“Operação Lava Jato” foi desmontada dentro do Ministério Público por excesso de irregularidades e falta de institucionalidade
Vazamento de mensagens copiadas por Walter Delgatti não foi motivo formal para fim da “República de Curitiba”. Procuradoria Geral da República flagrou crimes, conta livro inédito
Por Luís Costa Pinto, para o 247 - O desmonte da “Operação Lava Jato” se deu em dois planos paralelos a partir de 2019. O mais conhecido deles é o da opinião pública, que retirou o apoio majoritário às ações midiáticas muitas vezes conduzidas ao arrepio da norma legal depois dos vazamento das mensagens impróprias e boçais trocadas por procuradores lotados em Curitiba com o então juiz da 13ª Vara Federal do Paraná, Sérgio Moro. Walter Delgatti Neto, estudante de Direito ora cumprindo pena no Centro de Detenção Provisória de Araraquara (SP) foi quem obteve o acervo de mais de um milhão de mensagens a partir da invasão do aplicativo de mensagens Telegram instalado nos smartphones do ex-procurador Deltan Dallagnol (coordenador da “Força Tarefa da Lava Jato”) e do ex-juiz Moro. O outro plano do desmonte se mantém quase oculto em razão do potencial de ferramentas que tem a oferecer para a busca judicial de reparação por parte de pessoas físicas e de corporações empresariais que sofreram danos em razão das operações desencadeadas com base na bíblia obscurantista e repleta de dogmas criminosos da outrora intocável “República de Curitiba”: é o plano interno de desmantelamento das “forças-tarefa” no Ministério Público Federal. Mergulhar nele conduz-nos às cavernas infernais do submundo do Ministério Público, da Procuradoria Geral da República e da fauna de personalidades que cometem ilegalidades e irregularidades mesmo envergando a fantasia de “procuradores” ou de “subprocuradores” da República. No prelo, o livro “O Procurador”, que conta “como e por que a PGR de Augusto Aras desmontou a Força-Tarefa da Lava Jato, expôs a Transparência Internacional, deixou de denunciar Jair Bolsonaro durante a trágica gestão do Governo brasileiro na pandemia e atuou para desarticular três conluios golpistas que ameaçaram a Democracia brasileira entre 2021 e 2022”, narra parte dessa história. Em razão da efeméride dos “10 anos da Lava Jato”, data celebrada com nostalgia pela mídia tradicional e por setores da sociedade brasileira órfãos ou viúvos das distorções e perseguições empreendidas a partir de 17 de março de 2014, quando se deflagrou a primeira fase da “Lava Jato”, prendendo 17 pessoas em 7 estados - entre elas o doleiro Alberto Yousseff, que se tornaria o delator-mestre da “operação”, endeusado e protegido pela “República de Curitiba”, antecipa-se a seguir um resumo dos dois capítulos de “O Procurador” que contam a desintegração do modelo de “Forças Tarefa” como a Lava Jato por dentro do MPF.
AUXÍLIO DE HUMBERTO JAQUES, VICE-PGR, FOI FUNDAMENTAL PARA DESMONTAR LAVA JATO
O desmonte da “Operação Lava Jato” foi, talvez, o maior legado entregue por Augusto Aras ao fim de seus dois períodos consecutivos na Procuradoria Geral da República. Para tanto, ele contou com o auxílio fundamental de seu vice-procurador-geral Humberto Jaques de Medeiros (que ocupou a vice-PGR entre 2020 e 2021). Sem entrar em confrontos ideológicos com a República de Curitiba, sem abrir divergências públicas com o rol de atos e omissões dos procuradores chefiados por Deltan Dallagnol que se tornaram conhecidos depois do vazamento das mensagens trocadas entre os integrantes do Ministério Público e o então juiz Moro, Humberto Jaques devastou o lavajatismo apenas cobrando do bunker de Curitiba o cumprimento do regramento constitucional e da obediência à Lei Geral que rege a missão do MPF.
Havia um dispositivo estranho ao ofício dos procuradores, considerado por muitos ilegal, destinado a gravar conversas telefônicas na sede da PGR do Paraná. Adquirido a pedido do ex-procurador Deltan Dallagnol e operado a partir de comandos dados pela secretária dele, o dispositivo gravou ilegalmente mais de 30.000 diálogos telefônicos. Além das gravações ilegais em Curitiba, descobriu-se também, a partir de auditoria determinada por Aras a pedido de Jacques, que um sistema automatizado de controle processual implantado na Procuradoria Geral da República nos tempos do ex-PGR Rodrigo Janot e sob justificativas esboçadas pela Lava Jato, tornava invisíveis para todos os demais procuradores da República ações e procedimentos que os lavajatistas queriam conservar em sigilo máximo. Sucessora de Janot, a ex-procuradora-geral Raquel Dodge exerceu o cargo por dois anos sem saber da existência do programa de “invisibilidade processual” existente em seu gabinete. Por fim, constatou-se a possibilidade de haver vícios e até mesmo fraude na designação dos procuradores naturais que atuariam nos casos da Lava Jato junto ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), desmoralizando um dos preceitos mais caros ao Direito – o da impessoalidade nos procedimentos do Estado durante a persecução penal. “A Lava Jato acabou por causa do déficit de institucionalidade. Tudo ruiu por isso, e não por perseguições ideológicas”, conta Humberto Jacques de Medeiros com a tranquilidade de quem sabe ter cumprido com a missão que lhe fora dada sem se submeter a quaisquer desvios legais.
DESCOBERTA DE PROCESSOS INVISÍVEIS NA PGR DETONOU CAÇA A IRREGULARIDADES
Na esteira da descoberta da invisibilidade de processos na sede da PGR, dos grampos ilegais e do acervo de 30.000 diálogos gravados no Ministério Público do Paraná, caiu no colo de Aras a colaboração premiada, antecedida da revisão dos acordos de leniência firmados por corporações como a J&F, holding da família Batista controlada pelos irmãos Joesley e Wesley (JBS/Friboi). Em 4 de dezembro de 2020, ele enviou o memorando de nº 146/2020/GT-LAVAJATO/PGR à coordenadora da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, a subprocuradora-geral Maria Iraneide Olinda Santoro Facchini.
Num texto sucinto de apenas três páginas, o procurador-geral da República comunica o envio àquela Câmara de Revisão dos autos do acordo de leniência de “R$ 10.300.000.000,00 (dez bilhões e trezentos milhões de reais)” firmado pela J&F Investimentos com a seccional da Procuradoria no Distrito Federal. O acordo foi fechado em 05 de junho de 2017 e homologado em 24 de agosto daquele mesmo ano, quando o PGR era Rodrigo Janot. “O montante de R$ 2.300.000.000,00 (dois bilhões e trezentos milhões) será adimplido por meio da execução de projetos sociais, em áreas temáticas relacionadas em apêndice deste Acordo”, escreveu Augusto Aras para relatar seu estranhamento aos termos do que integrantes da Procuradoria da República no Distrito Federal tinham assinado com a anuência do antecessor dele na procuradoria-geral.
Convocada por procuradores lotados em Brasília, a Transparência Internacional, uma Organização Não Governamental sediada em Berlim, na Alemanha, tornava-se co-gestora da destinação daqueles recursos – R$ 2,3 bilhões – que seriam pagos em 25 anos pela holding do grupo JBS/Friboi. A ONG de origem alemã e que tinha uma sucursal no Brasil aproximou-se do Ministério Público Federal brasileiro em 2005, no bojo das denúncias que deram origem à chamada Ação Penal 470 – vulgarmente popularizada como “mensalão”. Três anos depois, justamente em dezembro de 2023, o ministro Dias Toffoli, do STF, suspendeu a vigência de um acordo de leniência firmado entre a PGR (também na época de Janot) e a Odebrecht Construtora porque continha vícios legais semelhantes aos encontrados no texto da J&F. Colaborações e compartilhamentos de informações oriundas das investigações haviam sido aceitas pelos procuradores à margem do regramento constitucional. Em janeiro de 2024, Toffoli determinou a investigação dos negócios e dos convênios da Transparência Internacional no Brasil e estendeu a suspensão da leniência à holding do Grupo JBS.
O desmoronamento da “Operação Lava Jato” foi o epítome do processo que deixou claro para a sociedade brasileira quão inoportuno, desfocado e desviado de seus princípios originais era o Ministério Público Federal sob o jugo da República de Curitiba com o beneplácito do gabinete da Procuradoria Geral da República em Brasília. Amanhã, numa segunda reportagem desse conjunto de textos destinados a marcar a passagem dos “10 anos da Lava Jato”, saiba que versões de sua própria história Walter Delgatti Neto remói na prisão em Araraquara e porque ele não pôde contá-la ao 247: o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, vetou a entrevista dele, apesar de o pleito jornalístico ter sido autorizado pelo juiz-corregedor de Araraquara, pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo, pela administração do Centro de Detenção Provisória e contar com a anuência do advogado do “hacker de Araraquara”. A seguir, o extrato dos capítulos de “O Procurador” que ajudam a montar o quebra-cabeças do fim da “Operação Lava Jato”:
INVISIBILIDADE CRIMINOSA (Brasília, 13 de julho de 2020)
“Memorando Nº 90/2020/VPGR
Assunto: Expedientes confidenciais
Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral da República,
Após 125 (cento e vinte e cinco) dias servindo ao MPF como Vice-Procurador-Geral da República, informo-lhe que ainda não obtive acesso pleno ao meu acervo de processos e procedimentos. Mesmo após a elevação de meu status no sistema único a um nível de visibilidade superior (art 38, § 13, II da Portaria 350, de 28 de abril de 2017), e correspondente a minha posição no organograma do Ministério Público Federal, ainda assim não obtive acesso a feitos de minha própria atribuição. Ocorre que uma sistemática de proteção de dados instituída no Sistema Único permite que documentos nele sejam unilateralmente protegidos de visualização de tal modo personalizada por quem a determine que nem mesmo o Procurador Natural do feito pode vê-lo ou saber da existência. Essa possibilidade de máxima opacidade não só é contrária a toda sorte de impessoalidade da Administração Pública, como também possibilita que documentos se percam dentro do Sistema Único, pois a movimentação das pessoas que impuseram tal nível de sigilo personalíssimo pode gerar impossibilidade de conhecimento e acesso a esses documentos. Desconheço como e o porquê dessa possibilidade de proteção, nem os motivos que levam os usuários do sistema à sua adoção. Registro apenas que por conta dessa disfuncionalidade não obtenho acesso a alguns documentos eletrônicos que deveriam estar sob minha responsabilidade, razão pela qual já encaminhei os memorandos nº 32/2020/VPGR, de 30 de março de 2020 (PGR-00114986/2020) e nº 86/2020/VPGR, de 09 de julho de 2020 (PGR-00254829/2020), visando solucionar essa questão. Ao que pude compreender, esse mecanismo de sigilo é denominado “controle de visibilidade” e já deveria ter sido extinto pelo MPF, mas resiste por força do disposto nos §§ 7º a 9º do art. 37 da Portaria PGR/MPF nº 350, de 28 de abril de 2017:§ 7º Ao atribuir o padrão de acesso confidencial, o usuário responsável pelo respectivo expediente poderá estabelecer um controle adicional, denominado controle de visibilidade, hipótese em que o conteúdo do documento, procedimento ou processo, bem como os seus metadados de identificação (ressalvados os relativos ao número, à classe e à localização), somente poderão ser visualizados pelos usuários que estejam especificamente autorizados por aquele.§ 8º Para atribuir o controle de visibilidade mencionado no parágrafo anterior, o usuário responsável por tal ato deverá indicar um número mínimo de 3 (três) usuários, denominados controladores, que estarão autorizados a acessar o expediente classificado.§ 9º Além do próprio usuário responsável, somente o usuário controlador, observadas as normas pertinentes, poderá atribuir acesso a outros usuários ou alterar o padrão de acesso do expediente confidencial a que tenha sido atribuído o controle de visibilidade (grifos nossos). Desta forma, solicito providências de exclusão do denominado “controle de visibilidade” em expedientes, procedimentos e processos em trâmite na Vice-Procuradoria-Geral da República, na Assessoria Jurídica Administrativa, na Assessoria Jurídica Criminal e na Assessoria Jurídica de Processos oriundos de Estados Estrangeiros, de modo a obter acesso integral às informações em feitos de minha própria atribuição. Respeitosamente,
HUMBERTO JACQUES DE MEDEIROS Vice-Procurador-Geral da República”
Em março de 2020, a pandemia por coronavírus Covid-19 mal havia começado trazendo consigo todo o cortejo de horrores, tragédias e incertezas, quando começaram a chegar ao gabinete de Augusto Aras na Procuradoria Geral da República os primeiros sinais de que a “Operação Lava Jato” havia construído bunkers virtuais em Brasília e em Curitiba (PR) e cavado trincheiras algorítmicas nos sistemas de dados e informações do Ministério Público Federal a fim de esconder ilegalidades e atrocidades processuais cometidas sob um manto opaco. Não era translúcido, era opaco. E ilegal. Em 25 de setembro de 2019, apenas 20 dias depois de ser indicado ao posto por um Jair Bolsonaro que se nutria da divisão do País entre “nós” (os aderentes a si, aos seus argumentos, ao seu Governo que se assentava numa ‘pauta de costumes’ para disseminar discurso de ódio e de cisão) e “eles” (todo o resto do Brasil que não comungava bovinamente do repasto ofertado), Aras teve o nome aprovado na sabatina da Comissão de Constituição e Justiça do Senado por 23 votos favoráveis e 3 contrários. A CCJ tem 27 integrantes. No plenário, na noite daquele mesmo dia, a indicação dele para a procuradoria-geral da República terminou referendada por 68 votos contra apenas dez. Ou seja, senadores da esquerda e da centro-esquerda, muitos deles integrantes da bancada do PT, votaram com o PGR indicado por Bolsonaro. A lua de mel do procurador-geral da República com seu cargo e com o universo amplo e diverso da Procuradoria durou pouco mais de três meses. No início de fevereiro de 2020, ao regressar da Índia, onde passou a maior parte do tempo durante o recesso do Poder Judiciário naquele verão, Augusto Aras encontrou dois temas urgentes a tratar. Um deles decorria das primeiras notícias do surgimento de um vírus insidioso e letal, na cidade industrial de Wuhan, na China. Autoridades sanitárias da Ásia, do Oriente Médio e da Organização Mundial de Saúde (OMS) estavam em alerta, sem alarde. A caminho das férias indianas, na ida e na volta, o PGR brasileiro havia passado por alguns dos aeroportos que começavam a cogitar as primeiras medidas de contingenciamento de atividades em razão do vírus misterioso que parecia atingir de forma mais direta a população idosa. Era o que se pensava, inicialmente, daquele que se tornou o mais aleatório evento de impacto global do início do século XXI: a pandemia por coronavírus Covid-19.
