Zemmour: o revanchismo do colonizador
"A quatro meses e meio da eleição presidencial francesa, as pesquisas mostram que a extrema-direita poderá beirar os 35% dos votos no primeiro turno. Talvez mais grave ainda seja o risco de vermos o nazifascista, que anunciou oficialmente sua candidatura no dia 30 de novembro, na segunda volta", escreve Milton Blay
A quatro meses e meio da eleição presidencial francesa, marcada para abril de 2022, as pesquisas mostram que a extrema-direita poderá beirar os 35% dos votos no primeiro turno (somados os votos de Zemmour e Le Pen). A título de comparação, em 2017 Marine Le Pen obteve 21,5 %. Talvez mais grave ainda seja o risco de vermos o nazifascista, que anunciou oficialmente sua candidatura no dia 30 de novembro, na segunda volta.
Éric Zemmour é racista, anti-imigração, misógino, visceralmente islamofóbico, revisionista, pronto a reescrever a história a ponto de aplaudir o colaboração com a Alemanha nazista, profundamente xenófobo.
Esse é o homem que poderá vir a ser o concorrente de Emmanuel Macron.
Quando lhe falam da discriminação que negros e muçulmanos sofrem na França, Zemmour responde que “o empregador tem o direito de recusar um árabe ou um negro” — apesar disso ser ilegal. Já foi condenado a 3000 euros de multa por incentivo ao ódio religioso, devido a declarações feitas em 2016, em que, entre outras coisas, dizia que os muçulmanos “tinham de escolher entre o islã e a França” e que “em inúmeros subúrbios franceses se vive uma luta para islamizar o território, uma jihad”. Quanto aos menores imigrantes não-acompanhados, não hesitou em classificá-los como “ladrões, assassinos, violadores”.
Defende a troca dos nomes árabes como Mohamed por François, Christian ou Éric, por que não. Responde atualmente a outros processos por racismo.
A sua misoginia é igualmente ofensiva, a tal ponto que o próprio partido ultradireitista de Marine Le Pen critica as suas “opiniões brutais sobre as mulheres”, como a de que as mulheres “fazem com que o poder se evapore” ou “têm uma inteligência diferente da dos homens”. Surgiram recentemente denúncias (não comprovadas) de agressões sexuais cometidas por Zemmour.
Em seu livro La France n’as pas dit son dernier mot , refere-se ao discurso das mulheres nas campanhas eleitorais da seguinte forma: “Numa sociedade tradicional, o apetite sexual dos homens vai de par com o poder; as mulheres são o objetivo e a recompensa de todo o homem dotado que aspire a elevar-se na sociedade. As mulheres reconhecem-no, escolhem-no, apreciam-no. Bonaparte [ainda] desconhecido teve de ir a uma prostituta para perder a virgindade; Napoleão imperador do Ocidente acumulava amantes.”
Seu discurso vai além da retórica fascista, abrange uma outra dimensão, a da “narrativa civilizacional e racial da colonização”. O nacionalismo identitário está onipresente no ressentimento contra os que conquistaram a liberdade e a independência em guerras que a França, potência colonial, perdeu, a mesma recusa em reconhecer os crimes coloniais.
Estomagado, Alvaro Vasconcelos, diretor do Instituto de Estudos e de Segurança europeu, se pergunta:
“Como não ficar indignado ao ouvir Zemmour, propulsado por uma onda midiática, propagandear a tese da “Grande Substituição" – os antigos colonizados iriam agora colonizar a França –, ao ouvi-lo defender a tortura e afirmar que os franceses que apoiaram a libertação da Argélia deviam ter sido fuzilados? Como não ficar arrepiado quando cerca de 40% dos eleitores dizem que votariam em alguém que defende Pétain (presidente da França colaboradora) e retoma as teses antissemitas contra o capitão Dreyfus?”
Para Éric Zemmour, os crimes coloniais, o racismo civilizacional devem ser vangloriados ou jogados debaixo do tapete, ao invés de serem denunciados, pois isso poria em causa o passado glorioso e sem mácula que propagam. Para ele, ser francês significa solidarizar-se até com os crimes do passado, como faz ao afirmar que o General Bugeaud (o carrasco da Argélia) “começou a massacrar os muçulmanos e mesmo certos judeus” quando chegou à Argel em 1840. “Ser francês” é estar do lado do general »; disse.
Não é por acaso que Zemmour fala em guerra civil, em guerra de civilizações, pois alicerça o seu discurso na ideologia racista com que era justificada a exploração colonial.
Os fascistas impuseram a pauta
Segundo Vincent Martigny, professor de Ciências Políticas na Universidade de Nice e da Sciences Po, quando se pergunta aos franceses se pensam que há um excesso de imigrantes na França, 50% dizem sim.
“Os eleitores da esquerda e do centro, socialistas, comunistas e d’A República em Marcha, não acham que esta afirmação seja verdadeira, só 30% a apoiam. Mas, em contrapartida, na direita e na extrema-direita esta ideia é partilhada por 90 a 95% das pessoas”. “O que se pode dizer é que a extrema-direita conseguiu impor as suas ideias à direita" outrora republicana e conseguiu posicionar as suas ideias no campo midiático.
