Belluzzo: 'é preciso sustentar a renda do brasileiro por pelo menos 6 meses'
Em entrevista concedida à Fenae, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo afirma que é preciso coordenar as ações contra o coronavírus rapidamente e garantir o salário do trabalhador por no mínimo seis meses
247 - O ecnomista Luiz Gonzaga Belluzzo diz que é preciso uma coordenação forte para combater a pandemia, em que se articule ações para garantir a vida das pessoas e o cenário da economia.
Para o economista, estamos numa situação de ruptura das relações de mercado. A solução passa pelo Estado, com a criação de Comitês de Coordenação em vários setores. Ele defende uma atuação maciça dos bancos públicos, expandindo o crédito e dissipando incertezas. E que a Caixa invista em programas habitacionais agressivos para gerar emprego
Luiz Gonzaga Belluzo é economista e professor titular do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ele já foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda, membro do Conselho de Administração da Bolsa de Mercadorias e Futuros (BM&F) e conselheiro da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
Nesta entrevista exclusiva, Belluzo fala sobre os desafios da economia brasileira para o próximo período e faz uma avaliação sobre a crise causada pelo coronavírus, com impactos no dia a dia do país. Para o professor, “estamos numa situação de guerra”.
Confira os principais trechos desse bate-papo de Belluzzo com a Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae).
Frente a atual crise econômica, intensificada pela pandemia do coronavírus, como o senhor avalia a postura do governo federal?
Belluzzo – A reação do governo tem sido lenta e a sua execução, mais lenta ainda. Uma das armas que se deve usar contra o choque provocado pela pandemia, e que tem consequências na renda, no emprego e na saúde, é a resposta pronta e maciça. O governo quer fazer a conta-gotas, pega uma coisa ali, usa o FGTS aqui. Todas as medidas tomadas, além de insuficientes, são demoradas. Podemos esperar, em um futuro próximo, uma aceleração da crise, agravada pela ideia de que não se pode impedir as pessoas de continuarem trabalhando, uma maluquice que o presidente da República está dizendo, o que demonstra a sua total incapacidade para ocupar o cargo. As ações do governo também são fracas, do ponto de vista da sua intensidade.
Com sua experiência, que retrato faz da economia brasileira nesta crise?
Belluzzo – Estamos numa situação de ruptura das relações de mercado. Isso significa que o nexo mercantil não funciona em condições normais. É o seguinte: uma pessoa vai no banco, pega o dinheiro e o banco avalia o risco, depois empresta para a empresa, que usa esses recursos para pagar o salário do trabalhador. Enquanto isso, os trabalhadores gastam esse dinheiro, beneficiam outras empresas, assim como essa mesma empresa compra insumos necessários para a produção das demais. Esse é o circuito mercantil que está se rompendo. É o desemprego que surge, com queda na demanda, o que provoca um encolhimento da renda agregada, da renda conjunta da economia. É preciso reconstituir esse nexo mercantil rapidamente, injetar dinheiro na economia, direcionar o crédito, pois está tudo rompido. E, nesse sentido, não adianta nada apenas prover liquidez.
Há alternativas ao modelo adotado pela equipe econômica do governo?
Belluzzo – Se a economia está perdendo renda, é preciso criar essa renda monetária para as famílias e para os trabalhadores que estão sendo demitidos. É preciso sustentar a renda por um bom tempo, seis meses pelo menos, para fazer com que, lentamente, a economia se recupere. Temos que socorrer, sobretudo, as famílias mais vulneráveis. No Brasil, aliás, há um agravante: aproximadamente 40 milhões de pessoas em situações de relações de trabalho precárias. É uma operação parecida com as operações de economia de guerra. O inimigo está aqui dentro, é o vírus. Além das medidas que estão sendo recomendadas, é preciso planejar a recuperação e a rearticulação dos nexos mercantis entre as empresas e os trabalhadores.
Não estamos diante de uma crise normal. Há a necessidade de consertar esse circuito mercantil. Se há um problema de fornecimento de máscaras e respiradores, é preciso converter as indústrias para que possam produzir isso, dirigir essa produção e sustentar a demanda, que é do Estado. Reconverter alguma fábrica que produz automóveis, como foi no período da Segunda Guerra Mundial, para a produção de utensílios e aparelhos médicos, pois no Brasil existe uma indústria médica qualificada. Mas isso deve ser feito com a criação de Comitês de Coordenação em vários setores, como no caso do abastecimento alimentar. Isso depende da logística, bastando organizar essa tarefa.
No Brasil, as Forças Armadas poderiam ser convocadas, porque se trata de uma guerra, para ajudar na gestão e no encaminhamento das decisões que devem ser tomadas centralizadamente.
Como fica o papel do Estado neste contexto?
Belluzzo – Não há possibilidade de deixar para o mercado uma articulação das relações entre os agentes da economia, como bancos, empresas, consumidores, famílias, trabalhadores. Não há como isso ser deixado para o funcionamento espontâneo do mercado, pois esses agentes não têm capacidade ou força de resolver essa questão. Não há outra solução a não ser pelo Estado, que é uma criação moderna e acompanhou o surgimento do capitalismo de mercado, embora, frequentemente, as pessoas façam uma oposição tosca entre Estado e mercado. Nunca existiu isso, pois o mercado não surge sem o Estado.