O outro tema era bem local. Uma mulher, ex-esposa de um procurador da República lotado no Distrito Federal, insistia com assessores de Aras na busca por informações de uma representação com base na Lei Maria da Penha contra o ex-marido. Cansada das agressões, ela havia ingressado também com uma ação na corregedoria do Ministério Público. Entretanto, nenhuma palavra-chave de busca pela ação resultava na revelação do status do processo. Foi então que a ex-mulher do procurador acusado de ser agressor encontrou o extenso número segmentado e codificado que designa os inquéritos e as ações internas da instituição. O vice-procurador-geral Humberto Jacques de Medeiros empenhava-se para descobrir a quantas andava o caso de misoginia e agressões. Ao lançar os algarismos no campo de busca de processos, recebia sempre a resposta intrigante: nada constava. A vítima do procurador acusado de agredir a ex-companheira assegurava, entretanto, ter feito despachos e audiências sobre o caso em composições anteriores da PGR. Começava-se a puxar um fio ali.
O procurador acusado de agressão e de ser misógino tinha pontos de contato, na vida pessoal, com a turma de apoio ao gabinete do ex-procurador-geral Rodrigo Janot. A ação contra ele foi recepcionada no período em que a “Operação Lava Jato” dava as cartas e o norte do Ministério Público Federal. Humberto Jacques perseverou na pesquisa – sem sucesso. A cada tentativa, ofícios eram expedidos para a área de Tecnologia da Informação e para a área de inteligência da Procuradoria Geral da República. Nada chegava de volta. No dia 13 de julho, depois de combinar os termos do que escreveria com Augusto Aras, o estranhamento do vice-procurador-geral eclodiria no texto sucinto e indignado do memorando nº 90/2020, reproduzido no início deste capítulo.
Da ponta daquele fio que estava sendo puxado emergia um escândalo de proporções bíblicas para uma instituição criada com a finalidade de representar e defender a sociedade e velar pelo cumprimento da Constituição: inquéritos, processos, procedimentos e ações – muitos deles abertos contra pessoas com prerrogativa de foro ou oriundos do desenrolar da “Operação Lava Jato” – estavam invisíveis no sistema de buscas do Ministério Público Federal para o Procurador Geral da República, para seu vice-PGR e para a corregedoria-geral. E assim foram mantidos durante todo o mandato de dois anos da antecessora de Aras, Raquel Dodge.
Aquele banco de dados invisível e paralelo permanecia sob a administração e o acesso exclusivo de procuradores e subprocuradores ligados ao gabinete de comando do ex-procurador-geral Rodrigo Janot ou aos líderes da “Operação Lava Jato” lotados em Curitiba (PR). Eles haviam subvertido a ordem natural da distribuição dos processos com a justificativa de que “tudo era Lava Jato” e, de forma discricionária e unilateral, determinavam a partir da concessão de “invisibilidade” de processos o que seria enquadrado de forma normal na Procuradoria Geral da República e o que receberia tratamento estranhamente personalizado.
Em meio às buscas pelo estado da arte da tramitação do processo interno baseado na Lei Maria da Penha, um senador e um advogado que defendia uma grande corporação privada procuraram a PGR atrás de informações sobre expedientes distintos ligados a fases diferentes da “Operação Lava Jato”. Realizando a busca pela numeração padrão dos processos no Ministério Público, um assessor de Aras não encontrou registro algum de ambos casos. O procurador-geral ampliou o desconforto. Se desconfiava, passou a ter certeza de que havia dentro de seu gabinete um manancial de informações sobre as quais nada sabia. Àquela altura, o vice-procurador-geral Humberto Jacques e outros subprocuradores leais ao novo chefe da instituição promoviam uma espécie de investigação informal em torno dos processos e procedimentos de alimentação de dados do banco informatizado no gabinete da PGR. O objetivo era saber quem atribuía senhas de acesso de “sigilo absoluto” a determinados procedimentos e o que havia sob aquela cortina de ferro virtual chamada “controle de visibilidade”. Pressiona daqui, pergunta dali o vice-PGR Humberto Jacques chegou ao nome de um funcionário terceirizado que havia entrado de licença.
Chamado a uma audiência informal na sede do Ministério Público Federal, o conjunto de prédios cilíndricos e espelhados que pontificam na paisagem de Brasília, sobretudo para quem admira o skyline da cidade observando-o das margens do Lago Paranoá em direção ao Eixo Monumental e à Praça dos Três Poderes, um assustado barnabé não custou a dar todo o serviço.Ainda em 2014, quando eram promovidas as primeiras fases da “Operação Lava Jato” e atendendo a determinações da equipe do então procurador-geral Rodrigo Janot, criou-se uma instância chamada “controle de visibilidade” no software Único. O Único é o nome do programa que administra todo o banco de dados do Ministério Público Federal Brasileiro. Tal “controle de visibilidade” surgiu em paralelo às rotinas eletrônicas formais do software e não foi compartilhado como procedimento institucional com ninguém – apenas o restrito grupo que gravitava em torno de Janot e uma trinca de procuradores lotados em Curitiba (PR) sabiam da existência da ferramenta. Com espanto, Humberto Jacques comunicou a descoberta a Augusto Aras e os dois trataram de formalizar a recepção das informações dadas pelo funcionário terceirizado. Na ponta do fio daquele novelo que estavam desfazendo podia haver uma carcaça mal-cheirosa.
“Despacho 1293/2020/GABPGRReferência 1.00.000.012753/2020-64
1. Em atenção ao memorando nº 60/2020 (PGR-00259278/2020) e considerando a ausência de histórico detalhado sobre o assunto vinculado à Portaria nº 350/2017, encaminhe-se o presente expediente à Secretaria Jurídica e de Documentação para que esclareça os seguintes pontos, sem prejuízos de outras informações que se fizerem necessárias:
a) Como e quando surgiu a controladoria do Único?b) Quem solicitou a criação desse mecanismo e por quê?c) Em qual versão do Único foi implementada?d) Essa alteração passou pelo Comitê de Governança do Único?e) Como e quando surgiu a figura do perfil master?f) Quantos usuários ostentam hoje o perfil master e quem são?g) Além dos delegantes listados no § 13 do art. 38, quais usuários têm ou tiveram perfil delegante com base no § 14 do art. 38 da Portaria 350/2017?2. Por fim, registro que as informações solicitadas deverão ser encaminhadas ao GABPGR até o dia 17/07/2020, devendo ser observado o grau de sigilo atribuído ao presente expediente.
Brasília, 15 de julho de 2020.
Alexandre Espinosa Bravo Barbosa
Procurador Regional da República
Chefe de Gabinete” O rol de perguntas daquele despacho 1293/2020 assinado pelo chefe de gabinete de Aras, mas, redigido com a assertividade implacável de Humberto Jacques, provocou rebuliço e revolta na sede da Procuradoria Geral da República. A concessão de escassas 48 horas para a obtenção de respostas às questões e a referência explícita ao grau de sigilo em torno daquilo que se queria saber eram um teste de confiabilidade em torno da permeabilidade, ou não, da turma que já trabalhava com o procurador-geral indicado por Jair Bolsonaro.
O ardil revelou-se produtivo. Porém, tornou impossível detectar o que exatamente se pretendia esconder embaixo da cortina de ferro da invisibilidade: ao mesmo tempo em que eram produzidas as respostas formais àquilo que o novo comando da procuradoria-geral, alguém, em algum lugar, passou a alimentar o sistema do banco de dados com mais de 50.000 processos e procedimentos sob o manto da senha de visibilidade rígida. Originalmente, o banco de dados ilegal era composto por apenas 36 processos que a Lava Jato desejava ocultar dos subprocuradores que não eram da confiança do grupo de comando da “força-tarefa”.
Quando a dupla Jacques e Aras começou a puxar o fio do novelo, esperava trazer à superfície uma carcaça com não mais do que três centenas de atos e documentos tornados invisíveis. Era mais ou menos essa a soma total dos procedimentos que estavam naquele arquivo eletrônico especialíssimo criado sob os auspícios de Janot, indicavam os registros precários de contabilidade da área de TI da PGR. Inundado abruptamente e espertamente por milhares de dados novos, o banco diluiu as informações mais preciosas e tornou impraticável a busca pelas razões da instituição do esdrúxulo “controle de visibilidade”. Passou a ser como procurar agulha num palheiro. Os acordos de cooperação internacional e de compartilhamento de informações com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e com o Ministério Público da Suíça, por exemplo, tão caros aos procedimentos de ação da “Operação Lava Jato”, estavam arquivados naquele banco de dados protegido pela invisibilidade irregular. Por muito tempo, e porque continham gaps temporais e mesmo falhas procedimentais, eles permaneceram ocultos para os procuradores-gerais que sucederam a Rodrigo Janot – tanto Raquel Dodge quanto Augusto Aras – e também para o Supremo Tribunal Federal e para o Ministério Público. Em meio a seu palavreado rococó, como se verá no capítulo a seguir, o próprio Deltan Dallagnol admitiu em ofício à PGR que os instrumentos internacionais de cooperação estavam ocultos no banco de dados de Curitiba. Num curto ofício de quatro páginas, enviado um dia antes do prazo fatal determinado pelo gabinete de Aras, o responsável pela Secretaria Jurídica e de Documentação da PGR, Luiz Armando Campião, deu as informações que iriam ajudar a implodir todo aquele sistema de informações ocultas manipuladas politicamente à guisa de critérios e de normas institucionais.
“A funcionalidade de ‘controladoria’ surgiu em junho de 2014, durante a gestão do então excelentíssimo procurador-geral da República, doutor Rodrigo Janot Monteiro de Barros”, respondeu Campião. E seguiu: “de acordo com o histórico registrado informalmente em conversas passadas com equipes negociais e de desenvolvimento do sistema Único, a demanda teria sido concretizada por meio de reuniões informais entre o Gabinete do Procurador-Geral da República, a Secretaria Jurídica e de Documentação e a Secretaria de Tecnologia da Informação e de Comunicação”.
