TV 247 logo
    HOME > Geral

    Protocolos de papel maché: no reino da imprevisibilidade quando é que "a regra é clara"?

    Leia artigo dospesquisadores Fabio Reis Mota e Roberto Kant de Lima, do Ineac

    (Foto: Marcello Casal JrAgência Brasil)

    ✅ Receba as notícias do Brasil 247 e da TV 247 no Telegram do 247 e no canal do 247 no WhatsApp.

    Por Fabio Reis Mota e Roberto Kant de Lima

     Hoje voltaremos ao tema da « inquisitorialidade » e da « cisma », abordando a questão a partir de um outro prisma : da repercussão dessas duas dimensões, no contexto brasileiro, no complexo manejo de regras estáveis e consensualizadas para o comportamento em público, nas interações entre os indivíduos, ou entre os indivíduos e as repartições estatais. Ou seja, como formular protocolos seguros e transparentes que despertem a confiança - ou a a responsabilização, quando não cumpridos – nos interlocutores, sejam eles cidadãos comuns, sejam servidores públicos, quanto à identidade e propósito dos seus interlocutores ?

     De modo a buscar tornar mais cristalinas nossas análises, exploraremos duas situações colocadas sob descrição que resultam da observação realizada por nós durante etnografias que empreendemos em lugares e momentos diferentes.  

    Situação 1:

     Era aquela tarde carioca. Digna de uma praia e cervejinha gelada.  Luz do sol irradiante, sol se pondo iluminando a cidade. Na Delegacia tudo parecia correr tranquilo. Um dia, até, atípico para uma DP da Zona Sul. Dr. Carvalho, Delegado Titular da Delegacia até podia aproveitar da situação para jogar paciência no seu computador. No entanto, o inesperado lhe bateu à porta. 

     Era o escrivão : « toc, toc, toc ». 

    •   « Entra ». Exclama Dr. Carvalho. 
    •   « Dr. » , retruca o escrivão, « tenho uma situação aqui que preciso do senhor »
    •   « O que foi ? », interroga o Delegado

     - « Então… Doutor, há dois policias aqui com um rapaz aí… e , bem, a coisa tá difícil de resolver e tem que ser o senhor »

     Interrompendo sua paciência, no duplo sentido (do jogo e do sentimento), Dr. Carvalho sentencia : 

    •   « Manda entrar !!!»

     O escrivão sai e retorna com um dos policiais, Cabo Messias, e o cidadão detido, Tobias, cabisbaixo e meio atordoado com o que se passava. Todos os presentes eram negros.

     Dr. Carvalho prossegue : 

    •   « E então Cabo Messias, qual o motivo da detenção do rapaz?» 

     Cabo Messias,  com peito estufado e com ar resoluto, crente dos desígnios de seu ofício, narra o acontecido :

    •   « Pois então, Doutor… Estávamos eu e o outro colega na viatura fazendo a ronda. Avistamos o cidadão na rua e o abordamos. Pedimos seus documentos e nos apresentou uma carteira com um monte de documentos: carteira de identidade, título de eleitor, carteirinha do cinema, carteira do clube…até carteira de assinante de jornal o cidadão trazia com ele Doutor !?! »

     O Delegado, confuso quanto à situação, interpela o Cabo Messias :

    •   « Mas afinal, qual foi então  o crime ou problema com o rapaz ?»

     Com feições  no rosto e no olhar de quem não havia compreendido a incompreensão do delegado Carvalho, Cabo Messias, enfaticamente, com voz grossa e segura, peito aberto e mais uma vez estufado, como numa ordem unida, lança …

    •   « Ora, Doutor, excesso de documento !!!!».

     Nesse primeiro caso, o que se verifica é que Tobias, um sujeito correto, cidadão trabalhador, negro, resolveu munir-se de documentação cuja posse ele imaginou que o livraria de abordagens embaraçosas. É preciso frisar, como outros colegas antopólogos já fizeram, a importância dos « documentos » em nossa sociedade e seu papel na certificação e reconhecimento dos direitos de cidadania. Já discutimos, em nosso artigo anterior, que convidamos os leitores a consultar1, os contextos da « inquisitorialidade » e da « cisma » que informam nossas interações comuns. São princípios estruturantes das relações tutelares que o estado tem com a sociedade em nosso país e que naturaliza a suspeição sistemática que se exerce sobre a população, até que se identifique algum vínculo que pessoalize as relações, nesta transformação ritual dos «indivíduos» em «pessoas».

     A desconfiança sobre a identidade e posição social das pessoas é um ponto crucial em que se exerce essa relação, e que repetidamente solicita que provemos quem somos através de documentos, não bastando nossa declaração, como é comum em outros países nos quais realizamos etnografia, como a França ou EUA. É um dos aspectos mais sensíveis da inquisitorialidade e da cisma, em que a suspeição sistemática só se dissolve com a confirmação de nossas declarações por terceiros, especialmente por documentos escritos e emitidos pelo Estado. Ainda que os inúmeros documentos de que dispomos (CPF, Identidade, Carteira de Trabalho, CNH, Passaporte, etc.) sejam reconhecidos e fornecidos pela burocracia estatal, é exigido, em diversas circunstäncias, sua validação  e autenticação diante de um Cartório !! Assim, não é quem pergunta que tem que provar que a minha declaração é falsa, mas sou eu quem tenho que apoiá-la em uma « comprovação » para que seja considerada verdadeira. Ironicamente, é uma sociedade que se torna extremamente vulnerável e propícia à falsificação documental, como é o caso das apropriações de terras pelo processo de « grilagem », muito praticada até hoje no Brasil.

