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    Ex-ministros de dez governos se unem contra retrocessos da gestão Bolsonaro

    Quatro dezenas de ex-ministros e ex-ministras de sete presidentes diferentes deixaram de lado as diferenças ideológicas e se uniram em defesa da Constituição, além de denunciarem as ameaças à democracia e ao desenvolvimento nacional por parte do governo jair Bolsonaro

    Encontro de ex-ministros da Educação ocorreu em junho em São Paulo (Foto: Leonor Calasans | ECA-USP)

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    Pedro Biondi, Brasil de Fato - Cinco cartas e coletivas de imprensa, quatro dezenas de ex-ministros e ex-ministras, três décadas e meia de história. Os seis meses de governo Bolsonaro provocaram uma reunião inédita de figuras centrais da política, da administração pública e das políticas públicas brasileiras. O denominador comum parece ser a defesa da Constituição Federal e da contínua construção do arcabouço jurídico-institucional para a efetiva implementação de muitos dos direitos ali previstos.

    Titulares de pastas de sete presidentes deixaram de lado diferenças ideológicas e de gestão – que, em alguns casos, constituem divergências históricas – para denunciar ameaças à democracia e ao desenvolvimento nacional. Participam desses chamados à razão representantes dos governos José Sarney, Fernando Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer. Nada menos que dez gestões, levando em conta as reeleições e considerando os governos dos vices como gestões próprias.

    O conjunto de signatários reúne, por exemplo, um político que votou pelo impeachment de Dilma, Cristovam Buarque (como senador pelo PDT-DF), um jurista que participou centralmente da articulação do processo, Miguel Reale Jr., e um dos principais responsáveis pela defesa da ex-presidenta, José Eduardo Cardozo. Ou candidatos que se enfrentaram na disputa do ano passado, a exemplo de Fernando Haddad e Marina Silva.

    Contra o “desembarque”

    Com forte repercussão internacional, a primeira dessas reuniões a vir a público denunciou, em maio, o desmonte da governança socioambiental no Brasil, “em afronta à Constituição”. A escalada recente é descrita como “uma série de ações, sem precedentes, que esvaziam a sua capacidade de formulação e implementação de políticas públicas do Ministério do Meio Ambiente”.

    O manifesto lembra dos compromissos internacionais em torno do esforço de conter o aquecimento global. Destaca a pressão sobre as populações indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais e a estimativa de 1 milhão de espécies sob risco de extinção no planeta. Constata que, com discurso contra os órgãos de controle ambiental, os comandantes do país estão dando a “senha” para mais desmatamento e mais conflitos violentos.

    “Reafirmamos que o Brasil não pode desembarcar do mundo em pleno século 21. Mais do que isso, é preciso evitar que o país desembarque de si próprio”, alertam Marina, Rubens Ricupero, Gustavo Krause, José Sarney Filho, José Carlos Carvalho, Carlos Minc, Izabella Teixeira e Edson Duarte.

    O grupo se reúne e debate questões da área desde a polêmica do Código Florestal, e que se manifestou em outubro em artigo contra o ensaio de “descriação” da pasta e a saída do Brasil do Acordo de Paris.

    “Somos gestores que vêm de posições político-partidárias distintas e resolvemos nos pronunciar após sucessivas manifestações colocando em xeque diversas políticas e todo o modelo de gestão ambiental pública do país”, situa Izabella Teixeira, que comandou a área de 1º de abril de 2010 a 12 de maio de 2016 (primeiro e segundo governos Dilma).

    Ela recorda a trajetória de construção da política nacional da área e da estrutura para colocá-la em prática – leis, agências federais e nacionais, instâncias de consulta e participação, convênios com outros países, programas e projetos.

    “Tudo isso remonta a 1989 [o ano seguinte à sanção da Constituição], no projeto Nossa Natureza, do governo Sarney”, recorda, acrescentando que seu primeiro cargo foi no Ministério do Meio Ambiente (MMA), em 1985, e ela trabalhou com todos os presidentes desde então. “Todos os governos da Nova República, com diferentes bandeiras, cumpriram a Constituição. E a cumpriram no processo de construção de novas políticas públicas dentro do quadro democrático, tendo o Estado como regulador.”

    A bióloga, mestre em planejamento energético e doutora em planejamento ambiental, lembra que cada gestor elegeu prioridades, mas mantendo como pressupostos a proteção das riquezas naturais e a descentralização federativa. “O governo atual fala como se nada tivesse acontecido e fôssemos todos corruptos.”