Ou seja, tudo ocorria à margem da lei e era executado dentro do quartel-general de comando do Ministério Público Federal, por procuradores e subprocuradores da República, seguindo orientação de um procurador-geral que havia jurado cumprir a Constituição. Prosseguiu o secretário jurídico e de documentação da PGR em resposta às questões cirúrgicas encaminhadas a ele:
“Ainda de acordo com o histórico registrado informalmente em conversas passadas com equipes negociais e de desenvolvimento do sistema, a solicitação teria sido feita pelo Gabinete do então excelentíssimo Procurador-Geral da República, doutor Rodrigo Janot Monteiro de Barros, às equipes técnicas. (...) ... considerando o ‘item 1.5: Grau de Sigilo – Bloqueio e Visibilidade’ do Manual/Alterações de Versão 1.221 (...), nota-se que aparentemente a funcionalidade ‘Grau de Sigilo – Bloqueio de Visibilidade’, conhecida informalmente como ‘controladoria’, teria sido criada porque haveria necessidade de um usuário impedir que outros usuários, além dele e de pelo menos mais dois indicados por ele, pudessem alterar a visibilidade dos expedientes confidenciais”.
Além de toda a aberração legal que se depreende do que está escrito no curto ofício, há ali a informação: “a alteração não passou pelo Comitê de Governança do sistema Único”. Em apertada síntese, como adoram escrever os causídicos em suas peças apressadas, está ali o desenho do manancial paralelo de informações de uma PGR lavajatista que não só flertava com a ilegalidade; lambuzava-se com ela.
Na antevéspera do achamento daquele manancial de lama escondido dentro da Procuradoria Geral da República por baixo do manto do “controle de visibilidade” instituído nos tempos do procurador-geral Rodrigo Janot e por inspiração da turma destacada para estar à proa dos procedimentos da “Operação Lava Jato”, os passos de Augusto Aras e de Humberto Jaques foram escrutinados e mapeados por quem temia a descoberta das carcaças resultantes de maus passos do MPF em ações empreendidas pelos comandantes da “Operação Lava Jato”.
Na esteira de sua posse, Aras já havia cancelado um protocolo de cooperação de policiais militares do Distrito Federal que prestavam serviços de inteligência para o gabinete do PGR. A parti daí, passou a travar intensa troca de provocações com a estrutura montada por Janot e mantida pela antecessora, Raquel Dodge, nos núcleos de tutela de ações penais e também no de ações cíveis, assim como nos constantes dribles aos subprocuradores naturais que deveriam cuidar das ações egressas da Lava Jato quando elas chegavam ao Superior Tribunal de Justiça.
Ao ser quebrado o sigilo do software Único e surgir a janela de acesso para o que se mantinha oculto sob o “controle de visibilidade”, Aras consolidou a certeza da existência de uma banda podre dentro da instituição à qual servia por mais de 40 anos. Viu-se desafiado a agir ao constatar que mais de 50.000 ações e procedimentos haviam sido lançados em menos de 48 horas naquele sistema antes exclusivo. A mistura daquelas ações com os cerca de 50 processos realmente protegidos pelos lavajatistas, sobretudo os acordos internacionais firmados pela Lava Jato sem os devidos procedimentos diplomáticos e burocráticos legais, deu a ele uma sensação inicial de impotência. Entretanto, um novo flanco de perseguição aos métodos pouco republicanos da Lava Jato se abria em Curitiba, no Paraná, pátio onde se davam as principais manobras da “Operação” coordenada pelo procurador Deltan Dallagnol.
Em trecho de um longo ofício numerado como GAB/PGR 49/2021 de 26 de janeiro de 2021, dirigindo-se ao então corregedor nacional do Ministério Público, Rinaldo Reis, o procurador-geral Augusto Aras conecta a invisibilidade de alguns processos à necessidade que a “Operação Lava Jato” tinha de manter sigilo em torno de ilegalidades cometidas na obtenção de informações no exterior, fundamentais para investigações em ações de leniência contra empresas como J&F (Grupo JBS) e Odeberecht, mas que chegaram aos procuradores brasileiros sem o respeito aos trâmites obrigatórios e necessários dentro dos acordos de cooperação internacional entre Estados. No caso, entre o Brasil e a Suíça.
“Após cerca de dez meses da atual gestão e ainda frustrada a tentativa de identificar com precisão o acervo processual total do Gabinete do PGR, a parte interessada nos autos 1.05.000.000353/2018-13, após muitas cobranças do Gabinete do PGR sem que os autos fossem aqui encontrados, comunicada disso, forneceu o número do protocolo do seu primeiro pedido de providências contra membro do MPF por suposta violação da Lei Maria da Penha”, consignou o procurador-geral no ofício ao corregedor nacional do MP brasileiro. E seguiu, deixando claro o filão descoberto e que seria minerado: “Foi só nesse momento que veio a lume a invisibilidade dos documentos resultante do uso da ferramenta ‘controlador’, ensejando as providências cabíveis do PGR junto à Secretaria de Tecnologia da Informação (STIC) do MPF”.
No parágrafo que encerra o tópico 2 do ofício 49/2021 enviado pelo PGR ao responsável pelo órgão de correição do Ministério Público Federal, uma explicação que seguiria se desdobrando e repercutindo até o fim do ano de 2023, quando muitos dos personagens já não estavam mais naqueles postos nos quais estiveram, porém, os acordos de leniência celebrados pela Lava Jato com grandes corporações privadas e com a Petrobras seguiam em aberto e produzindo novos escândalos. “Lamentavelmente, tais fatos coincidem com o informado no Ofício 2429/2020/CMPF pela Corregedoria-Geral do MPF ao ministro Ricardo Lewandowski, no âmbito dos Embargos de Declaração na Reclamação 43007, de que a Corregedoria-Geral do MPF, não tendo acesso a dados e documentos, ficou na dependência interna corporis junto aos procuradores que, ao tempo, atuaram nos casos da Lava Jato em Curitiba em parceria com Estados estrangeiros, para prestar as informações solicitadas pela Suprema Corte brasileira”, diz o texto assinado pelo procurador-geral à época.
Ao dar os primeiros golpes no intuito de explorar o filão dos processos tornados invisíveis e solicitar auditorias nos sistemas de votação eletrônicas usados pela Associação Nacional dos Procuradores da República com anuência dos gabinetes de procuradores-gerais pretéritos, constataram-se duas graves falhas que comprometiam a idoneidade de muitas rotinas do Ministério Público Federal.
Uma dessas falhas graves se deu em torno do sistema de votação por meio do qual eram formadas as listas tríplices da ANPR. Aquelas listas vinham sendo tradicionalmente produzidas e era lá onde os ex-presidentes da República Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff haviam ido buscar os mais votados para nomearem seus procuradores-gerais – Cláudio Fontelles, Antônio Fernando de Souza, Roberto Gurgel e Rodrigo Janot. De acordo com a descoberta, baseado em perícias técnicas, descobria-se que as listas eram fraudáveis. Foram efetuadas três perícias por diferentes órgãos: Advocacia Geral da União, Exército e pelo próprio Ministério Público Federal.
A outra falha descoberta estava na distribuição eletrônica dos processos oriundos da “Operação Lava Jato” no Superior Tribunal de Justiça. O laudo técnico 1110/2020 PGR/SPPEA/DIEX/ANPTI, contratado para “tratar da transparência quanto à distribuição de processos judiciais e procedimentos extrajudiciais”. Aquela perícia, em específico, analisou “a confiabilidade e segurança do Sistema Único em relação à distribuição de processos, se ocorreram distribuições manuais e os motivos destas – dentro do período de julho de 2018 e julho de 2020 – como também se a Corregedoria-Geral do MPF teve acesso às distribuições manuais realizadas”.
Drenar aquele veio adjacente do rio de informações sigilosas e invisíveis contidas nos sistemas informatizados do Ministério Público Federal poderia resultar em nada, ou em algo muito grave. O extrato da bateia, depuradas as impurezas, pode ser visto como ouro, ou como lama.
“Ocorreram 1.644 distribuições manuais de processos oriundos do STJ, para o período analisado”, estabelece o item 3 das conclusões do laudo técnico. “Verifica-se que para 932 das distribuições manuais do STJ não foi possível identificar as justificativas, pela falta de preenchimento das mesmas”, prossegue o texto de conclusão. “Foi possível identificar também os grupos de distribuição que realizaram as distribuições manuais (...) bem como os ofícios que receberam estas distribuições”. A pureza dos minérios extraídos dali, ou o quão espessa era a lama existente naquele filão agravava-se à medida em que o dreno o sugava. As 932 distribuições manuais não tiveram justificativas preenchidas pelo usuário. Além disso, algumas justificativas foram produzidas a posteriori no sistema Único, onde tudo devia ser impessoalmente automático a fim de garantir a institucionalidade dos procedimentos.O resultado desta perícia técnica na forma como os processos eram distribuídos para os representantes do Ministério Público Federal no Superior Tribunal de Justiça nunca foram ruidosamente divulgados. Afinal, uma vez expostos, os resultados daquela mineração poderiam fazer ruir a montanha em que estavam assentadas algumas das garantias invioláveis dos cidadãos (e, no caso, de empresas que também enfrentavam ações decorrentes das “Operação Lava Jato”). Dentre elas, a da impessoalidade dos procedimentos judiciais. Em tese, é assim que o Estado tenta promover Justiça e não dar vezo a perseguições. Porém, as distribuições manuais se concentravam nas ações oriundas da “Lava Jato” e se davam para sempre driblar a designação do “procurador natural” no âmbito do STJ. O dique em que estavam represados os rejeitos, os trejeitos e a credibilidade interna corporis (e, também, externa) dos operadores do Direito que se abrigavam sob o guarda-chuva das forças-tarefas do Ministério Público, sobretudo da “Força Tarefa da Lava Jato” no Paraná, começava a apresentar fissuras por todos os lados.Pressionados pelas revelações dos diálogos impróprios, alguns deles revelando estratagemas persecutórios claramente ilegais, trazidos à luz pela “Operação Spoofing” desencadeada desastradamente a pedido do ministro da Justiça, Sérgio Moro, a fim de conter os vazamentos das trocas de mensagens entre ele, Dallagnol e outros procuradores centrais no modus operandi lavajatista, os integrantes da autoproclamada “República de Curitiba” (procuradores federais, sobretudo; mas, também, magistrados, policiais federais, delegados e políticos de variados matizes) começaram a perceber que a hegemonia de poder em Brasília estava por um fio.
Foi então que Januário Paludo, um dos integrantes da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, atendendo a pedido de Dallagnol, solicitou à sua amiga pessoal Lindôra Araújo, subprocuradora-geral da República que no organograma de Aras herdou a missão de integrar as ações e pedidos da “Operação Lava Jato” com as pretensões do novo PGR, para que fosse urgentemente ao Paraná. Paludo pediu ajuda a Lindôra para o gabinete da PGR aliviar o acúmulo de inquéritos em Curitiba e transformar a maioria deles em ações. Começava a partir dali um capítulo decisivo para a história do Ministério Público Federal no quadriênio 2019-2023, quando a democracia esteve sob intensa ameaça.
INDESEJÁVEL LINDÔRA (Curitiba, 25 de junho de 2020)
“MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL
PROCURADORIA DA REPÚBLICA -PARANÁ
FORÇA-TAREFA LAVA JATO
Ofcio N 5768/2020-PRPR/FT
À Excelentíssima Senhora
ELIZETA MARIA DE PAIVA RAMOS
Corregedora-Geral do Ministério Público Federal
Corregedoria-Geral do MPF
SAF Sul, Quadra 4, Conjunto C
CEP 70050-900- Brasília/DF
Assunto: Presta informações
Excelentíssima Senhora Corregedora-Geral,
Os signatários, honrados em cumprimentá-la, comparecem à presença de Vossa Excelência para encaminhar informações sobre reuniões e atos realizados pela Excelentíssima Subprocuradora-Geral da República Lindôra Maria Araújo na força-tarefa do Ministério Público Federal no caso Lava Jato em Curitiba nos dias 24 e 25 deste mês, em que se buscou acesso a informações, procedimentos e bases de dados desta força-tarefa em diligência efetuada sem prestar informações sobre a existência de um procedimento instaurado, formalização ou escopo definido.
1. A Excelentíssima Subprocuradora-Geral da República Lindôra Maria Araújo comunicou, no dia 23 de junho, à Excelentíssima Procuradora da República Chefe no Estado, Paula Cristina Thá, mediante ligação telefônica para celular funcional desta, que compareceria à sede da procuradoria no dia seguinte, solicitando uma reunião com ela e o procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Ministério Público Federal no caso Lava Jato no Paraná.
Não foi informada a pauta da reunião e quem acompanharia a Exmª Subprocuradora. Também não foi formalizado nenhum ofício solicitando informações ou
diligências, ou informado procedimento correlato, ou mesmo o propósito e objeto do encontro. Além disso, não informou se a diligência era de natureza administrativa, correicional ou finalística.