    Situação 2 :

     A noite era alvissareira. O botequim entre amigos, paraíso dos companheiros da boemia. Cerveja gelada, papo confortável e agradável e otras cositas más…No afã da noite, Josias resolve subir o morro e comprar um pino de cocaína para não deixar a noite partir. Seu amigo, Jean, se prontificou a ir com ele para nutrir seu desejo de adrenalina (Jean não consumia pó, mas curtia a tensão de ir no morro) e como forma de garantir a segurança do amigo em um ambiente pouco seguro para estranhos. 

     Entraram no carro e seguiram em direção à favela. Ela se localizava em um pequeno morro, não muito distante do bar no qual bebiam. Josias estaciona o carro e diz a Jean para esperar, afinal, na sua experiência e visão, os traficantes tenderiam a cismar com dois homens na calada da noite carioca subindo a favela. Assim, supostamente, uma só pessoa passaria mais tranquilamente pelo sistema de controle do tráfico. 

     Josias desce do carro, segue pelas ruas escuras, atravessa a cancela com barras de ferro que compõe as barreiras contra as investidas policiais ou dos alemães (como os locais denominam os inimigos do comando rival). Como Jean se encontra no carro só, Josias anda com passos mais largos e apressados em direção à « boca de fumo ». Antes dela, há o vigia, encostado por de trás do poste, mas visível para os transeuntes da madrugada. Cioso de sua experiëncia em situaçöes semelhantes, Josias, supondo cumprir uma das etiquetas de rotina, observa o vigia, para diante dele, levanta a camisa e roda em 360 graus, como forma de mostrar que não conduzia uma arma de fogo, ou qualquer outro objeto que colocasse em risco os rapazes do tráfico. 

     Como Josias supos ter passado no teste, seguiu em direção ao local no qual se localizava a boca de fumo. Todavia, o vigia, inusitadamente e de forma ríspida aponta a pistola para ele e diz:

    •   « ohh, oh, oh, ohhh, pare aí caralho… »

     Josias, surpreso, para e se volta para o vigia :

    •   « Sim, qual é? »

     O vigia do tráfico retruca de forma assertiva:

     - « Porra, porque você tu rodou ? Tá rodando por que porra ? »

     Josias, já um pouco impaciente, responde:

     - « Pô, porque até onde eu sei, se vou entrar numa boca, tenho que rodar para mostrar que não tô armado, né isso ? »

     O vigia :

     -« Porra, mas eu não mandei tu rodar...que merda é essa !!?? »

     Ao que, já meio puto da vida, Josias retruca :

     -« Porra, se roda tá ferrado, se não roda tá fodido…Ai, o que fazer pra vir aqui comprar o baguio ?! »

     Neste caso, não se trata de uma autoridade oficial, mas de um outro tipo de autoridade. Mas o dilema é semelhante: qual o protocolo adequado para evitar mal entendidos e situações embaraçosas, ou mesmo de perigosas consequências para os envolvidos ?

     Trata-se da já discutida e publicamente questão exposta em nossas pesquisas e publicações: a ausência de protocolos nas instituições e nas dimensões da vida ordinária, ou a sua desobediência sistemática pelos encarregados de fazê-los cumprir, que incidem sobre as formas inquisitoriais e cismáticas de operação do julgamento da ação dos indivíduos.

     Protocolos derivam não de maneiras ideais de como se comportar, mas espelham regras práticas de ação construídas em conjunto com seus praticantes. Nas instituições brasileiras, regimentos e estatutos são frequentemente construídos por « autoridades », ou agentes que não vão praticá-los e que expressam abstratamente sua opinião, através desses documentos, de como as coisas « deviam ser ».  

     No caso, tanto a polícia como os agentes do tráfico não obedeceram a seus próprios protocolos (andar com documento em uma batida policial ou rodar e levantar a camisa diante de um vigia do tráfico). Que haja dúvidas quanto a seu cumprimento por parte do tráfico, já seria mais compreensível, dadas as severas condições de segurança que naquele espaço devem ser mantidas; mas que a polícia também não os tenha e, se os tem, não os leve em consideração, é sinal certo que a inquisitorialidade e a cisma estão amplamente disseminadas nestas situações de identificação e julgamento da atitude alheia.

      Ambos os acontecimentos também descrevem a já referida dificuldade de controlar comportamentos recíprocos em interações entre cidadãos comuns e personagens dotados de autoridade. Mais que isso, mostram como essa suspeição sistemática e essa insegurança protocolar pode ser origem de conflitos muitas vezes inegociáveis, como têm sido o caso de pessoas presas por errada identificação. Esta é muitas vezes informalmente realizada pela polícia, através de imagens da internet, mesmo quando contrárias a seus protocolos.

     Finalmente, protocolos  transparentes, quando cumpridos, protegem, em princípio, tanto os agentes que os aplicam como os cidadãos que os obedecem, seja qual for sua cor e origem social, pois seu descumprimento implica responsabilização severa de seus transgressores. Sem protocolos de obrigatório cumprimento vigora a interpretação arbitrária das regras de convívio e até mesmo de aplicação da lei, que podem alimentar preconceitos sociais e racismo, produzindo uma eterna e improdutiva cacofonia comunicativa própria da inquisitorialidade e cisma presentes nesse reino da imprevisibilidade. Afinal, nesse universo, Arnaldo, para quem a « regra é clara » ??? 

     Fabio Reis Mota e Roberto Kant de Lima, respectivamente pesquisador e coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (www.ineac.uff.br).

      1 https://www.brasil247.com/ideias/entre-crencas-e-certezas-o-papel-da-inquisitorialidade-e-da-cisma-no-campo-da-comunicacao-contemporanea

    iBest: 247 é o melhor canal de política do Brasil no voto popular

    Assine o 247, apoie por Pix, inscreva-se na TV 247, no canal Cortes 247 e assista: