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    As desigualdades brasileiras e seu contexto jurídico/judiciário: novos tempos?

    Leia artigo de Roberto Kant de Lima e Bárbara Lupetti Baptista, de InEAC, para o 247

    (Foto: Dorivan Marinho/SCO/STF)

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    Roberto Kant de Lima e Bárbara Lupetti Baptista, respectivamente coordenador e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC – www.ineac.uff.br)1  

    Durante as recentes manifestações públicas do novo governo Lula, chamou a atenção a ênfase no combate às desigualdades brasileiras, que se encontram entre as mais extensas do mundo. Falou-se em desigualdade econômica, social, étnica, de gênero etc.. Mas, ninguém sequer mencionou a patente desigualdade de tratamento que o Judiciário presta aos jurisdicionados no Brasil.

     Nem mesmo quando tais desigualdades de tratamento se tornaram absolutamente evidentes nos episódios de 08/01/23, quando vândalos, em sua maioria brancos e supostamente cidadãos de bem, instigaram, planejaram, financiaram e executaram a depredação de muito mais que o patrimônio público, em nome não de ideologias alienígenas, mas com o propósito explícito de destruição dos símbolos da República, como todos pudemos visualmente testemunhar.    

    Ora, as pesquisas de caráter etnográfico realizadas no âmbito do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia – Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos (INCT-InEAC), parceiro deste Blog e membro da rede Conecta, têm reiteradamente afirmado, em vários contextos judiciais e policiais, esta desigualdade jurídica estrutural existente em nosso país2.  

    Essa desigualdade jurídica, historicamente prevalente desde o Regime Colonial português da monarquia absoluta, percorreu incólume os vários regimes políticos que o Brasil experimentou desde a sua independência, em todos servindo como eficaz instrumento de repressão a favor dos poderes do momento. E é essa desigualdade que sustenta até hoje, na cultura jurídico-político-administrativa, a inquisitorialidade, ou seja, a suspeição sistemática do estado brasileiro sobre os atos de seus cidadãos.  

     Esta perspectiva continua pensando o Brasil como uma sociedade desorganizada, que precisa ser tutelada pelo Estado – e por seus agentes e instituições - para que a desordem subjacente à suposta falta de substância moral de seus cidadãos não prevaleça.  

    O Estado e seus agentes e instituições, são assim eleitos automaticamente como os mentores da sociedade e os responsáveis por mediar os conflitos havidos, em especial, entre os seus segmentos desiguais. Isto confere uma dose imensa de arbítrio aos agentes e instituições estatais (sempre confundidas com a esfera pública, especialmente em nossa linguagem jurídica).

    Os acontecimentos políticos recentes exacerbaram esses papéis de maneira exemplar e o que se propõe aqui é uma reflexão sobre esses acontecimentos, em um conflito desencadeado pela extrema direita e contido pelo Poder Judiciário.  

    Fomos alvo durante quatro anos ininterruptos pelo bombardeio, poucas vezes no Brasil constatado em um governo civil nesta enunciação extremamente explícita, sobre uma suposta existência de uma cruzada do bem contra o mal, sendo exemplo deste último, tudo e todos que não estivessem do lado do bem! Lutava-se assim, persistentemente, para fazer prevalecer um ponto de vista sobre todos os outros, usando-se de todos os meios possíveis, inclusive aqueles vinculados aos recursos da administração pública em seus vários níveis e expressões. Mais que tudo, tratava-se de cooptar e/ou destruir todas as instituições de governo que se opusessem a este pensamento único. Tudo, evidentemente, em nome do que seus difusores convencionaram chamar de liberdade - entendida, pelos próprios, como ausência total de limites; e expressando um sentido autoritário e autodestrutivo, representado como suposto direito fundamental hedonista dos mais fortes e poderosos de fazerem o que bem quiserem, doe a quem doer e custe o que custar.  

    Aparentemente, as instituições judiciárias se tornaram o alvo principal desses “homens de bem”. Assim, foram sistematicamente hostilizadas e acusadas de julgarem, não de acordo com a Constituição e as leis, mas de acordo com o viés político de seus agentes.

    Ora, esse ambiente de acusação, embora falacioso, encontra eco e justificativa na forma como as decisões judiciais e as próprias práticas processuais são desenvolvidas no seu cotidiano.

     Temos pesquisado há bastante tempo a dificuldade que nosso Direito apresenta em internalizar plenamente a igualdade jurídica formal introduzida pelas Revoluções Burguesas, em função mesmo de sua ambiguidade em conceituá-la: ora a igualdade dos diferentes cidadãos na detenção de direitos iguais, estabelecida na expressão constitucional de que “todos são iguais perante a lei”; ora seguindo o bordão de que “a regra da igualdade não consiste senão em tratar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam”.

