 90, ao estilo repressivo da ditadura dos 75, investindo num retorno eleitoral em 2023. Porém, o debate é com quais medidas reagir e edificar o futuro sem exclusão social.
A ofensiva do chamado “poder real”, é continental, seja contra governos progressistas, ou dentro de governos conservadores (Brasil, Colômbia). Veja-se o exemplo do projeto sinistro e descarado do Ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, apoiado por Bolsonaro/Guedes para iniciar o processo de privatização da Petrobrás e do pré-Sal Petróleo S.A. Tudo isso, prévio à volta de Lula em outubro de 2022 com um Congresso ainda incógnito. Um Lula que já anunciou que seu governo irá renacionalizar a Petrobrás, impedir a privatização da Eletrobrás, do Banco do Brasil e dos Correios. Tudo isso, com um governo militarizado à direita, antes que Lula desperte o nacionalismo militar da Era Vargas, de Peron, Yrigoyen ou Mosconi. A greve anunciada dos petroleiros da Petrobrás merece destaque; os trabalhadores, dentro e fora da Petrobrás, são as maiores vítimas da privatização e não têm como esperar as eleições para impedir o saqueio.
A avidez de poder do setor financeiro internacional, da indústria de armas, evidenciada na guerra dos EUA e da Otan na Ucrânia contra a Rússia e a China, está presente, contra todos os governos progressistas presentes ou futuros da América Latina. Vejam a recente descoberta da criminosa tentativa de sabotagem explosiva na Refinaria El Palito da PDVSA (Empresa estatal de petróleo), denunciada pelo governo venezuelano como proveniente da Colômbia, anfitriã de bases militares norte-americanas, da OTAN, e de forças extraterritoriais desestabilizadoras da América Latina. Soma-se a isso o que Nicolás Maduro denuncia ao mundo: o bloqueio, 500 sanções ao petróleo e à indústria, sequestro de ativos e contas da Venezuela no exterior; por 14 meses não se pôde vender uma gota de petróleo, quando por 120 anos foi uma das primeiras exportadoras do mundo. A luta permanente dos trabalhadores de PDVSA frente às inúmeras ameaças a este patrimônio nacional é um exemplo para os petroleiros da Petrobrás.
Em tempos de escassez provocada pela guerra, a contestação ao poder econômico hegemônico dos EUA incluindo a alta votação a Gustavo Petro no primeiro turno na Colômbia, já precedida pela vitória de Boric no Chile, Xiomara Castro em Honduras e a portentosa possibilidade de Lula presidente no gigante Brasil, exacerbam a ira do império. As relações de forças na América Latina premem por recuperar os anos de inclusão social e de integração dos governos progressistas como na chamada década ganhada (2003/13) com Hugo Chávez, Fidel e Nestor Kirchner, contra a ALCA, apoderando o BRICS e a UNASUL. Agora, Lula inocentado perante a ONU, falando contra a OTAN na capa do Time dos EUA, como estadista e líder popular, reativa, sem dúvidas, as esperanças.
As sinalizações dadas por Lopez Obrador e Alberto Fernandez rechaçando a exclusão de Cuba, Venezuela e Nicarágua da Cúpula das Américas reforçam a união opositora ao imperialismo, que poderá conduzir à extinção da OEA. Desta forma o México e a Argentina expressam seu rechaço à tentativa de dominação dos EUA articulada com a visita de Christopher Dodd, assessor especial de Biden. Nicolás Maduro não só agradeceu a Alberto Fernandez pela solidariedade à Venezuela, como o estimulou a participar da Cúpula da Américas, como presidente atual da CELAC e representante dos protestos à exclusão do Sul e do Caribe. Veja mais na entrevista de Maduro no programa da Radio das Mães da Praça de Maio e Rádio do Sul na Argentina.
Os governos progressistas da América Latina estão dispostos a não pagar o custo da guerra dos EUA e da OTAN; não cair como a União Europeia, usada como bucha de canhão na armadilha de Biden para fortalecer a guerra contra a Rússia na Ucrânia. Uma guerra, onde o boicote econômico contra a Rússia terminou num boomerang contra a Europa; a Rússia segue ilesa com energia própria graças à Gasprom estatal. O caminho dos acordos comerciais com a China e a Rússia, e o fortalecimento dos BRICS, do Mercosul (com a participação da Rússia), uma possível moeda regional própria, tornam-se o alicerce sine-qua-non da reconstrução da integração latino-americana dos povos. A Argentina atual e o Brasil com Lula estarão unidos nesta empreitada.
A comemoração da YPF, se dá ao mesmo tempo em que se anunciam medidas de implementação do gasoduto Nestor Kirchner em Vaca Muerta (uma das maiores fontes de gás natural do mundo) para aumentar a produção, a distribuição, o auto-abastecimento e a mão-de-obra; não só a exportação. Energia para quê e para quem? O Estado popular tem tarefas pendentes para desprivatizar a distribuição da eletricidade e gás à população. Corre-se contra o tempo: o macrismo não só endividou o país com o FMI, evadiu capital ao exterior, mas inativou obras estratégicas como esta.
Os discursos de Cristina e Alberto neste 100o aniversário da YPF deixam lições comuns aos países vizinhos, como o Brasil, sobre os caminhos para a defesa de uma das fontes de energia (não a única – há a solar, a da biomassa também) que implicam num fator econômico, mas, de imediato, numa disputa política histórica entre o Estado e o mercado. Estado, estritamente capitalista ou popular? Esse é um desafio para os governos progressistas. Mais Estado sim; para quê e para quem?
É certo que é preciso estar atento ao presente e futuro. Ou seja, ao presente contexto de guerra, com consequências nefastas da pandemia, da escassez energética e alimentar mundial (enquanto exista capitalismo). Então, há que intervir sobre YPF-Agro também, como propõe o economista Alfredo Zaiat. E é preciso concordar dentro do governo quais são as medidas para garantir o futuro dos excluídos da vida, e uma distribuição equitativa. Cristina conclama o presidente a uma maior audácia, a pôr-se firme frente às negociações com empresários, tipo Techint; a valer-se do seu mando presidencial para usar a caneta e tomar decisões. Seu discurso evoca momentos históricos em que Yrigogen decidiu com a canetada (com militares nacionalistas por trás) criar a YPF, 100 anos atrás, quando sequer havia meios de comunicação para discursar numa rede nacional de TV. Diga-se de passagem, rede comunicacional carente no governo atual. Difícil convencer e mobilizar o povo se não há suficiente comunicação oficial e pública para contrapor-se ao poder midiático do Clarin/La Nación e às redes sociais dominadas pela verborragia do direitista, libertário Milei.
O presidente Alberto Fernandez acaba de demitir o Ministro de Desenvolvimento Produtivo, Matias Kulfas (substituindo-o por Daniel Scioli, atual embaixador argentino no Brasil), após uma operação midiática de funcionários desse ministério contra a vice-presidenta, Cristina Kirchner; ou seja, Kulfas possibilitou uma falsa denuncia de um ato de corrupção oficial. Tal demissão, fortalece a ala crítica kirchnerista, e sinaliza um rumo que deve tomar a unidade da Frente de Todos contra as corporações econômicas que mantém seu peso no governo atual. O fato se deu, logo após a comemoração dos 100 anos de YPF. Um interessante sinal. Uma canetada de Alberto em sintonia com Cristina que gera expectativas sobre mudanças não só sobre “funcionários que não funcionam”, mas definições econômicas contundentes, menos dependentes do FMI e da oligarquia e mais voltadas a defender a soberania nacional, aos pobres e aos trabalhadores.
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