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Ceará pode proibir pulverização aérea de agrotóxicos

Um projeto de lei quer vedar o uso da técnica no Estado por considerá-la a mais nociva para a saúde e para o meio ambiente; para especialistas que defendem a mudança, a pulverização aérea de agrotóxico provoca danos persistentes; já o pesquisador e engenheiro agrônomo Ulisses Antuniassi, da Unesp, avalia que as grandes extensões de lavouras e o porte de algumas culturas fazem da pulverização aérea de defensivos agrícolas um método imprescindível para o agronegócio brasileiro

Um projeto de lei quer vedar o uso da técnica no Estado por considerá-la a mais nociva para a saúde e para o meio ambiente; para especialistas que defendem a mudança, a pulverização aérea de agrotóxico provoca danos persistentes; já o pesquisador e engenheiro agrônomo Ulisses Antuniassi, da Unesp, avalia que as grandes extensões de lavouras e o porte de algumas culturas fazem da pulverização aérea de defensivos agrícolas um método imprescindível para o agronegócio brasileiro (Foto: Gisele Federicce)

Edwirges Nogueira – Repórter da Agência Brasil

"Os aviões faziam o retorno em cima da comunidade e passavam por cima da igreja. A comunidade ficava toda branca, como se estivesse nevando." O relato da agricultora Socorro Guimarães, 42 anos, diz respeito à prática da pulverização aérea de agrotóxicos nas propriedades rurais próximas da comunidade Tomé, em Limoeiro do Norte, a 200 quilômetros de Fortaleza. O município se localiza na região da Chapada do Apodi, uma das áreas mais ocupadas pelo agronegócio no Ceará, perto do perímetro irrigado Jaguaribe-Apodi e da divisa com o Rio Grande do Norte.

A pulverização aérea, forma de aplicação de defensivos sobre as culturas agrícolas, pode ser proibida no estado. Um projeto de lei quer vedar o uso da técnica por considerá-la a mais nociva para a saúde e para o meio ambiente.

"A pulverização é feita com uma grande quantidade de calda tóxica, que é a mistura de um óleo vegetal com o veneno. Para o produtor, a aplicação aérea representa uma grande quantidade aplicada de uma única vez. Portanto, para ele, é uma relação de custo-benefício melhor. Para o meio ambiente e para a saúde, é ruim, porque existe uma deriva [quando o defensivo agrícola não atinge o local desejado] causada pelo vento que expõe mais solo, água e comunidades", explica o deputado estadual Renato Roseno (PSOL), autor da proposição.

O projeto recebeu o nome de Lei Zé Maria do Tomé, uma homenagem ao líder comunitário e ambientalista de Limoeiro do Norte (CE) assassinado em 2010. Ele era reconhecido por encampar a luta pela proibição da pulverização aérea de agrotóxicos. Nessa época, a Câmara Municipal da cidade aprovou e promulgou lei proibindo a técnica. Cinco meses depois, em abril, Zé Maria foi morto com 19 tiros. No mês seguinte, a lei foi revogada. A proposta de lei estadual que tramita na Assembleia Legislativa já foi aprovada em duas das seis comissões para as quais o texto foi distribuído.

Regras

Uma instrução normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, editada em 2008, impõe regras para aviões agrícolas que fazem pulverização de agrotóxicos, estabelecendo, por exemplo, limites mínimos de distância entre cidades, vilas e povoados, mananciais de água e agrupamento de animais, que são entre 250 a 500 metros da área que receberá a aspersão de defensivos, além de condições ideais de velocidade do vento e de umidade.

No entanto, segundo o relato de Socorro, esses limites não eram respeitados. Em 2010, as 120 galinhas que ela criava estavam soltas no quintal quando um avião agrícola passou com o pulverizador ligado. No dia seguinte, 80 aves morreram. Há também relatos na comunidade de pessoas que sofreram intoxicações. No entanto, conforme a agricultora, muitas não associam os sintomas ao contato com defensivos agrícolas pelo fato de trabalharem nas empresas que utilizam a técnica.

A professora Raquel Rigotto, do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), presenciou a prática da pulverização aérea em Limoeiro do Norte em 2007, durante um trabalho de campo na cidade sobre os impactos da exposição a agrotóxicos para a saúde. "Inclusive, quem nos avisou foi o Zé Maria. Ele nos mostrou galinhas mortas no quintal, roupas no varal com cheiro de veneno", disse a coordenadora do Núcleo Trabalho, Meio Ambiente e Saúde (Tramas).

Raquel e a equipe da pesquisa passaram a acompanhar os voos das aeronaves que aplicavam os defensivos nas lavouras durante as quadras invernosas (período de fevereiro a maio em que o Ceará recebe mais chuvas) de 2008 e 2009. O recorte temporal se deve ao momento em que os fruticultores começam a agir para exterminar a sigatoka-amarela, praga que atinge a bananeira, especialmente na época das chuvas.

