Ao 247, Chico Buarque rejeita ideia de autocensura: “simplesmente não tenho mais vontade de cantar”
Em entrevista à jornalista Regina Zappa, Chico Buarque nega que tenha sofrido críticas dos movimentos feministas sobre a canção “Com Açúcar, com Afeto”
Por Regina Zappa, 247 - A polêmica criada em torno da música de Chico Buarque “Com Açúcar, com Afeto”, que tem se arrastado, incomodou o artista. Ao mesmo tempo em que rechaça a insinuação de alguns de que estaria se autocensurando ao anunciar que não cantaria mais a música composta em 1967, ele nega que tenha sofrido críticas dos movimentos feministas em relação à sua canção. “Criaram essa celeuma de que estou cancelando, me autocensurando, vetando. Tenha paciência. Não tenho nada a ver com isso. Deixar de cantar não é proibir, nem cancelar.” Chico ficou surpreso com a “reação absurda” a uma declaração sua feita no documentário sobre a Nara Leão – “O canto livre de Nara Leão”. “A canção é realmente datada”, ele diz. “Simplesmente não tenho mais vontade de cantar.” Chico falou com exclusividade ao Brasil 247.
Depois que você falou no documentário sobre a Nara Leão – “O canto livre de Nara Leão” - que não iria mais cantar “Com Açúcar, com Afeto” criou-se uma grande polêmica. Achou que foi uma reação desproporcional?
Achei que foi uma reação absurda. Não havia motivo. Não imaginei que fosse suscitar alguma polêmica, alguma controvérsia. Eu disse que não cantava mais “Com Açúcar, com afeto”, como de fato não canto há muitos e muitos anos. E um artista deixar de cantar uma música, não me parece uma notícia.
Como começou a polêmica?
Um jornalista me mandou uma mensagem e perguntou se eu queria comentar as declarações que fiz no documentário da Nara Leão, sobre a canção. Eu disse que não havia nada a comentar. Não via assunto aí. Mas saiu a matéria: “Chico Buarque decide não cantar mais música criticada por feministas”.
Você já foi criticado por feministas?
Nunca tive conhecimento de que os movimentos feministas criticavam essa música. Não foi por isso que eu deixei de cantar a canção. Parei de cantar muitas outras. Para mim, essa música é meio datada. Mas entendo que muitas pessoas guardam essa canção na sua memória afetiva. E açucarada (risos). Agora, dizer que a cancelei, ou censurei, ou vetei é desinformação ou má fé.
E o que o levou a não cantar?
Eu converso com minhas netas e elas devem achar essa história da música ridícula. É realmente datada. Mas eu nunca soube que essa música teria sido criticada por feministas. O único feminista que criticou essa música fui eu. Continuo achando que é uma coisa meio vencida, essa coisa da mulher lamurienta, que fica em casa. Puxa, nós estamos no tempo da Anitta! As mulheres estão falando alto, estão de cabeça erguida e acho bonito isso. É uma conquista do movimento feminista. O movimento feminista tem uma grande importância e estou solidário com ele. Mas tem mulheres que se dizem feministas, mas acabam prestando um desserviço à causa. Eu já sofri com isso naquela música “Tua Cantiga”, por causa daquele verso “Largo mulher e filhos / e de joelhos vou te seguir”. Vi a declaração de uma mulher que disse que vomitou quando ouviu isso. É difícil de lidar. E isso cria uma enorme antipatia. É negativo. Mas eu não antipatizo com as feministas e tendo a concordar com elas.
Mas a notícia dizia: “Chico Buarque decide não cantar mais música criticada”.
Não, não é verdade. Então, foi simplesmente isso, não canto mais como não canto muitas outras canções. Devo ter mais de 400 músicas. Não posso cantar todas. Nem sei mais a harmonia de “Com Açúcar, com Afeto”. Outro dia estava lendo sobre outros artistas e uma conversa sobre Mano Brown, falando, por exemplo, que os Racionais tiraram músicas do repertório e não cantam mais. Eu tirei várias. Tem um samba que gosto muito e é uma pena não poder cantar que é o “Pelas tabelas”. Não canto mais porque fala “Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela / Eu achei que era ela puxando o cordão” ou “Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas / Eu pensei que era ela voltando”. Não dá mais. Era situada na época das Diretas Já. Ou seja, todo mundo batendo panela de camisa amarela, se eu cantar hoje...(risos). Ficou datada, não é? Não quer dizer que eu renegue a música. Só não canto mais.
Você ainda gosta de “Com Açúcar, com Afeto”?
Continuo gostando. Mas acho que fiz coisas melhores (risos). A Nara queria uma música sobre mulher sofredora, à maneira dos sambas antigos. Como as canções de Assis Valente. Então, já era uma coisa um pouco antiga naquela época. Mas tinha seu charme. Hoje não tem mais. Não tenho vontade de cantar essa música. Simplesmente não tenho vontade. Sou obrigado? Em todos esses anos e shows nunca ninguém pediu para cantar essa música. O máximo que pedem é “Canta Raul” (risos). Nunca me pareceu que alguém sentisse falta dessa canção. E de repente virou uma celeuma. E nem foi esse sucesso todo, não sei o por quê disso agora. Quando eu pensava que o assunto tinha morrido, vem a Folha, que me ama, e abre uma página para isso.
O que pensa que a Nara acharia dessa polêmica?
Acho que ela acharia uma grande bobagem. Acho que ela diria que há coisas muito mais importantes para discutir. Acho que ela estaria chocada com o linchamento do congolês na Barra da Tijuca. Acho que ela não compreenderia como o Brasil elegeu um sujeito como o Bolsonaro. E acho que ele já não cantaria “Com açúcar, com afeto”. Não posso falar por ela, mas é meu palpite.
Essas músicas, os sambas antigos, eles são datados, mas retratam uma época e parece que algumas pessoas querem enquadrar a poesia, a arte e eliminar histórias como se aquilo não existisse ou não tivesse existido.
Claro que isso é uma burrice, os guardiões do politicamente correto querendo banir palavras do dicionário, banir músicas ou peças.
Mas essa mulher do “Com Açúcar, com Afeto” ainda existe?
Eu acho que essa mulher não existe mais. Mas veja bem. O que se fala muito e é muito preocupante é o crescimento do feminicídio no país. E AS vítimas do feminicídio não são as mulheres de “Com Açúcar, com Afeto”. São as que se rebelam. Essas é que são as vítimas do machismo. E isso é terrível.
Acha que ainda existem muitas mulheres que se conformam com sua situação de subalternidade porque não têm outra opção, financeiramente falando?
Por isso, para falar politicamente, uma das coisas mais importantes do Bolsa Família é que o dinheiro era entregue às mulheres. Isso fortalecia a mulher. Em casa, com os filhos, com o marido.
Por outro lado, dessa época tem “A Rita”, que abandona o marido, leva “uma imagem de São Francisco / um bom disco de Noel” e, além de tudo ainda deixou mudo o violão. Rita era dona do seu nariz.
Verdade. Tem também uma música muito desconhecida dessa época que é “Ela e sua janela”, que é essa mulher que fica em casa e o marido sai pra beber, pra jogar. Mas no fim, fala: “Mas outro moreno joga um novo aceno e uma jura fingida / e ela vai talvez viver de uma vez a vida”. É a mulher do “Com Açúcar, com Afeto” que se mandou com o moreno. Gosto mais dessa aí.
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