O Corvo, poema clássico de Edgar Allan Poe, completa 180 anos
Obra genial foi traduzida por Fernando Pessoa e Machado de Assis; confira
247 - Publicado originalmente em 29 de janeiro de 1845 no jornal norte-americano The Evening Mirror, "O Corvo" ("The Raven") se tornou um dos poemas mais icônicos da literatura mundial. Com um tom soturno e uma musicalidade hipnotizante, a obra imortalizou Edgar Allan Poe como um dos maiores mestres do gênero gótico e do suspense psicológico. Agora, 180 anos depois de sua primeira publicação, o poema segue exercendo uma influência marcante na literatura, no cinema e na cultura pop.
Com versos ritmados e uma atmosfera de mistério, "O Corvo" conta a história de um homem atormentado pela perda de sua amada, Lenora. Durante uma noite sombria e fria, ele recebe a visita inesperada de um corvo, que entra por sua janela e pousa sobre um busto de Palas Atena. O pássaro repete insistentemente a palavra "Nevermore" ("Nunca mais"), aprofundando o desespero do protagonista e intensificando sua agonia.
O poema foi um marco na carreira de Poe e na literatura mundial. Ele se destacou por sua estrutura refinada, sua cadência musical e seu impacto emocional. A obra ajudou a consolidar a fama do escritor, que, apesar de uma vida marcada por dificuldades financeiras e tragédias pessoais, se tornou uma das figuras mais celebradas da literatura americana.
Traduções memoráveis e impacto no Brasil - Ao longo dos anos, "O Corvo" recebeu inúmeras traduções e adaptações. No Brasil, dois dos maiores nomes da literatura se dedicaram à tarefa de traduzir o poema: Machado de Assis e Fernando Pessoa. Cada um, a seu modo, capturou a essência sombria e o ritmo peculiar da obra original.
A versão de Machado de Assis, publicada em 1883 na Gazeta de Notícias, respeita a estrutura do poema e busca manter o tom melancólico característico de Poe. Já Fernando Pessoa, poeta português que traduziu "O Corvo" no início do século XX, imprimiu um estilo próprio, explorando a sonoridade da língua portuguesa para manter a musicalidade original dos versos.
Presença na cultura pop - O impacto de "O Corvo" vai além da literatura. A obra influenciou artistas do cinema, da música e das artes visuais. O personagem do corvo, com sua aura macabra, apareceu em diversas adaptações e referências ao longo dos anos. O filme "O Corvo" (1994), estrelado por Brandon Lee, é uma das mais conhecidas referências cinematográficas, embora sua história seja apenas inspirada pelo simbolismo do poema.
Na música, bandas de rock e metal, como The Alan Parsons Project, Iron Maiden e Lou Reed, fizeram referências diretas à obra de Poe. No mundo dos quadrinhos, Batman, da DC Comics, possui elementos inspirados no universo do escritor, incluindo a atmosfera sombria.
O legado de Edgar Allan Poe - A genialidade de "O Corvo" reside em sua capacidade de provocar reflexões sobre a dor, a perda e a inevitabilidade da morte, temas universais que atravessam gerações. Com seu tom melancólico e uma estrutura poética precisa, o poema continua a fascinar leitores e estudiosos da literatura em todo o mundo.
O corvo – Edgar Allan Poe (tradução Fernando Pessoa):
Numa meia-noite agreste, quando eu lia, lento e triste,
Vagos curiosos tomos de ciências ancestrais,
E já quase adormecia, ouvi o que parecia
O som de alguém que batia levemente a meus umbrais.
“Uma visita”, eu me disse, “está batendo a meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
Ah, que bem disso me lembro! Era no frio dezembro
E o fogo, morrendo negro, urdia sombras desiguais.
Como eu qu’ria a madrugada, toda a noite aos livros dada
P’ra esquecer (em vão!) a amada, hoje entre hostes celestiais –
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais,
Mas sem nome aqui jamais!
Como, a tremer frio e frouxo, cada reposteiro roxo
Me incutia, urdia estranhos terrores nunca antes tais!