     A naturalização dessa estrutura de desigualdade jurídica se materializa, inclusive, em categorias que sequer são problematizadas: “cada caso é um caso”; “cada cabeça, uma sentença”; “de cabeça de juiz, de pata de cavalo e de bunda de neném, ninguém sabe o que vem”; “o juiz acha que é deus, o desembargador tem certeza”; “o bom advogado, conhece a Lei; o melhor, conhece o Juiz”, expressões reveladoras do alto grau de naturalização do campo jurídico com a arbitrariedade e a desigualdade jurídica que ela própria fabrica.

    Nesse contexto, temos acompanhado com interesse, mas não sem preocupação, o protagonismo que o Poder Judiciário, notadamente o Supremo Tribunal Federal, tem assumido para dar conta de equilibrar os Poderes da nossa ainda e sempre inconclusa República e de interditar as arbitrariedades estimuladas pelo antigo Governo.

     Com interesse, não apenas por sermos pesquisadores, mas também porque, evidentemente, a contenção e o controle dos atos extremistas é necessária e esperada por todos que desejam ver a democracia retomada em nosso país e, nesse cenário, nos instiga enquanto cidadãos brasileiros. Porém, com preocupação, porque, justamente por sermos pesquisadores, não podemos nos dar ao luxo de nos inebriarmos com resultados com os quais concordamos, sem nos darmos conta de suas problemáticas causalidades. Afinal, o que nos alimenta no cenário da pesquisa é justamente manter viva a nossa capacidade de estranhar.

    Decisões recentes do STF, especialmente aquelas proferidas pelo Ministro Alexandre de Moraes no contexto dos processos envolvendo abusos e ilegalidades do antigo Governo e de seus seguidores, têm nos despertado especial interesse.  

    Por exemplo, o afastamento do governador do DF, Ibaneis Rocha, determinado de ofício e monocraticamente, nos autos do Inquérito 4879, posteriormente referendado por maioria (vencidos os Ministros André Mendonça e Nunes Marques).  

    Segundo consta no INQ.3, por meio de requerimentos da UNIÃO (AGU); do Senador Randolfe Rodrigues; do Diretor Geral da Polícia Federal, Delegado Andrei Augusto Passos Rodrigues; e da Assessoria de combate à desinformação do TSE, foram solicitados pontualmente procedimentos em face da prática dos atos de vandalismo. Nos referidos requerimentos não constou pedido expresso de afastamento do governador, que foi determinado de ofício pelo Ministro Alexandre de Moraes, segundo o qual a sua conduta “se mostrou dolosamente omissiva”, pois, além de dar declarações defendendo uma falsa “livre manifestação política em Brasília”, também ignorou os apelos das autoridades para a realização de um plano de segurança. Em seu entendimento, “o afastamento do exercício do cargo se trata, portanto, de medida razoável, adequada e proporcional para garantia da ordem pública”.

     Do mesmo modo, o enquadramento dos atos golpistas na Lei 13.260/2016 (a Lei do Terrorismo), em função de “fortes indícios de materialidade e autoria”.

    Assim também, a decisão bastante incomum, proferida no mesmo INQ 4879, delegando apenas parcialmente ao TJDF e ao TRF-1 a competência para a realização das audiências de custódia dos presos, tão somente no que diz respeito à regularidade formal do ato de prisão, reservando ao Supremo a apreciação de quaisquer pedidos das partes, inclusive aqueles previstos no art. 310, I, II e III, do CPP4-5. O que significa que não serão os juízes da custódia, mas ele próprio (e o STF), que decidirão se os acusados deverão, ou não, permanecer presos.  

    Independentemente do regozijo pessoal com os resultados da postura do Supremo, que, no caso concreto, de fato, vem desencorajando os atos de vandalismo e, com isso, restituindo a ordem republicana e democrática em nosso país, temos a intenção de problematizar a estrutura do sistema de justiça e pensar sobre ela e seus resultados – para além do dia 08/01/2023. Afinal, somos também pesquisadores, comprometidos com o exercício permanente do estranhamento e com olhares críticos e atentos não apenas para as funções, mas também para as eventuais disfunções de nossas instituições.

    Casos iguais sendo julgados de forma diferente - fórmula calcada na ausência de consenso sobre os significados das leis, o que autoriza interpretações e juízos particularizados sobre fatos, provas e sobre as próprias leis, produzindo sensos particulares de justiça, que reverberam resultados desiguais em processos nos quais os cidadãos em iguais condições pleiteiam os mesmos direitos têm sido amplamente descritos e discutidos no âmbito dos seminários e das publicações do INCT-InEAC.    

