Ex-ministros e intelectuais defendem Lula por apoiar denúncia contra Israel por genocídio
De acordo com o documento, "não significa ser antissemita condenar o apartheid e o desrespeito sistemático, por Israel, das leis internacionais" dos direitos humanos
247 - Intelectuais, ex-ministros e ativistas sociais escreveram uma carta favorável à decisão do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de apoiar a iniciativa de autoridades jurídicas da África do Sul que fizeram a peça de acusação contra Israel pelo genocídio de palestinos na Faixa de Gaza. O documento será enviado, entre a noite desta terça (15) e a manhã de quarta-feira (16), ao chefe de Estado brasileiro e ao ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira.
De acordo com o documento, "não significa ser antissemita condenar o apartheid e o desrespeito sistemático, por Israel, das leis internacionais" dos direitos humanos, "incluindo a não prevenção de genocídio". "Não há incoerência alguma na diplomacia brasileira. Essas críticas ignoram que o Estado brasileiro tem se guiado, nas relações internacionais, pela primazia do respeito aos direitos humanos, conforme o artigo 4º da Constituição de 1988", continuou.
"A acusação de reforçar o antissemitismo faz parte da campanha de instrumentalização política do termo, ao considerar qualquer crítica ao Estado de Israel e seu governo como antissemita. O antissemitismo é um flagelo perigoso e deve ser combatido vigorosamente".
Entre os signatários da carta, estão o ex-diretor-executivo da Humans Right Watch Kenneth Roth, o ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) James Cavallaro, o escritor Milton Hatoum, o jornalista Breno Altman, a filósofa Marilena Chauí e a socióloga Maria Victoria de Mesquita Benevides.
As denúncias do governo sul-africano contra Israel foram apresentadas na Corte Internacional de Justiça em 29 de dezembro. A CIJ fica nos Países Baixos, continente europeu.
Leia a íntegra da carta:
O governo da África do Sul apresentou, em 29 de dezembro passado, uma petição à Corte Internacional de Justiça da Organização das Nações Unidas (ONU), em Haia, órgão com 15 juízes que julga disputas entre Estados, com o apoio de 67 países, inclusive o Brasil. A petição acusa o Estado de Israel de descumprir a Convenção de Prevenção e Punição do Genocídio de 1951.
No dia 10 de janeiro, em uma nota do Ministério das Relações Exteriores, o presidente da República relatou os esforços e ações que seu governo tem feito em inúmeros fóruns, em prol do cessar fogo, da libertação dos reféns e da proteção da população civil em Gaza. Destacou ainda a atuação incansável do Brasil no exercício da presidência do Conselho de Segurança para promover uma solução diplomática para o conflito.
À luz da continuidade de flagrantes violações ao direito internacional humanitário em Gaza, o presidente Lula manifestou seu apoio à iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça, para que determine que Israel cesse imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados nos termos da Convenção de Genocídio.
A decisão do presidente da República suscitou críticas como a alegação de uma suposta falta de coerência da diplomacia brasileira ao apoiar a ida à Corte, que foi considerada em discordância com a política externa de equilíbrio entre Israel e a Palestina, e teria por objetivo a deslegitimação de Israel quebrando a irmandade (sic) com o povo judeu, reforçando o antissemitismo.
Não há incoerência alguma na diplomacia brasileira. Essas críticas ignoram que o Estado brasileiro tem se guiado, nas relações internacionais, pela primazia do respeito aos direitos humanos, conforme o artigo 4º da Constituição de 1988. A política externa brasileira sob a constitucionalidade democrática sempre respeitou a primazia das normas internacionais e das decisões de órgãos multilaterais.
Qualquer referência à crise em Gaza deve ser examinada, como asseverou recentemente o secretário-Geral da ONU, no contexto da história das relações entre Israel e o povo palestino. A manutenção da equidistância nas relações do Brasil advém da situação das duas partes do conflito, sob o ângulo das obrigações do Brasil em face da legislação internacional: o Estado de Israel, como potência ocupante, e a Palestina ocupada, submetida a anos de apartheid, 56 anos de ocupação militar e a 16 anos de bloqueio em Gaza.
Muitas críticas apontam que o processo na Corte deixa de lado o exame dos ataques do Hamas em 7 de outubro. Porém, o Hamas não pode ser parte em um processo perante a Corte Internacional de Justiça, que examina apenas disputas entre Estados. A Corte examinará a defesa de Israel, que culpa o Hamas pelas mortes de civis e não pela sua própria conduta. Em qualquer hipótese, o órgão judicial que pode penalizar os crimes de guerra do Hamas é o Tribunal Penal Internacional (que investiga e processa indivíduos), mas Israel impediu o procurador do Tribunal de entrar em Gaza diante do risco de que ele pudesse investigar e processar autoridades oficiais de Israel.