"Ficamos muito impressionados com a situação de vulnerabilidade em que a população se encontrava, porque estavam lá apenas os funcionários da empresa de aviação agrícola, com um caminhão de caixas de veneno no campo de pouso da Chapada do Apodi. O avião vinha, abastecia com um volume elevado de venenos, saía, aspergia aquilo tudo, voltava, fazia de novo e não tinha nenhuma autoridade pública fiscalizando o procedimento."

A instrução normativa do Ministério da Agricultura exige um relatório com uma série de informações sobre as atividades de aviação agrícola, incluindo o nome e a quantidade do produto aplicado, croqui da área tratada e parâmetros como altura do voo e dados meteorológicos, além da presença de técnico agropecuário com curso de executor em aviação agrícola, que pode interromper o voo caso os parâmetros básicos atinjam os limites máximos de segurança.

De acordo com Socorro, as pulverizações aéreas ocorreram com mais intensidade na comunidade Tomé entre 2004 e 2010. A partir de 2012, segundo a agricultura, não houve novas aplicações devido à baixa intensidade das chuvas nas últimas quadras invernosas.

Pulverização aérea de agrotóxico provoca danos persistentes, dizem especialistas

Edwirges Nogueira – Em 2006, uma nuvem tóxica oriunda da pulverização aérea em plantações de soja chegou à área urbana e provocou intoxicação aguda em crianças e idosos de Lucas do Rio Verde (MT). Já em 2013, quase 100 pessoas, entre professores e alunos, tiveram intoxicação depois que um avião jogou defensivos agrícolas sobre uma escola de Rio Verde (GO).

O professor do Núcleo de Estudos Ambientais e Saúde do Trabalhador da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) Wanderley Pignati, que participou da perícia dos dois casos, acredita que a poluição causada por agrotóxicos pode ser considerada intencional, uma vez que, para atingir o alvo, afeta também o solo e a água.

"Não é acidente. O avião passa ao lado e, de qualquer jeito, o vento vai levar para um lado ou para outro. Essa história de que o vento não leva o veneno para outro lugar fere os princípios da aviação, inclusive, pois se o vento estiver parado, o avião nem levanta voo", disse o especialista durante uma palestra na Assembleia Legislativa do Ceará, em Fortaleza, em maio deste ano.

Um dos principais argumentos contra a pulverização aérea é a chamada deriva, quando a aplicação de defensivo agrícola não atinge o local desejado e se espalha para outras áreas. O pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), Aldemir Chaim, no artigo Tecnologia de aplicação de agrotóxicos, de 2004, declara que a aplicação de agrotóxicos no século atual não é muito diferente da forma como era praticada no século passado. A principal característica dessa aplicação é o desperdício de produto químico.

Em 1999, Chaim e outros pesquisadores desenvolveram uma forma de quantificar esse desperdício em diferentes formas de aplicação de agrotóxicos. Dependendo da altura das plantas, apenas metade do produto aplicado atinge o alvo. O restante cai no solo ou se perde pela deriva. Em 2013, a Embrapa desenvolveu o Programa Gotas, um software que ajuda na calibração das pulverizações.

Segundo Pignati, no caso da pulverização aérea, a deriva pode atingir áreas mais distantes devido ao espaço entre o alvo e o avião: quanto mais alto a aeronave estiver da lavoura que receberá os defensivos, maior será a deriva por conta da ação do vento.

A professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) Raquel Rigotto participou de um estudo que identificou princípios ativos de agrotóxicos no solo da região da Chapada do Apodi – uma das áreas mais ocupadas pelo agronegócio no Ceará. Segundo a especialista, as substâncias encontradas – difenoconazol e epoxiconazol – são muito tóxicas: o difenoconazol, por exemplo, pode comprometer seriamente o fígado e é tido como possível causador de câncer, segundo classificação da Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA, na sigla em inglês).

A especialista acredita que as substâncias podem chegar até mesmo às cisternas que abastecem as casas durante a seca.Também foram encontrados princípios ativos de agrotóxicos no aquífero Jandaíra, localizado entre o Ceará e o Rio Grande do Norte. As águas subterrâneas são usadas tanto pelo setor produtivo como pelas populações dos oito municípios cearenses, incluindo Limoeiro do Norte, e potiguares que abrangem o aquífero.

"Esses contaminantes são transportados pelo vento, podem se depositar no telhado das casas e, quando vem a chuva, ela lava os telhados e é essa a água que as calhas recolhe e se dirige para as cisternas. Temos uma preocupação muito grande se essas águas, que muitas vezes garantem o abastecimento hídrico das famílias nos períodos de seca, podem também estar contaminadas com esses produtos", indaga Raquel.

Proibir pulverização aérea é medida desproporcional, afirma pesquisador

Edwirges Nogueira – As grandes extensões de lavouras e o porte de algumas culturas fazem da pulverização aérea de defensivos agrícolas um método imprescindível para o agronegócio brasileiro, na avaliação do engenheiro agrônomo Ulisses Antuniassi, professor do Departamento de Engenharia Rural da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), que defende a manutenção e o aperfeiçoamento dessa técnica.