     Tudo isso legitimado por um saber jurídico especializado, constituído como conhecimento dogmático, fundado na técnica escolástica da disputatio, que atualizamos para a categoria “lógica do contraditório”, A lógica do contraditório difere do princípio do contraditório, em outros sistemas denominados de adversário. Este último consiste na garantia que o acusado tem de se defender das acusações que lhes são dirigidas. Já a lógica do contraditório permite que se instaurem infinitas divergências sobre fatos, provas e leis até que a mais alta autoridade defina, enfim, qual a parte vencedora da disputa6.

    A imprevisibilidade das decisões judiciais, muitas vezes proferidas monocraticamente - e, portanto, sem as etapas procedimentais e processuais do “devido processo legal” que se aplica a alguns e a outros não -, sem a produção de consensos, e a partir de critérios de interpretação particularizados, justificados pelo livre convencimento (motivado) do juiz e pela sua independência individual, têm sido fruto de pesquisas e de debates que não podem ser esquecidos e nem suspensos, apenas porque, agora, concordamos com os resultados alcançados. Senão, corremos o risco de cair na esparrela de que os (nossos) fins, eventualmente justificam os (nossos) meios – o que não nos é admitido.

      Apesar das evidentes mudanças institucionais pelas quais passou o Brasil, desde o período colonial até a República atual, certas tradições jurídicas, como sua função tutelar e aquelas voltadas para a descoberta da verdade real no sistema processual penal, próprias dos procedimentos eclesiásticos com ênfase inquisitorial, pouco se alteraram nas práticas atuais no e do Judiciário.  

     Entretanto, pode até parecer inconveniente chamar a atenção para essa engrenagem estrutural inquisitorial justamente agora, em um momento em que estamos, todos os cidadãos democratas e republicanos, comprometidos com o desenvolvimento político do Brasil e satisfeitos com os rumos que as investigações dos crimes cometidos em Brasília no dia 08 de janeiro estão tomando. Mas. por isso mesmo, não podemos deixar de ficar atentos. Afinal, romper com essa lógica inquisitorial exige identificá-la e, mais do que isso, não reproduzi-la.

    O padrão de arbitrariedade vigente cotidianamente nas decisões ordinárias do judiciário, que afeta outras instituições ou iniciativas políticas, têm contribuído efetivamente para a insatisfação popular frente ao Estado e à deslegitimação de nossas instituições voltadas para a administração dos conflitos a elas encaminhados. É isso que temos pesquisado há anos.  

     Reverter e romper com essa estrutura de desigualdade jurídica, que nós mesmos criticamos, também passa por compreendê-la e por não invisibilizá-la (ou mesmo relativizá-la), quando, eventualmente, no banco dos réus estejam aqueles com os quais divergimos. Afinal, como diz a sabedoria popular, atualmente mais uma vez comprovada, em função da relação deste episódio com aquele há pouco ocorrido relativo ao atual Presidente da República, “Pau que bate em Chico, bate também em Francisco!!!”

      1 Com a colaboração de Luis Roberto Cardoso de Oliveira e Michel Lobo T. Lima e Thaiane Moreira de Oliveira, pesquisadores (a) do INCT-InEAC.

      2 Frise-se que estas pesquisas foram desenvolvidas por pesquisadores das áreas de antropologia, sociologia, ciência política, direito, comunicação e história e foram, em sua maioria, já publicadas em artigos em revistas especializadas, coletâneas e livros de autoria conjunta ou individual. Para acesso a algumas delas consultar https://www.autografia.com.br/?s=INCT-InEAC&post_type=product, https://www.ineac.uff.br/index.php/publicacoes/livros e https://www.ineac.uff.br/index.php/publicacoes/artigos 

      3 Disponível na íntegra no site do Supremo Tribunal Federal:<https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/DECISA771OAfastagovernadoreoutrasmedidas2.pdf>. Acesso em 17 jan. 2023.

      4 Decisão disponível na íntegra em: <https://www.migalhas.com.br/arquivos/2023/1/8A07779577A817_decisaomoraescompetenciaaudien.pdf>. Acesso em 17 jan. 2023.

      5 Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: I - relaxar a prisão ilegal; ou II - converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou III - conceder liberdade provisória, com ou sem fiança.
     

      6 Cf. Baptista, B. G. L., Silva, F. D. L. L. da, Amorim, M. S. F. de, Lima, M. L. T., & Lima, R. K. de. (2021). Apresentação: O Direito em Perspectiva Empírica: Práticas, Saberes e Moralidades. Antropolítica - Revista Contemporânea De Antropologia, (51). https://doi.org/10.22409/antropolitica2021.i51.a49717  

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