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    A Rússia, um feito inédito na história da geopolítica do século 21

    Há análises que fogem à questão central: a herança recebida da União Soviética pela Rússia atual

    Desfile militar do Dia da Vitória, Praça Vermelha, Moscou (Foto: RT)

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    Por Nivaldo Manzano (*) - No período de vinte anos, compreendido ­entre o fim da União Soviética e a guerra dos EUA contra a Rússia na Ucrânia, a Rússia, considerada em 1991 por um guru da Casa Branca como uma mera “potência regional” despicienda, converteu-se numa superpotência, somente comparável em poderio bélico aos EUA e à China. Como explicar? Tenho lido explicações que fogem, por desconforto e inconveniência ideológica, à questão central, que é a herança recebida pela Rússia da cultura (em amplos termos) da União Soviética, que ainda veste o manequim de seu líder Vladimir Putin, herança responsável, talvez, pela sua aprovação, há vinte anos, de pelo menos 80% de seus eleitores (um “tirano”, segundo a imprensa ocidental).

    O francês Emmanuel Todd, demógrafo, antropólogo e historiador –reconhecido pela imprensa nos últimos meses como um luminar na análise geopolítica, pelo elevado número de suas previsões certeiras ao longo de 40 anos -, acaba de lançar em Paris o livro “La Défaite de l’Occident”, que ganha manchetes em cadernos literários de todo o mundo e torna-se tema assíduo em debates e entrevistas com o autor.

    Até então, Todd, autor de 20 livros, era um pesquisador (assim ele se apresenta) ignorado e desprezado pela imprensa ocidental durante as últimas três décadas, por razões ideológicas.

    Emmanuel Todd nada tem de comunista e se defende dizendo que não é russófilo, embora valorize os achados de Marx. Obviamente, o tema não é novo, mas o que chama a atenção é o embate acirrado entre esquerda e direita que o livro desperta, a propósito de suas ideias “heterodoxas”, que vicejam ao largo das crônicas tanto profundas como ligeiras que caracterizam o debate atual sobre geopolítica. Aqui,limito-me a apresentar algumas de suas referências históricas e metodológicas sobre as quais o autor fundamenta o conjunto de sua obra, que amadureceu ao longo do tempo.

    A sua originalidade: como demógrafo, Todd destaca a interface da demografia no contexto das análises de geopolítica, ao lado de outras, como a interface econômica, por exemplo, o que não quer dizer que a desconsidere. Não há no pensamento de Todd uma “determinação em última instância”, de ordem ontológica, uma ordenação hierárquica dos conceitos e das atribuições de valor que se fazem à realidade sob escrutínio, em prejuízo de outras, nem infraestrutura nem superestrutura, em que pese a contingência histórica, por ele reconhecida, de um mundo dominado na atualidade pelo Capital. À luz desse entendimento, faria sentido a indagação sobre a diferença entre o contingente e o necessário, entre a Lógica e a História, como ocorre no pensamento de Hegel? Como dissociar a proposta metodológica de Todd das últimas reflexões de Marx, expressa na carta (não enviada) à revolucionária russa Vera Zasulitch em 1882, na qual ele afirma que a capacidade da imaginação é ilimitada e que é preciso deixar de lado a estreiteza de nossos esquemas abstratos, como condição para se enxergar o novo?  E, como discípulo da École des Annales, Todd valoriza os elementos quantitativos, associados ao estudo das temporalidades longas, da qual procedem renomados historiadores franceses, como Marc Bloch e Fernand Braudel.

    Embora sinta ojeriza por toda classificação acadêmica, no papel de antropólogo e demógrafo,  na perspectiva da temporalidade longa Todd detém-se na relevância que atribui ao papel da estrutura e organização familiar na formação social. E daí ele retira as surpreendentes sacadas originais, de superlativa atualidade, motivo de ter sido convertido repentinamente em best seller. À estabilidade da estrutura e organização familiar, Todd associa os processos de longa temporalidade, da coesão comunitária, condição social que implica uma perspectiva de futuro assegurado no horizonte. A essas interfaces demográficas, ele aproxima outras, como os indicadores de escolaridade, fecundidade, mortalidade, religiosidade e outras.

    Munido desse instrumental, o pesquisador mergulha no estudo da crise da formação social dos EUA, país que teria destroçado a sua herança protestante (o sistema escolar que foi modelo para o Ocidente, a escrita e leitura em massa, trabalho, disciplina, a vocação excepcionalista auto assumida), daí resultando e provocando a catastrófica fratura social, total ausência de espírito comunitário (cada um por si contra todos), frustração coletiva, ausência da visão de futuro, ressentimento, estado de guerra permanente, ruína da nação e do Império, “grau zero” da civilização, nos seus termos. Não seria possível afundar ainda mais, ante a iminência do colapso fatal. (Atenção: As análises de Todd circunscrevem-se unicamente ao chamado Mundo Ocidental; daí o seu desinteresse metodológico pelas questões referentes à unipolaridade e multipolaridade da geopolítica mundial no seu todo).