    O atual titular do MMA, Ricardo Salles, divulgou uma nota de resposta à carta dos antecessores no mesmo dia. Ele nega riscos para as unidades de conservação e a imagem do país e afirma que os problemas em curso decorrem de um passivo de má gestão e corrupção. Também fala em “permanente e bem orquestrada campanha de difamação promovida por ONGs e supostos especialistas”. Quanto à linha que seguirá, finaliza: “Essa é a missão de conciliação da preservação e defesa do meio ambiente com o necessário e impostergável desenvolvimento econômico, determinada pelo Sr. Presidente da República, que este Ministério do Meio Ambiente, juntamente com os demais órgãos do Governo, se dispõem a cumprir”.

    “Dialogar é também ouvir”, diz Izabella Teixeira, lembrando que durante o debate do novo Código recebeu, com Dilma, o grupo de notáveis do qual hoje faz parte. “E quando construímos as NDC [contribuições nacionalmente determinadas] para o acordo do clima, conversei com vários ex-ministros e outras lideranças políticas e técnicas.” Segundo Izabella, as interlocuções com a presente gestão só encontram canais no Ministério da Agricultura e da Pecuária, de posições hoje ultrarruralistas, e o da Economia.

    Mais violência

    Dá para dizer que o período de extrema-direita se opõe a todos que o precederam desde Sarney, no sentido de ser o primeiro que opta abertamente por uma desconstrução das estruturas que implementaram a Constituição, em vez de dar continuidade a tal sequência?

    “É uma interpretação válida”, responde José Carlos Dias, titular do Ministério da Justiça (MJ) de julho de 1999 a abril de 2000, nos segundo governo FHC.

    “Questões fundamentais, por exemplo, referentes ao problema das armas: esta é uma posição que nos une a todos”, ilustra o advogado criminalista. “Todos nós temos uma posição absolutamente contrária a essa política armamentista que é a marca do atual governo.”

    Ele redigiu a “Carta aberta pelo controle de armas” com dez pares que ocuparam o posto no período democrático, mais Raul Jungmann, que foi ministro extraordinário da Segurança Pública – pasta criada em 2018 por Michel Temer e extinta neste ano por Bolsonaro.

    “Esse compromisso nosso com o respeito à Constituição, isso não existe”, reforça Dias. “A atual política é absolutamente contrária a esse respeito absoluto e rigoroso à Constituição.”

    Além dos decretos pró-armas de fogo – depois derrubados pelo Senado e parcialmente restabelecidos com outros decretos que favorecem a compra e o porte, rejeitados pela maioria da população –, o documento de 4 de junho opõe-se ao autointitulado “pacote anticrime” de Moro. Foi divulgado em ato que lançou campanha de mais de 70 entidades, como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas (Abracrim) e a Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD), para as quais o conjunto proposto de medidas vai aumentar os índices de violência.

    Os ex-ministros recordam a mobilização que aprovou o Estatuto do Desarmamento, sua execução “universal” e a queda da taxa de homicídios nos primeiros anos de sua vigência.

    “Independentemente dos partidos que estavam no poder e da orientação dos governos dos quais fazíamos parte, nosso compromisso sempre foi o de fortalecer avanços que consolidassem o Brasil como uma referência de regulação responsável de armas e munições para a América Latina e para o mundo”, registra o texto, subscrito por Aloysio Nunes, Eugênio Aragão, José Eduardo Cardozo, José Gregori, Luiz Paulo Barreto, Miguel Reale Jr., Milton Seligman, Tarso Genro e Torquato Jardim, além de Dias e Jungmann.

    Para o entrevistado, embora representem diferentes pensamentos e tenham divergido em várias posições, eles viam de maneira semelhante o papel do Ministério da Justiça, “uma instituição absolutamente primordial num governo democrático”. Na sua avaliação, a postura do ministro mais popular do bolsonarismo (apesar de afetado pelas revelações da Vaza Jato) não honra essa tradição.

    “Todos que passamos pelo Ministério da Justiça percebemos que as manifestações do ministro [Moro] estão absolutamente em desacordo com o espírito que esteve presente em nós quando exercemos o cargo”, pontua.

    “A maneira como vemos a questão da segurança pública, principalmente, a atuação da Polícia Federal, são questões que são um ponto em comum. Ele faz parte de um governo que tem uma pregação absolutamente em desacordo com o nosso pensamento, que não tem nenhum traço em comum com o nosso pensamento.”

    Responsável pela pasta de Ciência e Tecnologia entre 15 de março de 1990 e 21 de agosto de 1991, e pela de Educação entre 22 de agosto de 1991 e 4 de agosto de 1992, o físico José Goldemberg assinou as mensagens de ambas as áreas, mas declinou do convite para endossar a do Meio Ambiente, que também liderou no governo Collor – quando as três áreas estavam vinculadas à Presidência da República como secretarias com status ministerial.

    Ele, que integra o grupo ambiental e participou do artigo pós-segundo turno, avalia que pontos como a relação com os conselhos, as escolhas para a chefia dos órgãos e os contingenciamentos fazem parte daquilo que cada mandatário tem legitimidade para definir, da organização da administração de acordo com uma determinada visão.

