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    Historiadora francesa denuncia retrocessos do Brasil na Europa: 'Acreditamos no poder da solidariedade internacional'

    Em entrevista à jornalista Marilza de Melo Foucher, especial para o 247, Juliette Dumont detalha as várias iniciativas que vêm sendo realizadas por intelectuais franceses em solidariedade ao Brasil, como o RED.br, criado com a ideia de mobilizar acadêmicos e artistas contra as ameaças sofridas no mundo da cultura e da educação sob o governo Bolsonaro

    Juliette Dumont (Foto: Reprodução)

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    Por Marilza de Melo Foucher para o Brasil 247

    Juliette Dumont é professora de História Contemporânea da América Latina no Institut des Hautes Etudes de l’Amérique latine, presidente da ARBRE (Association pour la Recherche sur le Brésil en Europe) e co-fundadora do RED.br. Confira sua entrevista:

    Além de seu engajamento intelectual com a América do Sul, você assumiu um engajamento político na defesa do Estado de Direito no Brasil. Qual a razão? 

    Minha relação com o Brasil não é só profissional, de interesse científico. Morei seis anos no Brasil quando era criança (de 6 a 12 anos), entre 1988 e 1993. Sou francesa, mas o Brasil faz parte de mim e foi essa experiência, esse amor que tenho pelo Brasil que me levou a trabalhar primeiro sobre o Brasil (no mestrado); depois, no doutorado, ampliei para a Argentina e o Chile. Pessoalmente, me dói ver o que está acontecendo com o Brasil; fico também preocupada por meus amigos.

    Meu engajamento também tem a ver com minha preocupação pela crise que atravessa as democracias no mundo ocidental. Desde 2016, tanto em âmbitos acadêmicos como midiáticos, digo que o que acontece no Brasil permite analisar essa crise. Por fim, tanto a questão ambiental como dos ataques às minorias, aos povos indígenas, das violências policiais, da criminalização dos movimentos sociais são temas que têm repercussões internacionais e que se podem encontrar em muitos outros países.

    Por que a campanha política de destituição da presidente Dilma Rousseff, assim como a parcialidade do modo operatório de Lava Jato não suscitou muita indignação da intelectualidade francesa?

    Primeiro, tanto a mídia como a intelectualidade francesa demoraram a entender o que estava acontecendo. O respeito ao processo legal impediu que se percebesse a manipulação política do Judiciário. Segundo, funcionou muito bem o discurso, a retórica do combate à corrupção. Como não aderir a este discurso?

    Terceiro: não se conhece bem o Brasil. Mesmo se a imagem do Brasil evoluiu muito durante os mandatos de FHC e de Lula, segue existindo na França certos estereótipos do Brasil como um país exótico, “simpático, mas pouco sério”, segundo a fórmula atribuída (falsamente) ao De Gaulle. Isso significa, por exemplo, que não se tem uma ideia exata do que é a grande mídia no Brasil. Quando a mídia francesa citava Veja, Globo, Estado de S.Paulo etc... não se sabia qual era a orientação desses canais midiáticos, nem o fato de a mídia no Brasil não representar esse “quarto poder” que as democracias consolidadas têm.

    Por fim, era - e ainda é - complicado fazer admitir que o impeachment era um golpe. A imagem do golpe aqui remete às ditaduras dos anos 60 e 70, com militares, com blindados na rua. Ainda há um trabalho importante a fazer para compor, analisar e divulgar mais além dos âmbitos acadêmicos a lógica desses “néo-coups” (neo-golpes).

    Você diria que a boa surpresa que vai modificar esta situação será a participação ativa desde 2016/2019 de uma nova geração de mulheres historiadoras especializadas na América Latina que passaram a ocupar espaços nas rádios, televisões e jornais franceses para esclarecer sobre a situação política do Brasil e o perigo que representava a ascensão do fascismo no Brasil? O que levou vocês a esta ofensiva midiática?

    Isso começou lentamente em 2016, com o impeachment da Dilma Rousseff. Maud Chirio organizou duas mesas redondas na EHESS para analisar o que estava acontecendo. Eu participei do MD18 (movimento que nasceu em março 2018 com brasileiros e franceses amigos do Brasil em Paris), que fez um grande trabalho para alertar a mídia francesa que a narrativa feita aqui era falsa, que esse impeachment era muito grave, pois representava uma ruptura da lógica democrática, do funcionamento normal das instituições. Começamos a ser convidadas por France 24, RFI… que não são meios de massa. E continuamos, em 2017, sobretudo com a ARBRE (Association pour la Recherche sur le Brésil en Europe, que existe desde 2007, fundada pelas historiadoras Silvia Capanema e Anaïs Fléchet, da qual sou presidente desde 2015), a organizar eventos para analisar a atualidade brasileira. Em 2017, fizemos um evento em setembro sobre o processo contra Lula, com a jurista Carol Proner, o historiador Marcelo Ridenti e o pesquisador Jean-Jacques Kourliandsky, outro em dezembro sobre os ataques às universidades, com duas professoras da UERJ, mas também uma professora do Equador e o diretor do IHEAL, para mostrar como esses ataques participavam de uma dinâmica global de ataque a universidades públicas). Publiquei uma tribuna no Le Monde, com a jurista Jânia Saldanha e o Luc Duffles Aldon da Autres Brésils, sobre a PEC de teto dos gastos. E veio a condenação do Lula em janeiro de 2018, que a ARBRE condenou num comunicado. Fomos bastante solicitadas, tentando, outra vez, mostrar que essa condenação não significava o “triunfo” do combate à corrupção. A ARBRE, junto com o IHEAL, organizou dois eventos (em março e em junho) com o título “Dois anos de golpe no Brasil”, com o objetivo de continuar esse trabalho de análise e de manifestar nossa solidariedade com o professor Luis Felipe Miguel. De maneira geral, o IHEAL (que faz parte da universidade Sorbonne Nouvelle – Paris 3) nos ajudou muito, fornecendo salas, divulgando os eventos.