Ainda mais inquietante é que entre os demais candidatos ninguém parece disposto a confrontar a retórica populista. Os candidatos da ex-direita democrática competem entre si para ver quem melhor se apropria do discurso de Le Pen e Zemmour contra os imigrantes, ao mesmo tempo que aplaudem a proposta trumpista do Presidente do Conselho Europeu de financiar um muro entre a Polônia e a Bielorrússia para evitar a entrada de refugiados na União Europeia.
É a prova cabal de que a extrema-direita conseguiu impor as suas principais temáticas: imigração e identidade nacional. São os únicos assuntos debatidos hoje na campanha, como se houvesse (e não há) uma enorme crise migratória.
Se temos a impressão de que a França virou à direita extrema, é porque há um embalo midiático em torno de Zemmour, que ocupa o tempo de antena e os comentários, enquanto os problemas económicos e sociais são relegados para segundo plano.
O resultado é que Zemmour impõe os temas, e para ele só há dois: a imigração e a definição de uma identidade francesa inquestionável.
Chegamos ao ponto em que Marine Le Pen parece ser mais moderada do que ele!”
Para Zemmour, ela seria uma espécie de traidora, ao se comportar como uma mulher de esquerda.
Em 2017, Macron foi eleito com um discurso de desconstrução da retórica identitária nacionalista que vitimiza o colonizador. Em plena campanha eleitoral, declarou que o colonialismo era um crime contra a humanidade, e no seu mandato tomou algumas iniciativas importantes para reconhecer os crimes do Estado francês, sobretudo, mas não só, durante a guerra da Argélia. Recentemente, decidiu devolver 26 obras-primas que tinham sido pilhadas ao Benim. Estas ações inscrevem-se num processo iniciado por Jacques Chirac, que reconheceu a responsabilidade do Estado francês, sob autoridade de Pétain, na deportação de judeus para os campos de extermínio.
Há de se constatar no entanto, que o reconhecimento da perversidade do colonialismo foi acompanhado por uma visão securitária sobre as migrações e por posições antimuçulmanas de membros do seu governo, contribuindo assim à banalização da retórica da extrema-direita.
A esquerda socialista, radical e ecologista está fora do jogo eleitoral, sem qualquer chance de vitória.
Macron ainda é a alternativa ao nacionalismo identitária e as pesquisas dão como certa a sua passagem ao segundo turno das eleições. Hoje, sua reeleição parece provável, não pelo trabalho de memória anticolonial, mas porque conseguiu revalorizar o papel do Estado na crise pandêmica e conquistar a Alemanha para um ambicioso plano de recuperação europeu – exatamente o contrário da política de austeridade neoliberal seguida pela União Europeia na depressão de 2008. O governo francês foi o mais atuante de todos na Europa durante as crises sanitária e econômica. Macron mostrou ser um pragmático acima de tudo.
O medo da Grande Substituição
Apesar disso, não restam dúvidas de que a vitória de Macron será mais difícil que em 2017. Parte da esquerda terá dificuldade em seguir o apelo de votar em Macron na segunda volta, em razão das suas opções políticas; além fraqueza de Mélenchon, líder da França Insubmissa, que contribuiu para a diabolização do presidente.
O que é então o zemmourismo? Explica o politologo Jean-Yves Camus, especialista da extrema-direita: “É um nacionalismo e um populismo que traduzem o medo do declínio francês e do multiculturalismo, da cultura judaico-cristã, com uma fixação no islã e na imigração não-europeia, que conduziria à ‘grande substituição’” da população francesa pela população muçulmana, um conceito desenvolvido pelo escritor francês Renaud Camus, muito apreciado entre as forças da extrema-direita moderna.
O zemmourismo também é sinônimo de linguajar chulo, que nos leva a lembrar a falta de educação de um tal Jair Messias Bolsonaro. Ao mostrar sua verdadeira cara, dias atrás Éric Zemmour visitou a cidade de Marselha, tendo sido acolhido por militantes antifas. Uma mulher se aproximou de seu carro e lhe mostrou o dedo médio. Ao que o nazifascista respondeu com o mesmo gesto, acrescentando duas palavras indignas de um presidenciável:
- Bem fundo!
O fenômeno Zemmour nos ensina que o triunfo da democracia sobre o populismo exige alternativas democráticas à hegemonia neoliberal, ao desrespeito ao povo e ao cargo, mas também à desconstrução do discurso racista colonial, ainda muito presente.
Pois como disse Siyabulela Mandela, bisneto do responsável pelo fim do regime da apartheid, “O racismo está no ADN dos países colonizadores”. É preciso uma verdadeira revolução para acabar com o racismo. Uma "revolução" que "não precisa de armas" mas de um decreto. É preciso que o racismo seja declarado "crime contra a humanidade".
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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