    Já a Rússia, em contraste, teria herdado tudo o que havia de virtuoso no regime soviético, como a estrutura e organização familiar laicizada no socialismo (trabalho e remuneração idêntica para ambos os sexos, equivalência nas hierarquias sociais), estabilidade econômica e política, expectativa positiva de futuro, forte senso de comunidade, herdado das comunas camponesas e reforçado pelo regime soviético, especialmente no pós-II Guerra Mundial, manifesto na bravura de seus heróis e de suas heroínas e reavivado intensamente a cada ano, como pode observar-se na grande afluência às comemorações do término da guerra na Praça Vermelha frente ao Kremlin. (A União Soviética perdeu 20 milhões de combatentes na II Guerra Mundial).

    A isso deve associar-se o legado do excelente sistema educacional soviético, evocado recentemente por Putin, ao proclamar a necessidade de “voltarmos à qualidade que tínhamos antes”). Explica-se:  Frente ao inimigo externo que assediava a URSS de toda parte, no período da guerra fria, o Estado soviético cuidou de formar legiões e legiões de técnicos, engenheiros, físicos, geólogos, psicólogos, cientistas em geral, diplomatas etc.). A busca da autossuficiência era imperiosa, e não havia outra saída para a construção do socialismo e a reconstrução da URSS.

    Mais gente capacitada do que se imagina teria decidido permanecer na Rússia após o fim da URSS, atraída menos pelos salários do que pelas expectativas oferecidas por Putin para conter a diáspora promovida pela rejeição a Yeltsin e pelas promessas fantasiosas do Ocidente, hoje ironicamente simbolizada pela grande placa do Mc Donald’s na Praça Vermelha, agora invertida de cabeça para baixo pela empresa proprietária da rede, para gáudio da clientela.

    No empenho da recuperação, reconstrução e valorização cultural da sociedade russa, Putin fez uso do profundo do sentimento de nacionalidade, que vincou a sua história, um chamado de intensa reverberação patriótica, em especial a lembrança do sacrifício, nas guerras civis e nas batalhas de Leningrado (cerco de dois anos e meio e dois milhões de russos mortos, de Kursk etc. Em matéria de manifestações e comemorações de caráter histórico e símbolos remanescentes entranhados na cultura, é quase impossível dissociar-se a nova Rússia da Rússia soviética. Uma pesquisa recente mostra que supera em mais de 50% o número de cidadãos que evocam os “bons tempos” da URSS. Observe-se que o Partido Comunista da Rússia, que apoia Putin, é a segunda força política na Duma, com 20% das cadeiras. No coração do russo da velha Rússia soviética e do russo da nova Rússia pós-hecatombe Yeltsin pulsa o mesmo sentimento de pertencimento, intuição que a sagacidade do estadista Putin soube preservar e estimular, herança responsável, talvez, pela sua aprovação, há vinte anos, de pelo menos 80% de seus eleitores (um “tirano”, segundo a imprensa ocidental).

    Assim é que, firmemente apoiado no que a Rússia tem de permanente no seu imaginário, na perspectiva da temporalidade longa, para além das contingências do capitalismo e do socialismo, sob o cerrado cerco das sanções econômicas, o eleitorado russo celebra o desempenho econômico superior a todos os países da Europa em 2023 e que deverá repetir-se em 2024, para a estupefação do OTANistão, como diz o jornalista Pepe Escobar. Está aí a prova dos nove, que instiga a compreender o jogo das temporalidades de Todd.

    Em recente entrevista na primeira quinzena de janeiro à equipe do programa diário The Duran na internet, produzido por Alexander Mercouris, Gordon Hahn, um conhecido estudioso da Rússia e da Eurásia, observou: “Para a Rússia, parece agora, o Ocidente já não é o seu 'Outro'.… A Rússia sempre se identificou, motivou-se, impulsionou-se em relação à Europa. Agora Putin está se afastando disso. Disse que já não devemos definir-nos, olhar para nós próprios, através do prisma europeu. Por enquanto, colocaremos todos os nossos ovos na mesma cesta, e essa é a Eurásia…. Esta estreita relação bilateral, da Europa como o Outro da Rússia, está a terminar e, portanto, o ciclo [doconservadorismo à ocidentalização e vice-versa] está provavelmente a terminar.” 

    No entendimento de Gordon Hahan, essas palavras de Putin deveriam ser interpretadas como a manifestação diplomática mais importante até agora no século XXI.

    Isso posto, frente ao destrambelhamento da sociedade estadunidense - um bólido desgovernado, à luz da antropologia de Todd -,junto as pinceladas de minha responsabilidade no quadro desta crônica à “heterodoxia” geopolítica do autor de “La “Défaite de L’Occident”, para afirmar a minha crença na indiscutível capacidade da Rússia de fazer frente à russofobia do OTANistão. 

    (*) Jornalista ​

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