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Com crise de identidade, a União Europeia aposta na ultradireita

Preocupações estruturais não resolvidas, às quais se somam as consequências desastrosas da guerra Rússia-Ucrânia, marcam o presente-futuro de uma União desorientada

(Foto: REUTERS/Irakli Gedenidze)

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Por Sergio Ferrari - Choque político continental, tsunami na França. Um em cada quatro eleitores nas eleições parlamentares que aconteceram em todo o continente entre 6 e 9 de junho optou por forças de extrema direita. Preocupações estruturais não resolvidas - segurança, migração e queda do poder aquisitivo - às quais se somam as consequências desastrosas da guerra Rússia-Ucrânia marcam o presente-futuro de uma União desorientada.

As pesquisas anteriores sobre as tendências não estavam erradas em relação aos resultados das eleições parlamentares continentais: a direita mantém quase inteiramente a sua força; a extrema direita dá um salto em frente; enquanto liberais, socialistas, esquerda radical e Verdes se esforçam para relativizar a perda, mas sem disfarçar a queda.

Na madrugada desta segunda-feira (10) e quando os detalhes dos assentos obtidos ainda estão sendo escrutinados, o grande Raio-X eleitoral mostra o amplo espectro de direita, de extrema direita e de liberais com cerca de 400 eurodeputados (de um total de 720), enquanto as forças progressistas (socialistas, ecologistas, esquerda radical) ganhariam pouco mais de 220 cadeiras. O resto inclui forças que atualmente não participam de nenhum grupo parlamentar, mas que, no futuro, poderão ser alinhadas.

Nesse cenário global, surge uma primeira questão-chave: será mantida a atual aliança do governo da União entre democratas-cristãos, liberais e socialistas (que ocupou a presidência da democrata-cristã Ursula von de Leyen nos últimos cinco anos), ou será que essa nova realidade eleitoral poderia desencadear uma reorganização das alianças entre centro, direita e extrema-direita? O atual bloco governista se define como marcadamente pró-europeu, enquanto entre as pujantes extremas direitas há setores eurocéticos, o que pode significar um freio a essa hipotética reformulação de alianças.

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O cenário para a décima legislatura será esclarecido nas próximas cinco semanas, dado que o calendário é muito preciso. Entre 18 de junho e 4 de julho, novos grupos políticos serão formados no Parlamento Europeu, de acordo com afinidades político-ideológicas. Em 16 de julho, o Parlamento Europeu se reunirá para nomear suas autoridades para a primeira metade dos próximos cinco anos. Anteriormente, em 27 e 28 de junho, será realizada a Cúpula de Chefes de Estado e de Governo para acordar os nomes para os altos cargos que serão renovados, incluindo o de presidente da Comissão Europeia, bem como a presidência do Conselho Europeu.

Terremoto na França

O Reagrupamento Nacional de Marine Le Pen e Jordan Bardella, com mais de 32% dos votos, provocou uma verdadeira ruptura política, relegando a força do presidente Emmanuel Macron a um distante segundo lugar, com apenas 15,2% dos eleitores, pouco acima dos socialistas, que alcançaram 14,3%.

Duas horas depois de conhecidos os resultados, o presidente francês anunciou a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de eleições legislativas para 30 de junho (primeiro turno) e 7 de julho (segundo turno). "Dissolução, aposta extrema" encabeça a edição de segunda-feira, 10 de junho, do jornal francês Liberation. Enquanto isso, o Le Figaro titula: "Desautorizado (rechaçado), Macron contra a parede". O El País, da Espanha, fala em uma "derrota humilhante" do atual presidente francês.

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As análises dos políticos e da mídia, a partir do anúncio da dissolução da Assembleia Nacional, jogam com diferentes hipóteses. Enquanto para alguns dirigentes, especialmente à direita e à extrema direita, a decisão era a única chance de Macron diante de sua derrota eleitoral; representantes de forças ecológicas e progressistas ressaltam o enorme risco envolvido. Se a tendência eleitoral atual se confirmar, se não houver uma mudança significativa na política nacional, em 8 de julho a França pode acordar com uma primeira-ministra de extrema direita (Marine Le Pen) coabitando com Emmanuel Macron até as próximas eleições presidenciais, em 2027.