Mas, a mim mesmo infundindo força, eu ia repetindo:
“É uma visita pedindo entrada aqui em meus umbrais;
Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais.
É só isto, e nada mais.”
E, mais forte num instante, já nem tardo ou hesitante,
“Senhor”, eu disse, “ou senhora, de certo me desculpais;
Mas eu ia adormecendo, quando viestes batendo
Tão levemente, batendo, batendo por meus umbrais,
Que mal ouvi…” E abri largos, franqueando-os, meus umbrais.
Noite, noite e nada mais.
A treva enorme fitando, fiquei perdido receando,
Dúbio e tais sonhos sonhando que os ninguém sonhou iguais.
Mas a noite era infinita, a paz profunda e maldita,
E a única palavra dita foi um nome cheio de ais –
Eu o disse, o nome dela, e o eco disse os meus ais,
Isto só e nada mais.
Para dentro então volvendo, toda a alma em mim ardendo,
Não tardou que ouvisse novo som batendo mais e mais.
“Por certo”, disse eu, “aquela bulha é na minha janela.
Vamos ver o que está nela, e o que são estes sinais.
Meu coração se distraia pesquisando estes sinais.
É o vento, e nada mais.”
Abri então a vidraça, e eis que, com muita negaça,
Entrou grave e nobre um Corvo dos bons tempos ancestrais.
Não fez nenhum cumprimento, não parou nenhum momento,
Mas com ar sereno e lento pousou sobre os meus umbrais,
Foi, pousou, e nada mais.
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
Com o solene decoro de seus ares rituais.
“Tens o aspecto tosquiado”, disse eu, “mas de nobre e ousado,
Ó velho Corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá nas trevas infernais.”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.
Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivêssem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome “Nunca mais”.
Mas o Corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto,
Que essa frase, qual se nela a alma lhe ficasse em ais.
Nem mais voz nem movimento fez, e eu, em meu pensamento,
Perdido murmurei lento. “Amigos, sonhos – mortais
Todos – todos já se foram. Amanhã também te vais.”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.
A alma súbito movida por frase tão bem cabida,
“Por certo”, disse eu, “são estas suas vozes usuais.
Aprendeu-as de algum dono, que a desgraça e o abandono
Seguiram até que o entorno da alma se quebrou em ais,
E o bordão de desesp’rança de seu canto cheio de ais
Era este “Nunca mais”.
Mas, fazendo inda a ave escura sorrir a minha amargura,
Sentei-me defronte dela, do alvo busto e meus umbrais;
E, enterrado na cadeira, pensei de muita maneira
Que qu’ria esta ave agoureira dos maus tempos ancestrais,
Esta ave negra e agoureira dos maus tempos ancestrais,
Com aquele “Nunca mais”.
Comigo isto discorrendo, mas nem sílaba dizendo
À ave que na minha alma cravava os olhos fatais,
Isto e mais ia cismando, a cabeça reclinando
No veludo onde a luz punha vagas sombras desiguais,
Naquele veludo onde ela, entre as sombras desiguais,
Reclinar-se-á nunca mais!
Fez-se então o ar mais denso, como cheio dum incenso
Que anjos dêssem, cujos leves passos soam musicais.
“Maldito”, a mim disse, “deu-te Deus, por anjos concedeu-te
O esquecimento; valeu-te. Toma-o, esquece, com teus ais,
O nome da que não esqueces, e que faz êsses teus ais!”
Disse o Corvo, “nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta! –
Fosse diabo ou tempestade quem te trouxe a meus umbrais,
A este luto e este degredo, e esta noite e este segredo
A esta casa de ânsia e medo, dize a esta alma a quem atrais
Se há um bálsamo longínquo para esta alma a quem atrais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.
“Profeta”, disse eu, “profeta – ou demônio ou ave preta! –
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais,
Dize a esta alma entristecida, se no Éden de outra vida,
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais,
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.
“Que êsse grito nos aparte, ave ou diabo”, eu disse. “Parte!