2. No dia 24 de junho, a Subprocuradora-Geral compareceu acompanhada do Secretário de Segurança Institucional, o Delegado de Polícia Federal Marcos Ferreira dos Santos, e de membro integrante do gabinete do Procurador-Geral, o Procurador da República Galtiênio da Cruz Paulino”
(...)
O ofício é extenso, 11 páginas, para mero despacho burocrático. Estava assinado com tintas de indignação por Deltan Dallagnol e os outros 13 integrantes da “Força-Tarefa da Lava Jato” em Curitiba, Paraná. Num texto prolixamente defensivo, argumentavam que a subprocuradora-geral Lindôra Araújo não havia sido chamada à regional paranaense para bisbilhotar procedimentos das operações que eles conduziam muito bem. Até mesmo Januário Paludo, amigo pessoal de Lindôra e responsável por convencê-la a fazer a viagem em pleno início da pandemia por coronavírus Covid-19 e em dias de implacáveis restrições de deslocamentos e convívio interpessoal entre quaisquer pessoas. O cerne do estranhamento deles foi ver a subprocuradora-geral desembarcar no coração e centro operacional da Lava Jato acompanhada de um delegado da Polícia Federal, especialista em Tecnologia da Informação e segurança de banco de dados, Marcos Ferreira dos Santos, e de um representante direto de Augusto Aras, o procurador Galtiênio Paulino.Quando remanescentes do gabinete de Rodrigo Janot na PGR souberam que Lindôra não viajaria sozinha, mas, sim, acompanhada de uma dupla fora da influência gravitacional do lavajatismo que lutava para sobreviver como nos tempos antigos – pré “Operação Spoofing” – bateu a paúra. Enquanto o trio voava num dos escassos voos que ainda saíam de Brasília para Curitiba durante o contingenciamento determinado pelas regras sanitárias dos tempos de pandemia, os fiéis escudeiros da Lava Jato fizeram chegar à matriz operacional curitibana a informação de que a subprocuradora-geral se dirigia ao Paraná “para fazer um flagrante e uma busca e apreensão”. Era falso, a popular fake news. Contudo, a capacidade de procuradores da República inventarem uma mentira de tal monta contra uma subprocuradora-geral, transmiti-la a outros procuradores responsáveis por uma força-tarefa gigantesca e polêmica que eletrizava o País havia quase seis anos e serem levados a sério pelos receptores da fake news, dá a medida do tanto que tinham a esconder.O objeto central das preocupações do núcleo central da Lava Jato em Curitiba era manter oculto a utilização corrente que se dava ao software Digivoice VB 3030 PCI-E, à placa de circuitos E-1 CAS PCM 2 Board e ao hardware que o abrigava, o servidor HP DV 320e G8v2e. O conjunto, denominado Vocale R3, foi adquirido pela procuradoria regional da República no Paraná à empresa Trendcom Teleinformática no dia 1º de fevereiro de 2016 pelo valor total de R$ 14.680,00 e era capaz de fazer interceptações gravações telefônicas à distância e monitorar todos os usuários de determinadas redes de telecomunicação.Usada sem parcimônia, moderação, ética, limites e fora de quaisquer parâmetros de legalidade, a ferramenta havia permitido que o núcleo central da “Operação Lava Jato” acumulasse mais de 30.000 gravações de conversas telefônicas efetuadas sem autorização judicial; um acervo de mais de um milhar de horas de diálogos entre as mais diversas personagens e sobre os mais improváveis temas. Registros digitais do software Digivoice revelam que a senha atribuída com exclusividade a Deltan Dallagnol acessou diretamente 156 dessas gravações ilegais com o objetivo de escutá-las privativamente. Esses números globais somente foram obtidos, claro, depois da correição à qual a força-tarefa curitibana foi submetida depois da passagem de Lindôra Araújo pelo breve período de dois dias na capital do Paraná no curso dos estranhos tempos pandêmicos.
No ofício 5768, em escrita coletiva, a “FTLJ/PR”, como eles tinham orgulho de subscrever alguns documentos ou textos informais, tenta se defender do indefensável: havia um equipamento para realizar gravações telefônicas na sede da procuradoria da República no Paraná, e várias gravações sem autorização judicial foram feitas. Num estilo espertamente ladino e farsesco, edulcoram as ilegalidades flagradas. Seguem trechos integrais do texto defesa produzido e encaminhado à então corregedora-geral do Ministério Público Federal, Elizeta Maria de Paiva Ramos (mais à frente, dado atraso injustificável decorrente de má leitura política do Governo Lula, substituta interina de Augusto Aras na PGR até que fosse designado, sabatinado e aprovado pelo Senado um novo nome para a Procuradoria Geral da República):
“A Subprocuradora fez referência, nesse ponto, a conversa telefônica entre ela e o coordenador da força-tarefa há alguns meses, em que este apresentou, a despeito dos relevantes resultados alcançados, sua preocupação em razão do volume de trabalho pendente que se acumulava.
Questionada se havia razão específica para a análise do acervo, a Subprocuradora afirmou que a Excelentíssima Corregedora-Geral deveria estar na reunião junto com ela, mas não pôde comparecer em razão de um problema de saúde, e acrescentou que gostaria de verificar qual foi o tratamento dado às pendências: se viraram notícias de fato, denúncias ou foram arquivadas.
O segundo trabalho seria executado, na área de tecnologia de informação, pelo Secretário de Segurança Institucional, esclarecendo que no dia seguinte se uniria à equipe, para a realização das tarefas, um técnico de informática de outra unidade do Ministério Público Federal.
No início da conversa do dia 24, antes de abordar o segundo trabalho a ser executado, houve questionamento pela Subprocuradora sobre a transferência de bases de dados da força-tarefa para Brasília, o que foi objeto de requisição encaminhada à força-tarefa pelo Excelentíssimo Procurador-Geral (Oficio n' 456/2020- CHEFIAGAB/PGR) e cuja operacionalização, dentro dos parâmetros legais, já está sendo tratada diretamente com a Secretaria de Pesquisa e Análise do Ministério Público Federal (respondido por meio do Oficio PR-PR-00036894/2020, e objeto de reunião entre integrantes desta força-tarefa com o Secretário da SPPEA em 22/06/2020).
Embora a Exma. Subprocuradora tenha afirmado que não buscava a transferência de dados sigilosos, discutiu-se, entre outros temas, que tipo de dados poderiam ser transferidos com as devidas cautelas legais, já que há muitos dados obtidos a partir de decisões judiciais em matéria de reserva de jurisdição, a fim de garantir a segurança jurídica da transferência e uso do material.
Nessa discussão, a equipe da procuradoria-geral sustentou o entendimento de que materiais, mesmo obtidos mediante decisão judicial, podem ser compartilhados para acesso para fins de inteligência no âmbito do Ministério Público. O coordenador da força-tarefa informou que a transferência é possível, ressaltando a importância de se cercar das cautelas jurídicas adequadas para evitar questionamentos e arguição de nulidades sobre informações e provas.
Para a execução desses trabalhos de informática, cuja finalidade não foi formalizada, não foi informada nem ficou clara, a equipe da Subprocuradora-Geral solicitou a presença de servidores da área de informática no dia seguinte, 25 de junho. Quanto ao objetivo do trabalho, na ocasião, o Secretário de Segurança Institucional afirmou que ‘estamos fazendo um inventário bem grande do Brasil inteiro'.
A equipe da Subprocuradora-Geral foi perguntada sobre quem deveria estar presente entre os vários integrantes da informática no dia seguinte, tendo os integrantes perguntado quantas são as bases de dados da força-tarefa do Ministério Público Federal no caso Lava Jato no Paraná, quantas pessoas são responsáveis pelas bases de dados, e que bastava que estivessem suficientes pessoas para acessar tudo.
A Excelentíssima Subprocuradora-Geral solicitou que a reunião fosse encerrada, diante do cansaço dos integrantes da equipe, afirmando que no dia seguinte seriam mais bem delimitados os trabalhos.
3. Diante do caráter inusitado das solicitações, sem formalização dos pedidos e diligências, os procuradores da força-tarefa da Lava Jato realizaram reunião virtual na noite do dia 24, a fim de discutir como poderiam ser adequadamente atendidas as demandas, com o devido cuidado com as regras legais.
Em razão da incerteza sobre o caráter da diligência e sua eventual relação com a atividade da Corregedoria, e diante da menção pela Subprocuradora-Geral de que a Corregedora-Geral estaria na reunião se não fosse por questão de saúde, os procuradores entraram em contato com a Corregedora-Geral do Ministério Público Federal.
Tal contato se fez a fim de os procuradores estarem seguros em adotar uma posição harmônica com as diretrizes institucionais e legais que norteiam o trabalho do Ministério Público Federal, a fim de apresentar seu entendimento e assegurar que se garante, ao mesmo tempo, deferência ao trabalho institucional da Procuradoria-Geral e respeito aos direitos e deveres impostos pela lei e e inerentes ao cargo.
De fato, em razão da existência de informações vinculadas a investigações e a processos sigilosos nos procedimentos e nas bases de dados, entre os quais informações sobre operações a serem deflagradas, dados sujeitos à cláusula de reserva jurisdicional obtidos a partir de decisões judiciais para instruir apurações especificas, além de provas obtidas por meio de cooperação jurídica internacional sujeitas ao princípio da especialidade, com restrições e condicionantes de uso, é importante resguardar procedimento de acesso das cautelas constitucionais legais devidas, motivo pelo qual não se vedou o acesso, mas se pediu a adequada formalização, até mesmo para a prevenção de responsabilidades.
Registrou-se, ainda, no contato com a Corregedora-Geral, a extrema deferência que os signatários têm em relação à relevância das atribuições e do papel da Subprocuradora-Geral e do Procurador-Geral. Ao mesmo tempo, entende-se que a prerrogativa de ter acesso a investigações sigilosas conduzidas por outro integrante do Ministério Público demanda justificativa legal e fática, seja para resguardar o sigilo imposto por decisão ministerial ou jurisdicional, sempre orientadas no interesse público, seja para a preservação da intimidade dos investigados, seja para se assegurar a eficiência dos atos de investigação.
Na ocasião, a Excelentíssima Corregedora-Geral informou que não há qualquer procedimento ou ato no âmbito da Corregedoria que embase o pedido de acesso da Subprocuradora-Geral aos procedimentos u bases da força-tarefa a. Informou ainda que eventual embasamento para o pedido de acesso deveria ser indagado à Subprocuradora-Geral.
4. Na data de hoje, dia 25 de junho, no horário marcado para dar seguimento às conversas, às 10 horas, além da equipe da Subprocuradora-Geral, que se fez acompanhar de servidor da informática vinculado à Procuradoria-Regional da 4a Região (servidor chamado por "Melo"), fizeram-se presentes à reunião os Procuradores da República e Procuradores Regionais da República, todos integrantes da força-tarefa do Ministério Público Federal no caso Lava Jato no Paraná, Deltan Dallagnol, Júlio Noronha, Orlando Martello, Paulo Galvão, Laura Tessler, Antonio Diniz, Felipe Camargo, Alexandre Jabur e Joel Bogo.
Na ocasião, os referidos procuradores reafirmaram a deferência à Procuradoria-Geral da República e o interesse de contribuir para as atividades institucionais, franqueando o acesso a todas as informações públicas que constam nas bases de dados da força-tarefa, sobre as quais não há restrições legais. Além disso, os procuradores da força-tarefa expressaram seu entendimento de que é possível o acesso a informações sigilosas quando há justificativa fática e legal para tanto, com base em decisões judiciais pretéritas, dependendo eventual uso de formalização do pedido de compartilhamento. Para tanto, é necessário o número dos autos que fundamentam a solicitação, até mesmo para que se possa formular em juízo o pedido de fornecimento de provas a membros sem atribuição para atuar nos casos em que estas foram produzidas ou que sejam correlacionadas.
Nessa reunião, a Subprocuradora manifestou discordância sobre a realização de reunião prévia dos procuradores para definir o âmbito de seu acesso a informações, pois sua ação independeria de qualquer decisão dos procuradores, e expressou indignação pelo fato de os procuradores terem consultado a Corregedoria sobre como proceder. Diante da consulta à Corregedoria, o que representaria supostamente uma quebra de confiança, a Subprocuradora afirmou que não havia mais como ela seguir na diligência que realizaria.
Nesse momento, a Subprocuradora solicitou que fosse exarada certidão pelo Coordenador desta força-tarefa informando que lhe teria sido negado acesso a informações detidas por esta unidade ministerial. Os procuradores reafirmaram que ela poderia acessar dados públicos e dados sigilosos (o que se daria no contexto de autorização conferida por decisões judiciais), dependendo da necessária base fática e formalização para uso das informações e provas. Afirmaram ainda que poderiam certificar tal fato se houvesse formalização de uma solicitação, até porque sem solicitação não se sabe o que é buscado e qual a sua finalidade.