    Depois vieram o incêndio do Museu Nacional, a facada contra Bolsonaro e o resultado do primeiro turno. Foi um choque, tanto para nós como para a mídia francesa, que passou a nos chamar ainda mais (de France Inter a BFM, do Quotidien de Yann Barthès a France Culture...). Durante o segundo turno, organizamos (Maud Chirio, Anaïs Fléchet, Susana Bleil, Antoine Acker, Frédéric Loualt, com pessoal da Autres Brésils, com o documentarista Filipe Galvon) um manifesto em defesa da democracia, assinado por mais de 200 intelectuais e políticos (de todos os partidos fora a extrema-direita) da Europa. Publicamos uma tribuna no Le Monde explicando que Bolsonaro que representava um neo-fascismo; organizamos (a ARBRE com o IHEAL) um evento que reuniu especialistas do Brasil, da Europa e dos Estados Unidos para dar elementos de explicação para entender o fenômeno Bolsonaro, o seu sucesso. Esse evento reuniu quase 200 pessoas, com muitos jornalistas.

    Tudo isso, desde 2016, fez com que fomos identificadas como especialistas capazes de propor análises do que estava acontecendo. E ocupamos este espaço midiático porque acreditamos que é importante que acadêmicos possam ajudar a informar, a fazer esse trabalho de análise, de “décryptage”. Corresponde também à visão que temos do nosso papel como acadêmicas e historiadoras.

    Em seguida vocês se somaram a outras iniciativas militantes e nasceu a rede de resistência e solidariedade com o Brasil. Como surgiu esta mobilização? Hoje existe a associação Rede Europeia pela Democracia no Brasil. Qual a finalidade desta iniciativa? Que tipos de ações vocês já realizaram?

    Depois da eleição de Bolsonaro, não queríamos deixar de atuar. E decidimos que não era mais possível fazê-lo só com a ARBRE, cujos objetivos são científicos e não militantes, embora a ARBRE assumiu um posicionamento político de defesa da democracia. Começamos a pensar, desde novembro 2018 em como, onde, com quem agir. Fizemos um primeiro evento em janeiro (Solidarité Brésil. Intellectuels, artistes, militants: comment agir?”) e criamos o RED.br em seguida, com a ideia de mobilizar principalmente acadêmicos, intelectuais, artistas, pois o mundo da cultura e da educação estão ameaçados, sofrendo ataques do governo Bolsonaro. Ainda estamos construindo essa rede, com perspectivas de parcerias em outros países da Europa. Queremos entrar em contato com os colegas que já se mobilizam há alguns anos para apoiar e defender os acadêmicos turcos perseguidos no seu país. Já recebemos muitas mensagens, desesperadas, de colegas brasileiros, de estudantes, que estão sendo ameaçados ou que não têm mais condição de trabalhar no Brasil.

    Nossa primeira ação foi a campanha para que a prefeitura de Paris desse o nome de Marielle Franco a um lugar da capital francesa, isso com o apoio de ONG e coletivos como “Amnesty International”, “Act Up”, Inter LGBT, “Ligue des droits de l’homme”, Coletiva Marielles… e foi um sucesso. Também, com mais de 20 ONG’s e coletivos da França, da Bélgica, da Alemanha e dos Estados Unidos, lançaram uma petição (que reuniu 7500 assinaturas) e uma tribuna no Libération contra um fórum econômico França-Brasil organizado no ministério francês da economia, com representantes do governo Bolsonaro e da elite patronal que apoiou sua campanha, cujo objetivo era apresentar as “oportunidades econômicas” que a atual política econômica do Brasil oferece às empresas francesas. Queríamos denunciar o fato de o governo francês, que se apresenta como uma barragem contra a extrema-direita, participar desse tipo de evento. De maneira geral, trabalhamos em parceria com outras ONG’s e associações para denunciar, alertar sobre o que está acontecendo no Brasil para que haja uma pressão dos cidadãos sobre os políticos, na França e na Europa, para que tomem suas responsabilidades e não participem da “banalização” de um governo que promove o ódio, a destruição do meio ambiente, da cultura, da educação e dos direitos humanos.

    Neste evento no Teatro Monfort [onde foi apresentada a peça Cartas para Lula, com participações de diversas personalidades políticas e artistas brasileiros], iniciado pela Maud Chirio, que trabalha com um grupo de historiadores brasileiros para preservar e divulgar as cartas que Lula recebe desde sua prisão. O director de teatro, Thomas Quillardet, fez um trabalho enorme, mobilizou muita gente. E o pessoal do RED.br contribuiu, cada uma com suas forças, para tornar isso possível. E acreditamos (queremos) que seja o primeiro de muitos, manifestando a solidariedade dos meios culturais franceses com os colegas brasileiros. Já há uma mobilização e vai crescer.

    Que mensagem você gostaria de passar aos seus colegas professores e pesquisadores do Brasil vítimas de perseguição política e que veem as universidades públicas e centros de pesquisas sendo alvo de ameaças permanente de cortes orçamentários? 

    Não soltamos a mão de ninguém. O caminho é longo, difícil, mas acreditamos no poder da solidariedade internacional e vamos continuar construindo-a e fortalecendo-a.

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