Torna à noite e à tempestade! Torna às trevas infernais!
Não deixes pena que ateste a mentira que disseste!
Minha solidão me reste! Tira-te de meus umbrais!
Tira o vulto de meu peito e a sombra de meus umbrais!”
Disse o Corvo, “Nunca mais”.
E o Corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda,
No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha dor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão mais e mais.
E a minh’alma dessa sombra que no chão há de mais e mais,
Libertar-se-á… nunca mais!
O corvo – Edgar Allan Poe (tradução Machado de Assis):
Em certo dia, á hora, á hora
Da meia-noite que apavora,
Eu, cahindo de somno e exausto de fadiga,
Ao pé de muita lauda antiga,
De uma velha doutrina, agora morta,
Ia pensando, quando ouvi á porta
Do meu quarto um soar devagarinho,
E disse estas palavras taes:
«É alguem que me bate á porta de mansinho;
«Ha de ser isso e nada mais.»
Ah! bem me lembro! bem me lembro!
Era no glacial Dezembro;
Cada braza do lar sobre o chão reflectia
A sua ultima agonia.
Eu, ancioso pelo sol, buscava
Saccar d’aquelles livros que estudava
Repouso (em vão!) á dôr esmagadora
D’estas saudades immortaes
Pela que ora nos céus anjos chamam Lenora,
E que ninguem chamará mais.
E o rumor triste, vago, brando
Das cortinas ia acordando
Dentro em meu coração um rumor não sabido
Nunca por elle padecido.
Emfim, por applacal-o aqui no peito,
Levantei-me de prompto, e: «Com effeito,
(Disse) é visita amiga e retardada
«Que bate a estas horas taes.
«É visita que pede á minha porta entrada:
«Ha de ser isso e nada mais.»
Minh’alma então sentiu-se forte;
Não mais vacillo e d’esta sorte
Fallo: «Imploro de vós, — ou senhor ou senhora,
«Me desculpeis tanta demora.
«Mas como eu, precisado de descanço,
«Já cochilava, e tão de manso e manso
«Batestes, não fui logo, prestemente,
«Certificar-me que ahi estaes.»
Disse; a porta escancaro, acho a noite somente,
Sómente a noite, e nada mais.
Com longo olhar escruto a sombra,
Que me amedronta, que me assombra,
E sonho o que nenhum mortal ha já sonhado,
Mas o silencio amplo e calado,
Calado fica; a quietação quieta;
Só tu, palavra unica e dilecta,
Lenora, tu, como um suspiro escasso,
Da minha triste boca saes;
E o eco, que te ouviu, murmurou-te no espaço;
Foi isso apenas, nada mais.
Entro co’ a alma incendiada.
Logo depois outra pancada
Sôa um pouco mais forte; eu, voltando-me a ella:
«Seguramente, ha na janella
«Alguma cousa que sussura. Abramo
«Eia, fôra o temor, eia, vejamos
«A explicação do caso mysterioso
«D’essas duas pancadas taes.
«Devolvamos a paz ao coração medroso,
«Obra do vento e nada mais.»
Abro a janella, e de repente,
Vejo tumultuosamente
Um nobre corvo entrar, digno de antigos dias.
Não despendeu em cortezias
Um minuto, um instante. Tinha o aspecto
De um lord ou de uma lady. E prompto e recto
Movendo no ar as suas negras alas,
Acima vôa dos portaes,
Trepa, no alto da porta, em um busto de Pallas;
Trepado fica, e nada mais.
Diante da ave feia e escura,
Naquella rigida postura,
Com o gesto severo, — o triste pensamento
Sorriu-me alli por um momento,
E eu disse: «Ó tu que das nocturnas plagas
«Vens, embora a cabeça nua tragas,
«Sem topete, não és ave medrosa,
«Dize as teus nomes senhoriaes;
«Como te chamas tu na grande noite umbrosa?»
E o corvo disse; «Nunca mais.»
Vendo que o passaro entendia
A pergunta que lhe eu fazia,
Fico attonito, embora a resposta que dera
Difficilmente lh’a entendera.