A Subprocuradora, no momento, afirmou que pediria à Corregedoria do Conselho Nacional do Ministério Publico a instauração de correição para realizar o exame que lhe teria sido supostamente negado.
Em conclusão, não houve recusa a nenhum pedido de acesso justificado a dados, mas também não houve justificativa de nenhuma natureza para o pretendido acesso, que se assemelha mais a uma correição extraordinária, oficiosa, por quem não possui atribuições correcionais e não agiu em delegação da Corregedoria-Geral.
5. Ato contínuo, a Subprocuradora-Geral foi embora e os signatários franquearam amplo acesso para inspeção física da equipe da Subprocuradora-Geral aos equipamentos de informática da força-tarefa, com o acompanhamento, conforme solicitado pelo Secretário de Segurança Institucional, de dois servidores lotados nesta força-tarefa. Nesse momento, questionado sobre o fundamento da diligência, o Secretário informou que objetivava cumprir ordem de missão expedida pelo Excelentíssimo Procurador-Geral, que não a tinha no momento, mas se disponibilizou a realizar a formalização da diligência mais tarde.
Segundo a Procuradora-Chefe informou posteriormente aos procuradores da força-tarefa, na inspeção a equipe da Subprocuradora-Geral manifestou especial interesse por uma solução de informática adquirida pela Procuradoria da República do Paraná em idos de 2015, no contexto da segurança e proteção da integridade física e moral dos membros e servidores da força-tarefa.
A aquisição desta solução tecnológica observou as formalidades necessárias no âmbito do Ministério Público Federal. Conforme Memorando PR-PR-00049268/2015, de 22/10/2015, a Coordenadoria de Tecnologia da Informação da Procuradoria da República no Estado do Paraná foi demandada por integrantes desta força-tarefa Lava Jato, para adquirir solução de gravação de ligações telefônicas nos ramais utilizados por aquele grupo de trabalho, nos mesmos moldes de soluções existentes e empregadas em outras unidades do Ministério Público Federal.
Foram, então, realizados estudos pela equipe do Núcleo de infraestrutura de Tecnologia da Informação que culminou com a especificação técnica objeto do Pregão Eletrônico n 34/2015, um Registro de Preços para fornecimento e instalação de sistema de gravação de chamadas telefônicas. Subsequentemente, e antes da aquisição, os integrantes da força-tarefa solicitaram à Coordenadoria de Tecnologia da Informação e Telecomunicação que fosse verificado com a Secretaria de Tecnologia da Informação/Secretaria Geral na Procuradoria-Geral da República, a possibilidade de eventual aquisição destes equipamentos com verbas que sobrassem no final daquele ano, com a ciência e concordância da Chefia da PR/PR. Assim, em 29/12/2015 foi empenhada a aquisição do equipamento e dos serviços devidamente licitados pela administração da PR/PR.
Ou seja, toda a aquisição do equipamento se deu pelas vias oficiais e com conhecimento integral da Administração, inclusive da Administração Superior, do Ministério Público Federal.
Importante ressaltar que, entre 2015 e 2016, a força-tarefa de procuradores recebeu diversas ameaças por telefone e correspondências, o que conduziu inclusive à instauração de inquérito policial (autos no 5017581-18.2015.404.7000 e 5044981-07.2015.404.7000). Além disso, poderia se revelar necessária ou conveniente, por questões de segurança jurídica ou moral, a gravação de certas ligações telefônicas feitas pelos próprios procuradores para tratar das investigações.
Por tais razões, nos moldes expostos, por meio de procedimento licitatório, a Procuradoria da República no Paraná adquiriu equipamento para permitir que cada procurador ou servidor solicitasse a gravação de ligações telefônicas feitas ou recebidas em seu próprio terminal fixo de uso funcional. É importante frisar que o equipamento é limitado à gravação de ligações feitas por terminais da própria procuradoria e foi acionado por alguns dos integrantes da força-tarefa para gravar suas próprias ligações, jamais ligações de terceiros.
Nesse contexto, em razão de ameaças feitas à Servidora Maíra Leite, secretária da força-tarefa que atendia ligações externas, e com a concordância expressa dela, solicitou-se que fosse realizada a gravação das ligações relacionadas ao seu terminal telefônico. A partir de contato feito nesta data com a referida servidora, ela recordou que, uma vez autorizada a gravação de seu terminal, era realizada automaticamente a gravação de todas as ligações. Acrescentou que, em razão de ter esquecido de pedir encerramento da gravação quando se removeu para outra unidade, é possível que a gravação do seu terminal em que foram recebidas ameaças, ameaças, tenha continuado a ser realizada nos anos seguintes. Contudo se esse lapso eventualmente ocorreu, não chegou ao conhecimento dos procuradores da força-tarefa e não se tem notícia de que eventuais gravações tenham sido acessadas por procuradores ou servidores.
Também nesse contexto, apurou-se que o servidor Lucas Pauperio Henche, também em razão de ameaças, solicitou a gravação de seu terminal e, segundo informou, não pediu que fosse encerrada. O mesmo ocorreu em relação ao Procurador Regional da República Carlos Fernando dos Santos Lima, que pediu a gravação de seu terminal e também, quando de sua aposentadoria, não pediu o encerramento da gravação. A gravação desses terminais pode ter seguido ocorrendo ou porque esqueceram de pedir que fosse encerrada, ou porque não foram corretamente informados sobre a necessidade de solicitar o encerramento.
Ressalta-se, assim, que as gravações de determinados terminais da força-tarefa foram sempre pedidas pelos próprios usuários desses terminais. Segundo recordam os integrantes da força-tarefa, ele foi utilizado poucas vezes no período e, com o passar do tempo e o encerramento das ameaças, caiu em desuso.
6. Diante de todos esses fatos, como medida de cautela, e para prevenir responsabilidades, reputou-se apropriado informar a V. Exa. sobre os fatos, a fim da adoção das providências reputadas cabíveis, ficando os signatários à disposição para prestar as informações adicionais que se fizerem necessárias.
Por fim, reitera-se que todos os elementos de informação disponíveis nesta força-tarefa encontram-se à disposição de Vossa Excelência, ou de qualquer autoridade designada por Vossa Excelência, para o exercício da função correicional, não havendo nenhum óbice ao pleno acesso a qualquer dado considerado útil para as relevantes atribuições exercidas por essa corregedoria.”
De início cooptada pela força-tarefa da Lava Jato curitibana, a então corregedora-geral do Ministério Público Federal, Elizeta Maria de Paiva Ramos, não caiu no agá malandro de Deltan Dallagnol e dos procuradores leais a ele no Paraná. “Frise-se, de antemão, que uma vez concluída a colheita preliminar de elementos de informação, não foi possível aferir a existência de irregularidades ou da prática de eventuais infrações disciplinares por parte da subprocuradora-geral Lindôra Maria Araújo ou da equipe que a acompanhava”, escreveu Paiva Ramos na decisão 128/2020 do CNMP. A Corregedoria-Geral do MDF abriu, então, um amplo processo de investigação dos atos suspeitos da “Operação Lava Jato” a partir do flagrante irrecorrível de que havia um equipamento de gravação à disposição da força-tarefa liderada por Dallagnol.
“Averiguou-se inicialmente que o procurador da República Deltan Dallagnol sedimentou narrativa em torno da suposta intenção da subprocuradora-geral Lindôra Araújo de acessar as bases de dados daquela força-tarefa, com afirmações repetidas de que seu objetivo em Curitiba era nebuloso e incompreensível, com a aparente finalidade de se conduzir à tomada de uma atitude do grupo de procuradores da força-tarefa da Lava Jato contra a subprocuradora-geral”, registrou ainda Elizeta na decisão que ensejou o desbaratamento da “FTLJ/PR” e, depois, que terminou sendo responsável pela cassação do mandato de Dallagnol como deputado federal.
O Tribunal Superior Eleitoral acatou os argumentos de adversários políticos de Dallagnol que acusavam o já então ex-procurador de ter deixado o Ministério Público para fugir da correição à qual estava sendo submetido por causa da viagem de Lindôra Araújo ao Paraná em junho de 2020.
“Ademais, foi confirmada na inspeção a existência de um equipamento de gravação de ramais telefônicos, denominado Vocale R3, desvendando-se que gravações foram feitas, por meio dele, de modo contínuo e sem que agentes públicos usuários dos ramais tivessem conhecimento”, diz outro trecho da decisão. E segue: “Há, inclusive, notícias de que a própria Procuradora-Chefe do Paraná só tomou conhecimento da existência deste equipamento após a realização da inspeção realizada em 25 de junho de 2020.” Em depoimento à Corregedoria-Geral do Ministério Público, Lindôra Araújo e o delegado federal que a auxiliou nas produtivas diligências em Curitiba foram certeiros e assertivos ao narrar o que haviam encontrado: “Então, fomos lá, o Dr. Marcos fez a inspeção na parte de informática e quando nós sentamos com a Dra. Paula, que é a Procuradora-Chefe do Paraná, e mais o pessoal da Informática, que eles não queriam mandar ninguém ir, porque disseram que em pandemia ninguém trabalha eu disse que eles iam ter que deixar irem alguns técnicos, porque não é possível que ninguém possa vir trabalhar. Chamaram alguns técnicos e o Dr. Marcos disse que queria falar com o Chefe da Informática. Disse que o técnico falou que lá tinha um aparelho que grava. Ficou todo mundo espantado. Como assim tem um aparelho que grava? Ele voltou a afirmar a existência do aparelho. Então, o Dr. Marcos disse que não viu esse aparelho e perguntou onde estava. Eles foram guiados pelo celular por esse rapaz, que estava no telefone e tinham mais três técnicos, um do Rio Grande do Sul e dois de lá de Curitiba, mais esse que estava no Facetime, mais a Dra. Paula, que tomou um susto, porque não sabia da existência desse aparelho. Tomou um susto mesmo, não tinha a menor ideia”, depôs Lindôra. “Quando estávamos presentes eu, Dra. Lindôra e Dr. Marcos, e os demais servidores, a Procuradora-Chefe deu a entender que tomou conhecimento desse aparelho na ocasião”, depôs por sua vez Galtiênio Paulino."Ela (Paula Cristina Thá, procuradora-chefe da regional da PGR no Paraná) queria, enfim, lavrar uma certidão dizendo que as diligências tinham sido cumpridas a contento Essa era a ideia. Eu disse: 'não tem problema' (...). Atrasamos um pouquinho (.) eu, Dra Lindôra e Dr. Galtiênio. Aí tem uma sala de reunião lá (...) a Dra. Lindôra e Dr. Galtiênio já estavam lá nos aguardando e toda a equipe da Informática e mais o chefe da Segurança. Perguntando se essas pessoas tinham participado da diligência anterior (...) Eles estavam na sala também. Estavam esses dois técnicos, o Chefe da Segurança e o Chefe da Informática (...) Na verdade, foi na ocasião em que eu identifiquei o aparelho. (...) Ela perguntou para mim como tinha sido, eu disse que tdo tinha sido realizado a contento, só tem um equipamento que eu não encontrei (...). Eu disse a ela ‘só não encontrei um equipamento tal, se trata de um gravador de chamadas, marca tal, que foi licitado no pregão tal, no final do ano de 2015 e que foi instalado aqui em 2016. Eu não achei esse aparelho. A Sra tem ciência desse aparelho? Ela: ‘eu não tenho ciência’. (...) Nessa ocasião o chefe da Informática, espontaneamente disse: 'Não, mas ele existe. Ele existe. Eu só não sei identificar. Mas, ele está instalado dentro do CPD'. Então, nós tínhamos a seguinte situação: O Chefe da Informática não conhecia o aparelho, sabia que ele estava instalado, a Procuradora-Chefe do Estado sequer sabia da existência do aparelho”, disse o delegado Marcos Ferreira dos Santos em seu depoimento.
