Gabriel Boric, Venezuela e a questão dos direitos humanos
Durante o encontro de presidentes sul-americanos em Brasília, o presidente chileno criticou a situação dos direitos humanos na Venezuela
247, por Salim Lamrani (*) - Desde sua entronização à Presidência do Brasil, em janeiro de 2023, Lula da Silva tem se esforçado para relançar o processo de cooperação regional em um continente fragmentado e dividido. [1] Nessa perspectiva, organizou a Cúpula Sul-Americana que reuniu os presidentes da região nos dias 29 e 30 de maio de 2023 para fortalecer a integração e o diálogo entre os diferentes vizinhos, incluindo a Venezuela, país que sofre sanções econômicas extremamente severas impostas pelos Estados Unidos há anos, que violam gravemente os direitos fundamentais dos venezuelanos. [2]
O presidente Lula denunciou o ostracismo e a guerra política, econômica, diplomática e midiática de que a Venezuela é vítima, apontando para "a narrativa que foi construída contra a Venezuela de antidemocracia e autoritarismo", particularmente por razões ideológicas. Ele também criticou o duplo discurso de alguns países: é "muito estranho [que] as exigências que o mundo democrático faz à Venezuela não sejam feitas da Arábia Saudita". [3]
Os presidentes do Uruguai e do Chile, Luis Lacalle Pou e Gabriel Boric, respectivamente, criticaram as palavras de Lula sobre a Venezuela. Se a posição do líder uruguaio, conservador, não surpreende, a do presidente chileno, de centro-esquerda, despertou mais incompreensão. Ele insistiu na "dor de centenas de milhares de venezuelanos que hoje estão em nossa pátria", sem dizer uma palavra sobre as sanções econômicas dos EUA que sufocam o país e que são a principal causa desse êxodo. "Os direitos humanos devem ser respeitados sempre e em todos os lugares", concluiu. [4]
Duas realidades colocam em xeque a sinceridade das preocupações do líder chileno. Em primeiro lugar, o último relatório da Amnistia Internacional (AI) sobre a situação dos direitos humanos na América Latina é avassalador para muitos países. Com base na realidade fática do estudo, não é possível assinalar especificamente a Venezuela sobre essa questão. As violações dos direitos humanos são inúmeras e extremamente graves em todo o continente. [5]
Então, para poder se constituir como juiz, é essencial ter a autoridade moral necessária. No entanto, o último relatório da Anistia Internacional de 2022/23 sobre o Chile deveria ter levado Gabriel Boric a mostrar mais humildade. De fato, a instituição denunciou a impunidade de que gozam os agentes do Estado [chileno] responsáveis por "violações de direitos humanos". A AI também enfatizou que os agentes da lei foram culpados de "crimes contra a humanidade", "tortura e outros maus-tratos" durante a crise social de 2019. Da mesma forma, a AI relatou "prisões arbitrárias": "Muitas pessoas foram absolvidas por falta de provas depois de passar longos períodos em prisão preventiva". A AI também apontou casos de "tortura e outros maus-tratos" de pacientes em um hospital psiquiátrico e ressaltou que, longe de processar os responsáveis por esses crimes, "o Ministério Público de Valparaíso solicitou a suspensão definitiva do caso". [6]
Em frente às câmeras, Gabriel Boric expressou sua compaixão pelos migrantes e refugiados venezuelanos. Na realidade, tratou-se de uma postura de fachada destinada à imprensa e desprovida de sinceridade. A Anistia Internacional denunciou violações "dos direitos dos refugiados ou migrantes" no Chile. "As autoridades retomaram as expulsões imediatas de estrangeiros sem avaliar sua necessidade de proteção internacional." [7] A AI chegou a publicar uma carta aberta a Gabriel Boric expressando sua "grave preocupação com a situação em que as pessoas que precisam de proteção internacional se encontram na fronteira entre o Chile e o Peru", denunciando o "envio de forças armadas e o estabelecimento de um estado de emergência", medidas contrárias "às obrigações internacionais do Chile". [8]
À luz desses elementos, Gabriel Boric não tem autoridade moral para falar sobre a situação dos direitos humanos na Venezuela. Suas declarações são motivadas mais por considerações políticas e disposição de agradar certos setores do que por sincera preocupação com o destino da Venezuela. Se o presidente chileno está alarmado com o bem-estar do povo venezuelano, ele deveria condenar as sanções econômicas dos EUA contra Caracas e exigir seu levantamento imediato.
(*) Salim Lamrani é doutor em Estudos Ibéricos e Latino-Americanos pela Sorbonne Université e professor titular da Universidade de La Réunion, especialista nas relações entre Cuba e os Estados Unidos.
Notas:
[1] Voz of America, «Presidentes sudamericanos buscan mayor integración en Brasil», 29 de mayo de 2023. https://www.vozdeamerica.com/a/presidentes-sudamericanos-buscan-mayor-integracion-en-brasilia/7113727.html(sitio consultado el 1 de junio de 2023).[2]Ministério das Relações Exteriores, «Consenso de Brasília», 30 de mayo de 2023. https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/consenso-de-brasilia-2013-30-de-maio-de-2023(sitio consultado el 1 de junio de 2023).[3]BBC News Mundo, «‘No es una construcción narrativa, es la realidad’: las críticas de los presidentes de Chile y Uruguay a Lula por sus palabras sobre Venezuela», 31 de mayo de 2023. https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-65762357(sitio consultado el 1 de junio de 2023).[4]Ibid.[5]Amnesty International, «Rapport annuel 2022/23. La situation des droits humains dans le monde», 27 de marzo de 2023. https://www.amnesty.org/fr/documents/pol10/5670/2023/fr/(sitio consultado el 1 de junio de 2023).[6]Amnesty International, «Rapport annuel. Chili 2022», 27 de marzo de 2023. https://www.amnesty.org/fr/location/americas/south-america/chile/report-chile/(sitio consultado el 1 de junio de 2023).[7]Ibid.[8]Amnesty International, «Chili et Pérou. Lettre ouverte à la présidente Dina Boluarte et au président Gabriel Boric», 4 de mayo de 2023. Chili et Pérou. Lettre ouverte à la présidente Dina Boluarte et au président Gabriel Boric
Publicado em espanhol em: https://www.resumenlatinoamericano.org/2023/06/04/chile-gabriel-boric-venezuela-y-la-cuestion-de-los-derechos-humanos/
Tradução ao português: Rose Lima
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