O mercantilismo era uma economia articulada e coordenada pelo Estado, que deu origem a uma economia de mercado mais liberal. Sem essa transição histórica, não há como entender o mercado e de como ele surge. No pós-guerra, por exemplo, as economias europeias se desenvolveram a partir de uma articulação muito virtuosa entre Estado e mercado. Ocorre que muitos economistas são ignorantes, não leem história e, em algumas universidades norte-americanas, aprendem três ou quatro modelos que não entendem direito e são tão abstratos, não tendo nada a ver com a realidade do funcionamento da economia capitalista, na prática.
Hoje, o sistema de relações é a negação dos princípios de solidariedade, inclusão e democracia instituídos na Europa do pós-Segunda Guerra Mundial. Não há outro agente que possa contrapor-se a isso que não seja o Estado. Que possa fazer, por exemplo, que o Banco Central compre artigos podres do setor privado e empreste ignorando riscos, numa situação de incerteza, permitindo que os spreads sejam feitos sem nenhuma avaliação de risco. Alguém já viu o Banco Central quebrar ou algum Estado dever ao BC? O balanço de um Banco Central não tem nada a ver com o balanço produzido por um banco privado.
Como o Brasil sairá dessa crise?
Belluzzo – Muitos querem que a economia, que não era nenhuma maravilha, muito pelo contrário, volte ao que era antes, quando terminada a crise. Passada essa pandemia, temos que reformar a arquitetura desse capitalismo, não só brasileiro, mas sobretudo o daqui. Tínhamos uma situação de 40 milhões de brasileiros vivendo muito mal, precisando de uma crise para se pensar em socorrê-los de forma adequada. A situação de pobreza e moradia agrava a crise, com as pessoas morando muito próximas umas das outras. Tudo isso torna a crise brasileira muito mais complicada do que as dos outros países.
Até que ponto e em que sentido a atuação dos bancos públicos é positiva para ampliar a rede de proteção aos trabalhadores?
Belluzzo – A atuação dos bancos públicos é fundamental e decisiva. As medidas do governo são tímidas. A equipe econômica quer distribuir entre os bancos públicos e privados o ônus de fazer as operações de crédito necessárias, para ajudar na administração da crise.
O papel dos bancos públicos é fundamental, porque essas instituições podem atuar como agentes do Estado, ou seja, do Banco Central diretamente. Numa situação normal, os bancos criam crédito sob a supervisão do Banco Central. Numa situação de crise como essa, o grau de desarticulação da economia incentiva a se criar crédito na veia e direto, como disse um banqueiro privado norte-americano.
Os bancos públicos são essenciais para direcionar o crédito e regular os spreads. O crédito tem que ser direcionado, mesmo diante de uma situação muito difícil. Tem que colocar os bancos públicos a operarem maciçamente nesse momento de crise aguda. É uma questão de emergência.
E essas instituições podem agir com mais autonomia em relação aos ciclos econômicos. Durante a crise, enquanto o capital privado se retrai, os bancos públicos podem fazer ações que sirvam de contraponto, expandindo o crédito e dissipando incertezas.
Qual o peso da atuação da Caixa neste momento do Brasil?
Belluzzo – É muito importante, sobretudo por causa dos programas habitacionais. A Caixa tem uma peculiaridade que o Banco do Brasil não tem: não possui acionistas privados e atua como uma instituição pública mesmo. Um dos programas que poderiam ser muito desenvolvidos, como ocorreu durante o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), e que foram cortados recentemente, são justamente os habitacionais. Concomitantemente ao fornecimento de renda para a população mais pobre, convém criar programas habitacionais iguais ao Minha Casa Minha Vida e desenvolver isso de maneira avassaladora.
Na crise de 29/30, o presidente norte-americano Franklin Roosevelt (1933-1945) recebeu uma carta com a sugestão para que criasse um programa habitacional, pois isto geraria empregos e condições de vida para os trabalhadores. É preciso, portanto, usar programas como o MCMV de uma maneira muito mais agressiva.
Como a crise da economia reflete a crise do humanismo na sociedade brasileira?
Belluzzo – Não tenha dúvida de que uma coisa está diretamente associada a outra. Emergiu na alma de alguns brasileiros aquela condição do “narcisista ressentido”, que é a pior coisa que uma sociedade pode produzir.
O “narcisista ressentido” se acha muito, mas sabe que não é nada. Isso é o Bolsonaro. Na hora que ascendem ao poder, tornam-se inumanos, sem nenhuma solidariedade com o outro, sem nenhuma preocupação com a vida humana. Veja o que ele (presidente) fala: “Os caras vão morrer mesmo”! É como diz a revista “The Economist” (inglesa), que é conservadora, é o “Bolsonero”, ele quer botar fogo em Roma. Então, quer botar fogo no Brasil!
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