"A proibição da pulverização aérea é uma medida desproporcional. Ela não tem cabimento dentro do contexto de um país agrícola tão importante. Se numa eventualidade houvesse uma proibição, teríamos um prejuízo muito grande para culturas que não têm outras opções. Entendo que a aplicação aérea não deve ser proibida. Ela deve ser regulamentada e fiscalizada."

O pesquisador explica que a pulverização aérea é uma atividade complementar aos outros métodos e utilizada quando há restrições à aplicação terrestre. "Depois que a cana-de-açúcar atinge um porte grande, por exemplo, fica difícil e mesmo impossível utilizar outros métodos. Então, a pulverização aérea é fundamental. Em outras culturas, em geral, ela é muito desejada quando o produtor precisa fazer o tratamento rápido e eficiente diante do surto de uma praga ou doença. Quando a opção é pelo uso do produto fitossanitário, a aplicação aérea tem a vantagem de permitir que o trabalho seja rápido."

Outro exemplo citado pelo professor é o da sigatoka-amarela que atinge as bananeiras. Pelo porte alto das plantas, a pulverização aérea representa melhor custo-benefício para o produtor e também para o meio ambiente. "A aplicação com equipamentos terrestres na cultura da banana se torna ineficiente e de grande impacto ambiental. Se for aplicar o produto com equipamento terrestre, isso é feito de baixo para cima. Então muito produto é jogado para o ambiente. Quando se tem a possibilidade de fazer a aplicação aérea, é jogada uma menor quantidade de calda [diluição dos produtos químicos em água ou outro tipo de solvente] e, com isso, temos um tratamento mais eficiente e com menos impacto ambiental."

Segundo Antuniassi, a pulverização aérea de agrotóxicos responde hoje por cerca de 25% das aplicações realizadas no Brasil, mas, dependendo da cultura, o uso da técnica pode chegar a 100%, como no caso da banana e da cana-de-açúcar.

A Unesp, em conjunto com as universidades federais de Lavras (UFLA) e de Uberlândia (UFU), coordena a Certificação Aeroagrícola Sustentável, programa que visa incentivar boas práticas na aviação agrícola para tornar a pulverização de defensivos mais eficaz. Antuniassi destaca que o atendimento às regras do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) reduz os impactos da deriva a quase zero.

"A questão de obedecer ou não a normativa está muito ligada a seguir o que chamamos de conceitos de boas práticas nas empresas de aplicação aérea. Elas passam por um treinamento e talvez o principal fator a considerar seja obedecer a essas regras e às faixas de segurança (que ficam de 250 a 500 metros da área que receberá a aspersão de defensivos). Temos casos em que as regras não são seguidas, mas isso não é generalizado, são situações isoladas. Os acidentes que ocorrem são poucos porque as empresas estão cientes de que a sociedade observa e critica."

No Brasil, segundo ele, 54% das empresas de aviação agrícola já são certificadas. Em São Paulo, esse número chega a 90%. Na Região Nordeste, apenas quatro empresas em dois estados adotam as boas práticas ensinadas pelo programa: Maranhão, com três empresas, e Alagoas, com uma.

Para o professor, a publicidade negativa em torno dos acidentes envolvendo a pulverização aérea de agrotóxicos transforma a técnica em vilã. "Existe um pouco de mito como se a aplicação aérea fosse uma coisa do mal. Ela é uma ferramenta. Da mesma forma que, em uma propriedade pequena, há uma enxada e um pulverizador costal, em uma grande propriedade há um trator e um avião. Se forem usadas seguindo a legislação, são totalmente seguras."

Setor produtivo

Representantes do agronegócio consideram não haver motivos para a proposta de proibição da técnica no Ceará. O presidente da Comissão Nacional de Fruticultura da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) e membro da Câmara Setorial de Fruticultura do Ceará, Tom Prado, explica que o estado é o que menos utiliza a aplicação aérea no Brasil para o controle de pragas. O vizinho Piauí, segundo ele, realiza 200 vezes mais aplicações do que o Ceará.

"Até hoje, em todas as aplicações realizadas no Ceará, nunca ocorreram registros de danos à saúde e ao meio ambiente por parte dos órgãos responsáveis pela sua autorização e fiscalização", defendeu Prado.

Para ele, de todas as técnicas, a aérea é a mais segura para o trabalhador, pois não expõe o agricultor aos agrotóxicos como ocorre com o pulverizador usado nas costas.

Além de não concordar com o projeto de lei que proíbe a pulverização aérea, o presidente da Federação da Agricultura e Pecuária do Ceará (Faec), Flávio Viriato de Saboya Neto, aponta que a proposta pode ser considerada inconstitucional, uma vez que já existe uma norma do Ministério da Agricultura que disciplina a técnica e outras regras do âmbito da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) que regem a aviação agrícola.

Para ele, a questão se tornou polêmica a partir do assassinato do líder comunitário e ambientalista Zé Maria do Tomé, que defendia o fim do método. "O estado do Ceará não tem expressividade em pulverizações aéreas porque não temos uma agricultura intensiva. Essa problemática da aviação agrícola foi em função de Limoeiro do Norte, que estimulou os ânimos de algumas entidades ambientais que discutiam a validade do método no município."