    “Como cidadão, acho que o governo tentou fazer coisa demais ao mesmo tempo. Como ex-ministro, a gente precisa ser um pouco cauteloso”, argumenta.

    “Não nos cabe dizer o que o atual responsável deve fazer, e sim usar nossa experiência para alertar para sobre determinados aspectos do problema”, delimita, exemplificando com a crítica aos cortes sem critério e à interrupção de bolsas de estudo, bem como à falta de atenção à educação básica. Apesar da ressalva, o físico reconhece que o ineditismo dessa união de forças mostra a gravidade de certas situações.

    “O que é fundamental é que vários membros do atual governo têm feito declarações obscurantistas, contrariando o que a ciência nos diz. Isso é algo que precisa ser enfrentado com firmeza. Negar a Teoria da Evolução e o aquecimento global, negar que a Terra é redonda, isso não pode ser tolerado”, defende o professor emérito da Universidade de São Paulo (USP). Na sua avaliação, a disseminação das ditas “pós-verdades” prejudica toda a atividade de pesquisa fomentada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pelos órgãos de apoio.

    “Retrocesso sem paralelo”

    A situação orçamentário-financeira é central em ambas as declarações conjuntas. “CT&I em Estado de Alerta” prevê o risco de “um retrocesso sem paralelo na história da Ciência brasileira”, área sublinhada como essencial ao desenvolvimento econômico e social e à soberania.

    “Invariavelmente, as nações desenvolvidas são aquelas que têm Ciência e Tecnologia próprias e capacidade aprimorada de inovação”, assinala a carta, subscrita por mais nove antecessores do astronauta Marcos Pontes: Luiz Carlos Bresser-Pereira, Ronaldo Sardenberg, Sergio Rezende, Roberto Amaral, Aloizio Mercadante, Marco Antonio Raupp, Clélio Campolina, Aldo Rebelo e Celso Pansera. O eixo é o entendimento de que o Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação constitui uma política de Estado, somado à necessidade de embasar as políticas públicas nas evidências científicas.

    “Vivemos hoje a maior das provações da nossa história”, afirmam os autores, mencionando a fuga de cérebros (perda de pesquisadores para o exterior), os ataques às universidades públicas e a intenção de privatizar empresas estratégicas. Eles conclamam: “Esta bandeira pelo conhecimento não tem partido e não pertence somente à comunidade científica, acadêmica e empresarial, mas deve ser levantada por toda a sociedade”.

    A preocupação com a autonomia universitária também permeia o texto relativo à Educação, divulgado como nota de repúdio. Outro ponto é a discussão do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), mecanismo de financiamento que precisa ser revisto até o ano que vem.

    “Contingenciamentos ocorrem, mas em áreas como educação e saúde, na magnitude que estão sendo apresentados, podem ter efeitos irreversíveis e até fatais”, alerta a nota, segundo a qual as últimas décadas consolidaram um consenso que reconhece o avanço educacional como a grande prioridade nacional.

    Tal priorização é mencionada como condição para alavancar da economia e como “a chave” para a inserção na sociedade do conhecimento: “Numa palavra, a educação se tornou a grande esperança, a grande promessa da nacionalidade e da democracia. Com espanto, porém, vemos que, no atual governo, ela é apresentada como ameaça”.

    Os seis ex-ministros (Goldemberg, Murilo Hingel, Cristovam Buarque, Fernando Haddad, Aloizio Mercadante e Renato Janine Ribeiro) criaram o Observatório da Educação Brasileira e propõem a articulação de uma frente nacional em defesa da área.

    Identidade, direito e vetor de desenvolvimento

    Mais recente da série de manifestos ministeriais, o dos ex-titulares do MinC expressa preocupação com “a desvalorização e hostilização à cultura brasileira” e destaca a garantia da plena liberdade de expressão como responsabilidade número 1 do Estado. Seus signatários reafirmam a importância da cultura “como expressão da nossa identidade e diversidade, como direito fundamental e como vetor de desenvolvimento econômico”.

    O texto divulgado em 2 de julho pede a restituição do ministério, o descontingenciamento do fundo nacional que irriga a área e o fim da “demonização” das leis de incentivo, em especial a Rouanet. A mensagem reúne Marta Suplicy, Juca Ferreira, Francisco Weffort, Luiz Roberto Nascimento Silva e Marcelo Calero.

    “O Estado tem responsabilidades intransferíveis para a garantia do desenvolvimento social e cultural do país e para a realização dos direitos culturais do povo brasileiro”, defendem os participantes, denunciando o que seria uma tentativa de enfraquecer as conquistas que o Brasil alcançou no período democrático e pedindo respeito às leis.

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