Mário Bonsaglia, subprocurador-geral da República e relator daquele ato de correição, em que pese tivesse sempre deixado claro que considerava admiráveis os resultados obtidos pela “Operação Lava Jato”, precisou admitir em seu relatório o que era inescapável e já fofoca corrente nos corredores da PGR em Brasília. “O aparelho, portanto, foi adquirido a pedido e para uso da Força-Tarefa, e assim foi exclusivamente utilizado, conforme comprovam os documentos acostados aos autos, referente ao PGEA 25.000.003713/2015-95; os depoimentos de testemunhas, dentre elas os servidores da área de TI, inclusive o que era responsável pelo gerenciamento do equipamento; e a listagem de ramais gravados fornecidos pela Procuradoria da República no Paraná. Por outro lado, embora alegue-se que o equipamento se tornou obsoleto, diante das funcionalidades dos celulares atuais, fato é que os ramais continuaram a ter conversas gravadas até julho de 2020, sem cessar. Assim, forçoso concluir que a conduta do então Coordenador da Força Tarefa, o Procurador Deltan Martinazzo Dallagnol, se enquadra como infração às normas previstas no art. 236, caput e incisos VII e IX da Lei Complementar n° 75/1993, uma vez que tinha conhecimento das gravações e de que eram realizadas sem a devida regulamentação, formalização ou com a adoção de protocolos de segurança, por mais de 4 (quatro) anos, sendo o aparelho usado exclusivamente pela Força-Tarefa, fragilizando a segurança da informação nela compartilhada, sem a tomada de providências para comunicar ou sanar a irregularidade”.
A implosão do aparelho curitibano da “Operação Lava Jato”, com a transferência para Brasília de toda a base de dados amealhada pelos procuradores coordenados por Deltan Dallagnol na “FTLJ/PR”, era consequência natural daquela viagem indesejável de Lindôra Araújo à regional paranaense da Procuradoria da República. No Ofício 49/2021, de janeiro de 2020, enviado ao Corregedor Nacional do Ministério Público, no tópico 3.3 intitulado “Uso de aparelho tipo Guardião”, escreve o então procurador-geral: “No caso da FTLJ em Curitiba, somaram-se às irregularidades dos sistemas notícias da existência de aparelho ‘guardião’ na FTLJ-Paraná, que teria sido utilizado para a realização de gravações telefônicas sem autorização judicial”. E prossegue. “A alegada existência de equipamento ‘Guardião’ em Curitiba é objeto do procedimento administrativo 1.00.002.000044/2020-16, cuja comissão de sindicância é presidida por Sua Excelência a Subprocuradora-Geral da República Célia Regina Souza Delgado, que informou o encerramento da instrução processual, com a realização de perícia técnica do equipamento encontrado nas dependências ocupadas pela FTLJ em Curitiba”.Foi preciso a contratação de dois caminhões-baú, blindados, acompanhados de escolta de segurança armada, para que sistemas eletrônicos contendo mais de 40 terabytes de informações, 30.000 gravações de telefonemas executadas sem base legal e informações detalhadas sobre algo em torno de 38.000 cidadãos e cidadãs brasileiros – muitos deles, a maioria, sequer sabia que seus sigilos telemáticos, telefônicos, bancários e fiscais haviam sido quebrados – deixassem Curitiba rumo ao arquivo central da Corregedoria-Geral do Ministério Público Federal na capital do País. Em julho de 2020, Augusto Aras anunciou a extinção do modelo de constituição de forças-tarefa dentro do MPF e a criação de 27 GAECOS – Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado – federais. O combate e a resistência à “Força Tarefa da Lava Jato” de Curitiba não se davam apenas em parte da sociedade civil organizada, que havia compreendido as violações aos direitos constitucionais promovidas pela equipe comandada por Deltan Dallagnol a partir do Paraná, ou no gabinete do procurador-geral da República Augusto Aras em Brasília. Uma trincheira havia sido aberta pela subprocuradora-geral Viviane Martínez na Procuradoria Regional de São Paulo, onde também se tinha instituído uma força-tarefa lavajatista.No dia 18 de maio de 2020, por ofício (número 5312/2020/GABPR40-VOM), Martínez explodiu em ira contra procedimentos dos colegas da Lava Jato paranaense que eram de uma esperteza ímpar. Com base em um arranjo informal com a antecessora dela no comando do 5º Ofício da Regional paulista da Procuradoria da República, justamente o Ofício Criminal onde deveria estar sediada a “Força Tarefa da Lava Jato/SP” nos mesmos moldes do cluster do Paraná, Dallagnol e sua turma puseram em prática a ideia de ver a turma de São Paulo apenas chancelando as orientações e os procedimentos indicados em Curitiba. Ao assumir o comando daquela que se propunha a ser a “FTLJ/SP”, Viviane Martínez desfez o acerto que só favorecia o protagonismo do elenco curitibano e se recusou a oferecer denúncia contra um investigado indicado pelos lavajatistas de Curitiba.
Dallagnol e seus pupilos estrilaram ao tomarem conhecimento da recusa da encarregada do 5ª Ofício Criminal de São Paulo e a pressionaram de uma forma completamente fora dos padrões aceitáveis. Daí ela escreveu para o procurador-geral, Augusto Aras, um alentado lamento dando curso à exposição dos métodos nada republicanos dos colegas do Paraná.
“Na última reunião que tive com meus colegas da FT, eles disseram que posso meramente opinar sobre minha atribuição, mas que não devo decidir sozinha”, protestou Viviane Martínez do detalhado texto lamurioso enviado a Aras. “Sendo que em uma ocasião, onde ressalvei que decidiria sobre minha atribuição em momento futuro, num mero despacho simplificado dentro do sistema Único, fui questionada por este comportamento e tive a recomendação de não o repetir”.
Sem subterfúgios, lia-se ali uma subprocuradora-geral da República relatando ao chefe da Procuradoria Geral da República que procuradores de outra alçada diferente (e inferior à dela) censuravam-na por ter tomado uma decisão divergente daquela que eles desejavam e advertiam-na para não repetir o ato eivado de independência constitucional. “Por considerar relevante o trabalho da ‘FTLJ/SP’, optei por simplesmente não assinar com os colegas de lá os feitos que não forem livremente distribuídos ao 5º Ofício Criminal”, ainda escreveu ela. Para então sacramentar: “salientando que minha mera assinatura conjunta não significa que estou me voluntariando em investigações que posteriormente eu verificar que poderiam ser livremente distribuídas”.
O veemente protesto de Viviane Martínez, alguém cuja trajetória profissional dentro do Ministério Público Federal não tinha quaisquer pontos de contato ou paralelos com a caminhada do PGR Augusto Aras e com o vice-procurador-geral Humberto Jacques, terminou por catalisar todos os elementos internos do MPF que tornavam acidamente irrespirável o ar da instituição. A partir daquele ofício da procuradora lotada em São Paulo, que exemplificava as impropriedades e o déficit de institucionalidade do desarranjo improdutivo adotado a partir do contraexemplo paranaense, iria ser selado o destino das forças-tarefas e a troca do modelo pelos GAECOs federais. Em julho de 2020, Thiago Lemos de Andrade, procurador da República em São Paulo, havia feito uma veemente denúncia de irregularidade na distribuição processual de ações reunidas sob o guarda-chuca da “Lava Jato” em São Paulo. A queixa antecedeu os protestos de Martínez, mas, em tudo se parecia com ele: no território paulista, a distribuição processual não obedecia ao pricípio do procurador natural e era distorcida a fim de designar quem cuidaria de qual ação. E, invariavelmente, a decisão recaía sobre os gabinetes dos procuradores dóceis aos métodos lavajatistas determinados a partir de Curitiba.
No Paraná, sacramentada a troca das forças-tarefa pelos GAECOs, oito dos 14 procuradores que integravam a outrora orgulhosa e plena “FTLJ/PR” pediram para deixar o núcleo até então liderado por Dallagnol. Ele próprio abandonou o barco. “O lavajatismo há de passar”, celebrou Aras durante um programa de entrevistas concedido a um grupo de advogados numa plataforma de rede social. “Agora é hora de corrigir os rumos para que o lavajatismo não perdure. Mas a correção de rumos não significa a redução de empenho no combate à corrupção”, pontuou o então procurador-geral da República. “Temos de buscar a investigação científica e, acima de tudo, respeitar os direitos e as garantias fundamentais”.
Personalistas, modeladas a partir de um centro gravitacional que atrai profissionais de diversas áreas e hierarquias diferentes, as forças-tarefas padeciam de precariedade legal e adoeceram por hipertrofia de atribuições e acúmulo de gordura excessiva na coleta de material a ser chafurdado em investigações (às vezes, obtido sem base legal) até a morte definitiva, as forças-tarefas eram arranjos precários dentro da estrutura do Ministério Público. Previstos institucionalmente para existirem dentro do MPF desde 2013 e jamais implantados de fato, os GAECOs tinham previsão normativa, instituíam mandatos de dois anos com prorrogação previstas para seus membros, concediam gratificação por acúmulo de atividade e asseguravam a inamovibilidade a quem o integrasse e ainda eram formados a partir de critérios objetivos e transparência de preenchimento de vagas. Em tudo, diferente de uma “Força Tarefa da Lava Jato”, por exemplo, para a qual um procurador ainda imaturo dentro da carreira como Deltan Dallagnol dizia quais colegas queria ver designados para trabalhar com ele e estabelecia uma relação de obediência e lealdade incompatíveis com a impessoalidade das funções de integrantes do Ministério Público.
Ao contrário dos GAECOs, as forças-tarefas não tinham previsão normativa, as designações para quem as integrava eram precárias e careciam de constantes renovações por parte do PGR (o que obrigava o estabelecimento de relações pessoais constante e “lealdades” sempre a serem testadas ou renovadas). “O apoio de integrantes do Ministério Público Federal a outras unidades diferentes daquelas nas quais estavam lotados era para ser provisório e se tornou permanente”, observou o vice-procurador-geral Humberto Jacques de Medeiros na exposição de motivos que terminou por trocar forças-tarefa por GAECOs. “Tornando-se permanente, instala-se um clima organizacional de desigualdade de tratamento entre preteridos e privilegiados, centros de excelência e unidades de carência”.
Os Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado oxigenaram os métodos de ação de procurador e subprocuradores da República e intimidaram os mais afoitos no atropelo aos direitos e garantias individuais. Também permitiram uma melhor estruturação financeira do gabinete da PGR quanto ao pagamento de diárias e ressarcimentos. Como eram precárias, as forças-tarefa demandavam gastos públicos muitas vezes superiores à soma dos salários pagos aos seus integrantes somente nas rubricas de passagens, hospedagens e diárias de alimentação e transporte.