A acusação de reforçar o antissemitismo faz parte da campanha de instrumentalização política do termo, ao considerar qualquer crítica ao Estado de Israel e seu governo como antissemita. O antissemitismo é um flagelo perigoso e deve ser combatido vigorosamente. Mas não significa ser antissemita condenar o apartheid e o desrespeito sistemático, por Israel, das decisões dos órgaõs da ONU e de leis internacionais humanitárias e de direitos humanos, incluindo a não prevenção de genocídio. Conforme observado pela Declaração de Jerusalém e pelo The Nexus Document sobre antissemitismo, equiparar falsamente antissemitismo com crítica a Israel prejudica a importante luta conta o antissemitismo.
Lamentavelmente todas essas críticas hipócritas à decisão do governo em cartas jactanciosas, editoriais, avalanche de notas na mídia social não levam em conta natureza, âmbito e extensão dos ataques militares de Israel a Gaza, com um bombardeio contínuo durante 100 dias em uma das regiões mais densamente povoadas do mundo, forçando a evacuação de 1,9 milhão de pessoas (85% da população de Gaza) de suas casas, deslocadas para áreas cada vez mais exíguas, sem abrigo adequado, onde continuam a ser bombardeadas, mortas, feridas e privadas de necessidades básicas para sobrevivência.
Os ataques já mataram mais de 23 mil palestinos. Gaza se transformou em um cemitério de mais de 10 mil crianças, com milhares de feridos com amputações sem anestesia, desaparecidos, supostamente enterrados sob os escombros. Foram mortos 82 jornalistas, muitos com suas famílias extensas. Mais de 150 funcionários da ONU foram mortos, mais do que em qualquer outro conflito nos 78 anos de história da organização.
Israel destruiu vastas áreas de Gaza, incluindo bairros inteiros, danificou ou destruiu mais de 355 mil casas palestinas, terras agrícolas, padarias, escolas, quatro universidades, empresas, mesquitas e locais de culto, cemitérios, sítios culturais e arqueológicos, serviços municipais e instalações de água e saneamento e redes de eletricidade, sistema médico e de saúde palestinos. Israel continua a reduzir Gaza a escombros, matando, ferindo e destruindo a população e criando condições de vida que a petição da África do Sul alega serem calculadas para a destruição física dos palestinos como grupo étnico e nacional.
Os aqui abaixo assinados apoiam o governo democrático do Brasil e concordam com a decisão tomada pela diplomacia brasileira junto à Corte Internacional de Justiça. Nesse sentido, apoiamos o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e o ministro de Estado das Relações Exteriores, embaixador Mauro Vieira.
PAULO SÉRGIO PINHEIRO, ex-ministro da Secretaria de Estado de Direitos Humanos
KENNETH ROTH, ex-diretor Executivo da Human Rights Watch
EMBAIXADOR JOSÉ MAURÍCIO BUSTANI, ex-diretor Geral da Organização para Proibição de Armas Químicas
JUAN E. MENDEZ, ex-assessor Especial do Secretário-Geral da ONU para a Prevenção do Genocídio
FABIO KONDER COMPARATO, professor emérito da Faculdade de Direito, USP
EMBAIXADOR TADEU VALADARES, ex-diretor do Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, Ministério das Relações Exteriores
JAMES CAVALLARO, ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, OEA
MARILENA CHAUI, professora emérita, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP
PAULO VANNUCHI, ex-ministro de Direitos Humanos
REGINALDO NASSER, professor de Relações Internacionais, PUC-SP
ROGERIO SOTTILI, ex-ministro de Direitos Humanos
LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA, ex-ministro da Fazenda, ex-ministro da Administração Federal e da Reforma do Estado
EMBAIXADOR EDUARDO ROXO
LUIZ EDUARDO SOARES, antropólogo e escritor, ex-secretário Nacional de Segurança Pública
NILMA LINO GOMES, ex-ministra da Igualdade Racial
EMBAIXADOR FRANCISCO ALVIM
JOSÉ LUIZ DEL ROIO, historiador, ex-senador da Itália
IDELI SALVATI, ex-senadora, ex-ministra de Direitos Humanos
MILTON HATOUM, escritor
ELEONORA MENICUCCI DE OLIVEIRA, ex-ministra de Políticas para as Mulheres
BRENO ALTMAN, jornalista
SALEM NASSER, professor de Relações Internacionais, FGV-Direito
PEPE VARGAS, deputado estadual- RS e ex-ministro de Direitos Humanos
LAURA GREENHALGH, jornalista
MARIA DO ROSÁRIO, deputada federal, ex-ministra de Direitos Humanos
MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES, professora emérita da Faculdade de Educação, USP
BRUNO HUBERMAN, professor de Relações Internacionais, PUC-SP
EMBAIXADOR JOSÉ VIEGAS FILHO, ex-ministro da Defesa
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