Uma candidatura unitária para 30 de junho de todo o espectro progressista (socialistas, comunistas, França Insubmissa, Verdes e esquerda radical) poderia evitar esse cenário. Somados, tomando como referência os resultados do último domingo, alcançariam mais de 30% do eleitorado, quase igualando à ultradireita. Problemas profundos de egos e diferenças de concepções, mesmo em relação à própria União Europeia, conspiram contra esta hipótese de unidade, embora a última palavra não tenha sido dita e a ameaça da extrema direita possa dar origem a uma nova dinâmica unitária.

Nas próximas horas e numa intensa corrida contra o relógio, poderá haver outros cenários para a recomposição de alianças e até uma eventual "ressurreição" macroniana muito difícil (para não dizer quase impossível) caso obtenha apoio circunstancial de outros setores.

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No entanto, o ponto de partida de todas as hipóteses anti-Le Pen baseia-se numa posição defensiva. Nesta segunda-feira (10), a ofensiva é liderada pelo Reagrupamento Nacional (RN) que, com os seus 32% dos votos e com o eventual apoio do Reconquista (com 5% do eleitorado), inicia a corrida para o 30 de junho com uma posição confortável e com um piso de quase 38% do eleitorado nacional. Sem esquecer que foi Jordan Bardella, o candidato vencedor do RN e braço direito de Marine Le Pen, quem desafiou Emmanuel Macron a tomar a decisão de dissolver a Assembleia Nacional.

Futuro incerto

Analisando a dinâmica dos quatro países mais populosos da União Europeia (Alemanha, França, Itália e Espanha) e os seus resultados eleitorais, podem ser levantadas algumas hipóteses que poderão ter impacto no progresso da União Europeia a curto prazo.

O eixo França-Alemanha, que constitui a espinha dorsal da União e a locomotiva econômica e financeira do projeto comunitário, está gravemente ferido pela consulta eleitoral de 9 de junho. Tanto o liberal Emmanuel Macron, condenado em seu país a uma distante segunda posição, quanto o social-democrata chanceler alemão Olaf Scholz, relegado à terceira posição muito atrás dos democratas cristãos e dois pontos atrás da extrema direita AfD, perdem autoridade no contexto nacional e europeu. Os dois principais líderes do atual projeto europeu serão confrontados a curtíssimo prazo com a redefinição de papéis, protagonismos e prioridades políticas, respectivamente, em cada um dos seus países.

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Nos últimos meses, ambos os líderes também se definiram como os principais pilares de apoio da UE a Volodymyr Zelensky e sua estratégia de guerra contra a Rússia. Desde a eclosão do conflito, o impacto negativo da crise na vida cotidiana da população europeia tem sido significativo, com o seu componente de crise energética, aumento dos preços essenciais, tendência inflacionária, agitação camponesa –face aos benefícios concedidos pela UE aos produtos agrícolas ucranianos– para citar apenas algumas facetas da problemática.

Nas últimas semanas, os dois multiplicaram novas promessas de apoios bélicos multimilionários à Ucrânia. Ambos os países decidiram autorizar, inclusive, o uso de armamento ofensivo pela Ucrânia contra o território russo. Macron criou uma polêmica de proporções ao lançar a possibilidade de envolver soldados franceses e europeus nesse confronto.

Os votos a favor das sanções contra Macron e Scholz nas eleições europeias também podem expressar o cansaço de uma parte significativa do eleitorado europeu diante do custo já astronômico dessa guerra. E isso vai se multiplicar ainda mais na fase de reconstrução. Se as eleições costumam ser vistas como plebiscitos sobre as políticas de governo, de qualquer forma, a guerra na Ucrânia não parece ter trazido resultados políticos positivos para Macron e nem para Scholz.

Para o próximo fim de semana, nos dias 15 e 16 de junho, o governo suíço convoca uma Conferência Internacional para o Processo de Paz na Ucrânia, em Bürgenstock, no Lago de Quatro Cantões. Com a promessa de participação de representantes de alto nível de 90 países e organizações internacionais, pretende começar a definir um roteiro para uma solução pacífica. Apesar de que o não convite à Rússia para esse evento conspira contra eventuais resultados concretos, esse espaço internacional do qual Emmanuel Macron prometeu participar, poderia oferecer uma saída para o projeto mais radicalmente belicista promovido pela União Europeia. Macron e Scholz, assim como outros líderes europeus determinados a continuar a guerra, poderiam, em Bürgenstock, ouvindo a linguagem das urnas neste domingo, 9 de junho, começar a repensar seus argumentos de guerra e apostar em uma solução negociada rápida para esse conflito que desgasta a Europa em sua vida cotidiana e em sua própria identidade.

Tradução: Rose Lima.

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