Em depoimento dado exclusivamente para refletir sobre o desmonte da “Operação Lava Jato”, sobre a troca do modelo precário de forças-tarefa pela forma institucional dos Grupos Avançados de Combate ao Crime Organizado (GAECOs), o subprocurador-geral da República Humberto Jacques de Medeiros, que foi vice-procurador-geral de Augusto Aras entre 2020 e 2021, explicou com rara clareza todo aquele processo:“A ‘autonomia da Lava Jato’ é um conceito a ser esclarecido. A Lava Jato não era autônoma na medida em que todo um corpo de colegas que estavam nela, à exceção do procurador natural, era precário. Ninguém é autônomo com precariedade na sua investidura. Todo o esforço feito na gestão do doutor Aras foi para pôr fim à precariedade da atuação do Ministério Público nas causas da Lava Jato, e não em pôr fim às causas da Lava Jato. Doutor Aras me convidou para assumir a vice-procuradoria-geral da República e eu recebi os processos criminais no Supremo Tribunal Federal que estavam antes com meu antecessor, doutor Bonifácio (José Bonifácio Borges de Andrada), e mandam do gabinete dele para o meu gabinete todas as coisas que estavam lá dentro e não tinham grande apelo, grande interesse. Aí, além das questões criminais, recebo as extradições, todos os processos do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal que dizem respeito a cartas rogatórias. Eram coisas aparentemente não polêmicas. Chega para mim, também, uma assessoria jurídica administrativa do gabinete do PGR. É a assessoria que produz as decisões do PGR como gestor do Ministério Público. Era uma assessoria que fazia as peças do Conselho Nacional do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça. Tinha muita coisa da época do doutor Rodrigo Janot, os últimos recursos administrativos dentro da casa etc. Vem para mim e eu digo: ok, não tem problema. Mas, também disse: diferentemente de outros PGRs, o doutor Aras não mais assinará portarias, quaisquer portarias, que são atos administrativos dele, sem que esteja anexado junto à portaria um parecer onde se saiba o que foi decidido, como e por que aquilo foi decidido. Acabava ali a história de ter parecer de procurador-geral da República sem exposição de motivos. Então, eu passei a produzir exposições de motivos para decisões do PGR. Eu as fazia, e fazia sem consultar a ele. Nunca ele me disse o que era para ser feito. Depois de feito, encaminhava para ele e a portaria era assinada. Ele não assinava os motivos. Mas, os motivos estavam nos autos. Daí ninguém podia perguntar ‘por que esse ato foi assim ou assado’? Qualquer ato que o doutor Aras assinou enquanto eu estive na assessoria jurídica administrativa tem um parecer calçando a decisão.Entre as coisas que vieram para mim, e quem encaminhava para mim era a assessoria do gabinete da PGR; eu não tinha nada a ver com isso, não chegava lá e dizia ‘quero isso, aquilo, aquilo outro’. Não. Os processos que chegavam até a mim para decisão do PGR, vinham para que eu fizesse o parecer que calçava a decisão. Depois, voltava para o gabinete e eles decidiriam se faziam ou não. Eu não controlava mais isso. Entre esses processos que chegaram a mim, estavam os pedidos de prorrogação da Lava Jato. Todos os colegas que colaboravam com as forças-tarefas do País estavam naquelas posições por ato precário do procurador-geral. Quando vieram os pedidos de renovação, eu dizia, colocava nos autos: ‘essa situação é anômala, essa situação não é adequada, isso não é possível, isso não é compatível com a Constituição, isso não é compatível com a Lei 75 (LOM), precisamos voltar ao eixo da legalidade da Lei Complementar 75’ (Lei Complementar 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público Federal). Quando liam essas coisas nos processos, os colegas reagiam. Havia troca de correspondências, troca de pareceres e diálogos que culminavam com as portarias do PGR. Então, foi um processo de ajustamento de conduta o que fizemos. Todas aquelas coisas que funcionavam no metaverso, nós as trouxemos para o eixo da legalidade. Aí eles passaram a ouvir negativas que até então nunca tinham ouvido. Eu tinha bons argumentos. Nem doutor Aras, nem eu, éramos votados. Ainda assim, estávamos em nossos cargos sem ferir a Constituição, legitimados pela lei. Então, não tínhamos nenhuma dependência do poder político deles. A gente dizia sucintamente: ‘olha, nos termos da Lei isso não pode, nos termos da Lei isso não é assim’. Então, realmente, era difícil você argumentar. Malgrado fosse difícil argumentar juridicamente, a relação interpessoal minha com o pessoal da Lava Jato do Paraná era muito boa. Eu dizia: ‘isso aqui não está correto. Como é que a gente sai dessa’? Daí começamos um programa de adequação. Nesse programa de adequação, desenhamos vários cenários possíveis de como a gente poderia entrar no eixo da institucionalidade. Nunca houve entre mim e meus colegas da Lava Jato, ou da Operação Greenfield (algo semelhante à força-tarefa da Lava Jato que existiu no âmbito da regional do Distrito Federal da Procuradoria da República e estava focada em movimentações do agronegócio), a discussão sobre a atuação em processos que eles fizeram. Isso nunca houve. Mas eu advertia: ‘você está há meses fora de sua unidade. Não pode ser assim’. Por exemplo: nós estávamos com uma unidade com sérios problemas indígenas, sérios mesmo, e os dois colegas não pisavam lá, na unidade de origem deles. Um estava na Lava Jato de São Paulo, o outro na Lava Jato de Curitiba, e eu via a chefe da Lava Jato e São Paulo brigando, que não devolvia o procurador cedido dela para o Mato Grosso do Sul. O Deltan dizia, por sua vez, que não devolvia o dele também para o Mato Grosso do Sul. E o procurador-chefe do Mato Grosso do Sul dizendo ‘eu preciso de um procurador ali’. Havia índios abandonados. É muito lindo o discurso a favor da Amazônia, mas a Lava Jato drenou a Amazônia. A colega que fazia Meio ambiente no Pará, estava na Lava Jato do Rio. O colega do Amapá, Lava Jato de Curitiba. Os colegas do Norte, jovens, em início de carreira, alguns sem vitaliciedade, mas que tinham a simpatia de Deltan, eram recrutados por ele para a Lava Jato, por critérios não conhecidos. Eles saíam do Norte e iam atender à Lava Jato. E eu dizia: ‘o Norte está desfalcado’. É lindo você falar ‘a Amazônia é terra sem lei’. Mas, durante quantos anos nós drenamos procuradores do Norte para as forças-tarefa do sul. As forças-tarefas não passaram do Trópico de Câncer. Elas não subiram o País. Você não teve uma lava-jato no Ceará, não teve uma lava-jato em Pernambuco. Por que? Deixo essa questão no ar. Agora, jamais tratamos com eles problemas dos processos em si. Isso era com a corregedoria. Comigo o assunto era administrativo.
Viviane de Oliveira Martínez foi a responsável por trazer à tona os problemas da distribuição processual. Todo mundo queria ter uma força-tarefa para chamar de sua. A instituição não tinha procuradores, nem dinheiro, nem estrutura, para tantas forças-tarefas. Raquel Dodge criou uma força-tarefa Amazônia, que foi um esforço interessantíssimo de alguns colegas, mas não tinha um centavo para lá. E não tinha dinheiro porque Deltan esgotou o orçamento.
Uma coisa divertida, entre aspas, era ver as forças-tarefas brigando entre si para conseguir mais recursos, mais espaço, mais colegas. Então, nessa hierarquia, não há sombra de dúvidas que Deltan Dallagnol saiu na frente e juntou tudo o que precisava para fazer rodar a Força Tarefa da Lava Jato em Curitiba. Tudo o que precisava. Nesse processo, ele, o ‘Juízo Universal de Curitiba’, tinha um acordo com São Paulo. Lá, a Lava Jato paulista tinha um acordo com Deltan: ele os deixava fazer mídia, e São Paulo não se metia nos processos que o Paraná considerava essenciais. Foi um belo toma-lá-dá-cá. Os paulistas tinham os bônus sem ter ônus de trabalhar de fato. Vários processos de São Paulo não iam para lá porque eles estavam satisfeitos em ter todos os bônus sem nenhum dos ônus. Quando a coisa começa a apertar no Paraná e todo mundo dizendo ‘opa, isso aqui não é aqui’, os processos saem do Paraná e vão para São Paulo e aí vem a cobrança. A pressão para saída foi do sistema de Justiça. Era a grande questão da competência que emergia. No fim, onde foi que ruiu o processo de Lula? Na competência. Isso é parte do problema da baixa institucionalidade das forças-tarefa. Eles não enxergaram isso, a precariedade que tinham.
A procuradoria regional do Distrito Federal eclodiu, então, como o primo pobre de Curitiba. Nos estertores da Lava Jato, a procuradora regional do Paraná diz que os procuradores do Paraná não querem receber os processos da Lava Jato. Eu pergunto ‘como assim’? E respondo a eles: ‘não, quem pariu Mateus que o embale’. Deltan implodiu o Ofício do Paraná com a Lava Jato. Eles se agigantaram e ficou inadministrável. Juntou processos lá do País inteiro. E depois a gente tinha de resolver os problemas dele? Enquanto alguns universalizavam seus foros, como Curitiba e aqui no Distrito Federal, com Anselmo Henrique Cordeiro Lopes, os seus pares diziam ‘se ele quer esse problema, eu não quero esse problema para mim. Não me incomoda’. Nenhum colega foi adverti-los diretamente de que eles estavam passando dos limites, salvo Viviane Martínez. Ela havia assumido o 5º Ofício, criminal, em São Paulo e lá caem os processos. Caem com ela. Ela, ortodoxa, diz: ‘os processos são meus. Processo meu, mando eu’. Aí, os colegas de São Paulo se perguntam ‘como que o Paraná está acontecendo, o Rio está acontecendo, e São Paulo não acontece’? Os colegas de São Paulo vêm a Brasília e cavam uma força-tarefa para São Paulo. Eles são nomeados e chegam para Viviane e exigem protagonismo, exigem funcionar regularmente nos processos. E nem é o Aras quem está na PGR ainda. O pipoco se deu no dia em que a Lava Jato propôs determinada ação e a Viviane disse que não assina, que não concordava. Naquele momento, deu-se o ‘Deus Me Livre’. No dia em que a procuradora natural de São Paulo lembrou ao Paraná, à turma da Lava Jato em Curitiba, que ela é era procuradora natural e que não tem votação por maioria para distribuição natural dos processos, que o promotor natural é ela, aí tudo desandou. Viviane teve um surto de institucionalidade e disse ‘se o processo é meu, quem decide o que fazer com ele sou eu’. E estava certa. O modelo paranaense ruiu ali e não rodou em São Paulo. Eles exigiram que ela denunciasse determinada pessoa, em determinado processo, e ela respondeu que acha que não er para denunciar e que não iria denunciar. E que o processo era dela. Isso, obviamente, deu um problemão e implodiu a força-tarefa de São Paulo.
Em Brasília, na PGR, foi montado um esquema parecido no Superior Tribunal de Justiça. Assim como fizeram em São Paulo com a Viviane, fizeram em Brasília com a doutora Áurea Catarina. Cercaram ela e a obrigaram a dividir os processos da Lava Jato com indicado deles. Sistema parecido ao paulista, mas dizia respeito à distribuição dos processos no STJ. Só que a doutora Áurea tinha problemas que a Viviane não tinha. Ela tinha muitos processos acumulados, uma ameaça no Conselho Nacional do Ministério Público de ser processada por excesso de acervo, e aceitou. Existia, portanto, um braço da Lava Jato no STJ, como se fosse a Lava Jato de São Paulo, em que o promotor natural era enfraquecido.
Houve um deslumbramento. Lembra do filme O Advogado do Diabo? A tentação do advogado com as forças-tarefa foi o deslumbramento de você ter a imprensa a seu favor, acuar a classe política, tinha um discurso messiânico que todos os colegas tinham orgulho do prestígio da instituição. Aquele orgulho fazia com que muitos colegas não percebessem que o que se estava fazendo tinha um profundo déficit de institucionalidade. Não consigo ver nenhum projeto político naquilo, mas era um deslumbramento da Lava Jato e da nossa carreira. Nossos colegas tinham orgulho de crer que estavam passando o País a limpo sem fazer cálculos de maturidade política de onde isso desaguaria.
Eu conheço Deltan, trabalhei com ele, nos damos bem. A carreira política do Deltan foi o que restou a ele; de alguém que nunca fez os cálculos, de um romantismo absoluto. No Moro isso é ainda mais evidente. O jeito dele é mais caipira, o passo curto. Foi o que restou a ele. Deltan, vamos arrumar o tema Lava Jato: Doutor Janot bancou vários media trainings para a Lava Jato. Deltan era o melhor aluno, daí tomou a dianteira e virou um grande comunicador. Essas coisas eram guardadas a sete chaves na gestão Janot. Era cristão novo, um bom repórter sem editor.
Acho que tem um lado Deltan comunicador sem a estrutura de um veículo responsável de comunicação. Havia messianismo, a certeza de que estava fazendo bem, e os colegas aplaudindo. Onde é que isso enfraquece? A Vaza Jato. Eu não sei o quanto que uma análise da Lava Jato mostra pureza ou mostra malícia. Mas, para a carreira, havia um grande idealismo ali.
Talvez, na Vaza Jato, perceba-se que havia pureza demais, ingenuidade. E você não tem o direito de ser ingênuo em nossa carreira. Para alguns, soou como mau caráter. A minha carreira aceita o bom coração. Eu posso fazer uma besteira se o propósito for nobre. Mas, não faça cálculo. Não faça cálculo.”