Na verdade, jamais homem ha visto
Cousa na terra semelhante a isto:
Uma ave negra, friamente posta
N’um busto, acima dos portaes,
Ouvir uma pergunta e dizer em resposta
Que este é seu nome: «Nunca mais.»
No emtanto, o corvo solitario
Não teve outro vocabulario,
Como se essa palavra escassa que alli disse
Toda a sua alma resumisse.
Nenhuma outra proferiu, nenhuma,
Não chegou a mexer uma só pluma,
Até que eu murmurei: «Perdi outr’ora
Tantos amigos tão leaes!
«Perdeirei tambem este em regressando a aurora.»
E o corvo disse: «Nunca mais!»
Estremeço. A resposta ouvida
É tão exacta! é tão cabida!
«Certamente, digo eu, essa é toda a sciencia
«Que elle trouxe da convivéncia
«De algum mestre infeliz e acabrunhado
«Que o implacavel destino ha castigado
«Tão tenaz, tão sem pausa, nem fadiga,
«Que dos seus cantos usuaes
«Só lhe ficou, na amarga e ultima cantiga,
«Esse estribilho: «Nunca mais.»
Segunda vez, nesse momento,
Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no velludo
Da poltrona que eu mesmo alli trouxera
Achar procuro a lugubre chimera,
A alma, o sentido, o pavido segredo
Daquellas syllabas fataes,
Entender o que quiz dizer a ave do medo
Grasnando a phrase: — Nunca mais.
Assim posto, devaneando,
Meditando, conjecturando,
Não lhe fallava mais; mas, se lhe não fallava,
Sentia o olhar que me abrazava.
Conjecturando fui, tranquillo, a gosto,
Com a cabeça no macio encosto
Onde os raios da lampada cahiam
Onde as tranças angelicaes
De outra cabeça outr’ora alli se desparziam,
E agora não se esparzem mais.
Suppuz então que o ar, mais denso,
Todo se enchia de um incenso,
Obra de seraphins que, pelo chão roçando
Do quarto, estavam meneando
Um ligeiro thuribulo invisivel;
E eu exclamei então: «Um Deus sensivel
«Manda repouso á dor que te devora
«D’estas saudades immortaes.
«Eia, esquece, eia, olvida essa extincta Lenora.»
E o corvo disse: «Nunca mais.»
«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta: Ou venhas tu do inferno
«Onde reside o mal eterno,
«Ou simplesmente naufrago escapado
«Venhas do temporal que te ha lançado
«N’esta casa onde o Horror, o Horror profundo
«Tem os seus lares triumphaes,
«Dize-me: existe acaso um balsamo no mundo?»
E o corvo disse: «Nunca mais.»
«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta sempre, escuta, attende, escuta, attende!
«Por esse céu que alem se estende,
«Pelo Deus que ambos adoramos, falla,
«Dize a esta alma se é dado inda escutal-a
«No Eden celeste a virgem que ella chora
«Nestes retiros sepulchraes,
«Essa que ora nos ceus anjos chamam Lenora!»
E o corvo disse: «Nunca mais.»
«Ave ou demonio que negrejas!
«Propheta, ou o que quer que sejas!
«Cessa, ai, cessa! clamei, levantando-me, cessa!
«Regressa ao temporal, regressa
«Á tua noite, deixa-me commigo.
«Vae-te, não fique no meu casto abrigo
«Pluma que lembre essa mentira tua.
«Tira-me ao peito essas fataes
«Garras que abrindo vão a minha dor já crua.»
E o corvo disse: «Nunca mais.»
E o corvo ahi fica; eil-o trepado
No branco marmore lavrado
Da antiga Pallas; eil-o immutavel, ferrenho.
Parece, ao ver-lhe o duro cenho,
Um demonio sonhando. A luz cahida
Do lampeão sobre a ave aborrecida
No chão espraia a triste sombra; e fóra
D’aquellas linhas funeraes
Que fluctuam no chão, a minha alma que chora
Não sai mais, nunca, nunca mais!
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