Augusto Aras confiou integralmente as missões administrativas ao seu segundo vice-procurador-geral, Humberto Jacques de Medeiros. Como explicou Jaques de Medeiros na íntegra de seu depoimento exposto no tópico anterior, o desmonte das forças-tarefa, e, consequentemente, dos núcleos da Lava Jato em Curitiba (PR), São Paulo (SP) e Rio de Janeiro (RJ), não se deu por mero e estreito antagonismo em relação aos métodos de ação dos procuradores que integravam aqueles grupos operacionais. Mas, sim, em razão da total falta de institucionalidade do modelo. A seguir, Aras explica com as palavras dele como se deu o desmonte e qual o papel de Humberto Jacques de Medeiros em todo o processo:
“O procurador-geral que joga para a torcida, que foi o que aconteceu da época do Fontelles para cá (Cláudio Fontelles, procurador-geral da República entre 2003 e 2005, durante o primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva), ele vai querer agradar a imprensa todo dia. A Procuradoria Geral, Circus Maximus, passa a crer que precisa dar todos os dias um espetáculo para a plateia. E a plateia é a população brasileira, que eles acham que pede pão e circo. Com isso, para produzir o circo, a PGR precisava dar cabeças diárias à mídia. Oferecem essas cabeças em bandejas. Isso era a Lava Jato. Temos hoje, julho de 2023, mais de 550 pessoas com prerrogativas de foro sendo investigadas em minha gestão. Sem estrépito. Sem circo.Esse modelo de forças-tarefa foi introduzido por Rodrigo Janot, meu antecessor e de Raquel Dodge na procuradoria-geral, com o grupo de Curitiba. A influência era claramente norte-americana, da experiência deles. Elas têm sucesso nos EUA porque lá são institucionalizadas. Aqui, não foram. Lá, elas são transversais dentro do Estado. Aqui, a força-tarefa era um aparelho dentro do Ministério Público, um corpo estranho. As nossas forças-tarefa eram informais e geravam muita despesa para o Estado. A despesa dela era suportada pelo gabinete do Procurador Geral da República. Todas as diárias, as passagens aéreas, tudo o que se gastava nelas, dependia da verba de gabinete do procurador-geral. Elas começavam com a notícia de jornal e a partir dali se fazia a fishing expedition. Lançava-se a linha e depois recolhia o molinete. Elas tinham um chefe em Curitiba, que era o Deltan Dallagnol, e um chefe em cada cidade onde tinha força-tarefa. Depois tudo era pendurado nos custos do gabinete do PGR. Não podia dar certo. Quem lida com a Justiça, com a lei, tem de observar as formalidades, os ritos, a institucionalidade.Lindôra Araújo, como subprocuradora-geral no Superior Tribunal de Justiça, antes de virar vice-PGR, foi a Curitiba atender a um pleito do Deltan Dallagnol formulado diretamente a ela pelo também procurador Januário Paludo. Ela era amiga do Paludo. Dallagnol foi na PGR na semana anterior àquela viagem da Lindôra pedir apoio do nosso gabinete para que eles concluíssem 3.000 inquéritos que remontavam a 2016. Eles queriam apoio porque aqueles 3.000 inquéritos tinham de fechar. Estavam parados. Era um escândalo ter tantos inquéritos parados e ia gerar ação do Conselho Nacional do Ministério Público. Com medo da chegada dela, alguns procuradores lavajatistas de Brasília espalham a mentira de que Lindôra faria uma busca e apreensão em Curitiba. Não tinha base alguma para se dizer aquilo, nem esse era o objetivo dela quando saiu de Brasília para o Paraná. Ela chegou e acharam que havia ido para destruir a Lava Jato. Foi recebida de forma hostil. Acidentalmente, o secretário de segurança institucional perguntou a um servidor onde estava o parque tecnológico da regional do Paraná. Quando chegou lá, tinha um equipamento descaracterizado. Aí ele perguntou: “o que é isso”? O servidor não quis dizer. Depois, o mesmo servidor admitiu que era um interceptador e gravador. Aí o secretário recolhe o equipamento. A Lindôra ouve a procuradora-chefe, uma pessoa séria e competente, e ela diz que não conhecia o aparelho. Depois, no curso da investigação, a procuradora regional diz que conhecia o aparelho, mas que quem era responsável pela gestão do dele era o Dallagnol. Lá dentro havia 30.000 gravações, mas os softwares não foram encontrados. O acervo está lacrado na corregedoria do CNMP. E criou-se a situação da procuradora que foi a Curitiba a pedido do Dallagnol para ajudá-los, lá é escorraçada e volta a Brasília com um vale-brinde: a confirmação de que havia gravações ilegais na Lava Jato do Paraná.
A partir dali eles correram para se livrar das coisas que poderiam revelar as ilegalidades e, em um mês, a equipe da Lava Jato de Curitiba arquivou 3.000 inquéritos que estavam abertos por eles mesmos. Em um mês! Eles criam uma força-tarefa para fazer serão a fim de arquivar 3.000 inquéritos que estavam concluídos para denúncia. E nós não sabemos até hoje o que aconteceu dentro desses inquéritos. O Brasil todo estava ali. Eles não compartilhavam aquele banco de dados nem com a PGR, nem com a corregedoria, nem com ninguém. Neste ínterim, a Lava Jato do Rio de Janeiro entrou com uma Ação Direta de Preceito Fundamental contra o procurador-geral, ou seja, contra mim, proibindo-me de acessar os arquivos do Rio.
Durante os quatro anos de Janot e os dois anos de Raquel Dodge como procuradores-gerais, a Rede Globo recebia com exclusividade todos os vazamentos antecipados da Lava Jato – de Curitiba, de São Paulo, do Rio de Janeiro. A partir dali, selecionavam o que queriam dar no Jornal Nacional e o que liberariam para outros veículos. E a única forma de pagar esses vazamentos seletivos era protegendo as loucuras que foram ditas pelos procuradores, pelos subprocuradores e pelo PGR daqueles tempos.
Por meio dos atos administrativos dele, feitos sob minha delegação, o Humberto Jacques de Medeiros desmontou as forças-tarefas da Lava Jato e criou os GAECOs federais. Institucionalizou tudo. Foi então que ele passou a ser alvo da turma. Eu confiei a Humberto Jacques toda essa tarefa administrativa – e ele se saiu muito bem. Quando ele saiu da vice-PGR, e só saiu por uma conjuntura pessoal dele, porque tinha que se dedicar a um tema familiar, puxei a Lindôra Araújo do STJ para o posto dele e coloquei o Carlos Frederico dos Santos como subprocurador-geral no STJ.”
No dia 4 de dezembro de 2020 Augusto Aras enviou o memorando de nº 146/2020/GT-LAVAJATO/PGR à coordenadora da 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal, a subprocuradora Maria Iraneide Olinda Santoro Facchini. Num texto sucinto e direto de apenas três páginas, o então procurador-geral da República comunica o envio àquela instância revisional os autos do acordo de leniência de “R$ 10.300.000.000,00 (dez bilhões e trezentos milhões de reais)” firmado entre a J&F Investimentos – holding do Grupo JBS – com a Procuradoria da República no Distrito Federal. O acordo foi fechado em 05 de junho de 2017 e homologado em 24 de agosto daquele mesmo ano. Na época da celebração e homologação do termo o procurador-geral era Rodrigo Janot. “O montante de R$ 2.300.000.000,00 (dois bilhões e trezentos milhões) será adimplido por meio da execução de projetos sociais, em áreas temáticas relacionadas em apêndice deste Acordo”, escreveu Aras no memorando enviado a Maria Iraneide a fim de relatar e realçar seu estranhamento com os termos usados por procuradores da República no Distrito Federal no ato firmado com a corporação privada sob anuência do antecessor na PGR. “Conforme registrado no ato, os procuradores da República signatários determinaram a expedição de ofício à J&F para ‘que comece imediatamente a execução dos projetos sociais pactuados no acordo de leniência (...) respeitadas as melhores práticas indicadas pela Transparência Internacional, ou então que promova o pagamento da reparação social em favor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos’ (grifo existente no memorando original), previsto no art. 31 da Lei nº 7.347/85, a seu critério”, prossegue Augusto Aras no memorando enviado à 5ª Câmara. E segue, num relato espantoso: “O despacho menciona o Memorando de Entendimentos celebrado entre o Ministério Público Federal, a colaboradora J&F e a Transparência Internacional - TI - em dezembro de 2017 (doc anexo), com o objetivo de acompanhar o cumprimento do memorando e do acordo de leniência ora tratado e que formaliza a concordância entre os envolvidos ‘em relação a princípios gerais sobre a forma como serão geridos e executados os recursos previstos para investimentos em projetos sociais no âmbito do acordo de leniência. Com a formalização do memorando, fica estabelecido que as partes concordam com a viabilidade e a coerência de se contar com o apoio da TI no desenho e na estruturação do sistema de governança do desembolso dos recursos dedicados a projetos sociais, que são parte das obrigações impostas à J&F (grifo no memorando original. Itálico também). Além disso, os signatários registram ainda a ciência e concordância com o auxílio da TI na apresentação de um projeto de investimento na prevenção e no controle social da corrupção (previsto no acordo de leniência), com uma estratégia de investimentos que priorize o fortalecimento e capacitação das organizações da sociedade civil e projetos de maior potencial de impacto, segundo critérios objetivos, transparentes e bem fundamentados’”. Em mais dois breves parágrafos, Augusto Aras torna explícita à coordenadora da Câmara de Revisão o profundo estranhamento em torno do mecanismo de funcionamento daquela “empresa” ou “fundação” privada que seria criada com parte da verba do acordo de leniência da J&F. Afinal, tudo deveria ser público. Por fim, conclui: “Destaco que o (...) aconselhamento da TI (Transparência Internacional) na elaboração de relatório prevê relação de conteúdos para treinamento, em etapas, da equipe que comporá a entidade a ser criada, especialmente aqueles responsáveis pelo investimento, os conselheiros e administradores”, assevera. O grifo é dele, no original. E continua: “Evidente que uma organização privada irá administrar a aplicação dos recursos de R$ 2,3 bilhões nos investimentos sociais previstos no Acordo de Leniência, sem que se submeta aos órgãos de fiscalização e controle do Estado. A transparência Internacional é uma organização não-governamental (ONG) internacional sediada em Berlim. Cuida-se de instituição de natureza privada cuja fiscalização escapa da atuação do Ministério Público Federal”. Em dado momento do memorando, Aras lembra à coordenadora da 5ª Câmara de Revisão do Ministério Público que em 15 de março de 2019 o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática exarada na Corte, registrou “ser duvidosa a legalidade de previsão da criação e constituição de fundação privada para gerir recursos derivados de pagamentos de multa às autoridades brasileiras, cujo valor, ao ingressar nos cofres públicos da União, tornar-se-ia, igualmente, público, e cuja destinação a uma específica ação governamental dependerá de Lei Orçamentária editada pelo Congresso Nacional, em conformidade com os princípios da unidade e universalidade orçamentárias”. Ou seja, nas palavras do então PGR, citando Moraes, a ação acertada entre procuradores lavajatistas e a Transparência Internacional era uma afronta às normas, espicaçava o Orçamento e afrontava também o Congresso – além do Poder Executivo e do Judiciário. Por fim, conclui Aras em seu breve texto, que pouco mais de três anos depois viria causar enorme polêmica, pois foi a base usada pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, para determinar a investigação da ONG Transparência Internacional em sua ação no Brasil: “Assim, considerando que Vossa Excelência (consigna o então PGR no memorando, dirigindo-se a Maria Iraneide Santoro) não teve conhecimento desses fatos; assim também ontem, dia 3/12/2020, foi depositada a vultosa quantia de 270 milhões; em razão da possibilidade de repasse de recursos expressivos oriundos do Acordo de Leniência à mencionada ONG a ser criada; e em face dos atrasos ou inércia da Colaboradora, ante a alternativa aventada pelos membros de que ‘promova o pagamento da reparação social em favor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos’”.
A determinação cortava a linha de financiamento da fundação dos procuradores da Lava Jato, sob cooperação com a Transparência Internacional. A parcela de R$ 270 milhões foi paga a favor do fundo público. A partir dali, judicializado, o acordo de leniência com a J&F ficou paralisado. O mesmo ocorreu com o acordo de leniência firmado entre o Ministério Público e a Odebrecht Construtora. Ambos foram suspensos por decisões do ministro José Antônio Dias Toffoli. Já em dezembro de 2020, segundo Aras, a Procuradoria Geral da República tentou contato formal com a Transparência Internacional em Berlim e jamais recebeu resposta aos ofícios e comunicados oficiais até a saída dele da PGR, em setembro de 2023.
A revelação de que aquela parcela de R$ 270 milhões decorrente do acordo de leniência da J&F e seguindo instruções de desembolso e investimento ditadas pela Transparência Internacional se deu por mero acaso durante um despacho entre o advogado André Callegari, representante da holding do Grupo JBS, e a subprocuradora-geral Lindôra Araújo. O advogado mencionou, durante uma conversa formal, que a parcela decorrente do acordo feito seguindo os ditames da Transparência Internacional seria paga “na próxima semana”. Lindôra desconhecia os termos do acordo e perguntou do que Callegari falava. O advogado reiterou os termos do acordo. “Estes termos não estão em nossos arquivos”, asseverou a subprocuradora, que havia vasculhado toda a documentação eletrônica da leniência da J&F. André Callegari mostrou a cópia que possuía. Lindôra reportou ao chefe, Aras, a suspeita de irregularidade. Ao cabo de amplo rastreio da documentação, uma cópia física dos termos do acordo de leniência da J&F celebrados pelo procurador Anselmo Reis, foi encontrada no fundo de uma gaveta na regional da PGR no Distrito Federal. Era ali que se descrevia a co-participação da Transparência Internacional na destinação dos recursos advindos com o bilionário acordo de leniência da J&F. O volume não tinha sido anexado ao arquivo eletrônico do Ministério Público – o que seria natural. Foi o procedimento fora de parâmetro que levou a PGR a iniciar uma devassa nas leniências. Muitas irregularidades vieram à tona a partir dali.
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