Marx é indispensável, mas qual Marx?
Em entrevista para a revista Contretemps, Michael Löwy fala sobre o marxismo como filosofia da práxis, ecossocialismo e internacionalismo, temas presentes em seu novo livro
Por Léo Texier (Contretemps) – Podemos encontrar uma linha comum atravessando os diferentes textos reunidos no interior de Marx, esse desconhecido, que é a sua vontade de destacar o aspecto “não-científico” da obra de Marx, isto é, os impulsos afetivos, morais, utópicos e, por que não, estéticos que motivaram sua obra e sua ação política. Isso deu origem ao que você costuma chamar, usando uma expressão cunhada por Ernst Bloch, de “corrente quente” do marxismo, em oposição a uma “corrente fria” que, por sua vez, reivindica uma cientificidade econômica e sociológica estrita. Mas a especificidade do pensamento de Marx, no interior da grande variedade de correntes do socialismo no século XIX, não consistiu precisamente em sua tentativa de se diferenciar diante de uma crítica filosófica, moral e espiritual da sociedade moderna capitalista ao propor uma análise meticulosa de suas contradições materiais, aproveitando-se assim do poder irresistível dos instrumentos da racionalidade burguesa para voltá-los contra ela própria?
Michael Löwy – Estou totalmente de acordo com você quando diz que Marx propôs uma análise meticulosa das contradições materiais do capitalismo – algo que faltava aos socialismos do século XIX. Mas ele não era, no entanto, como pretendeu Louis Althusser, “um homem de ciência como os demais”, uma espécie de Lavoisier da ciência econômica. Meu argumento é que, em Marx, a interpretação do mundo e sua transformação são momentos dialeticamente inseparáveis. Não escolhi o aspecto “não-científico” de Marx, mas os escritos em que a análise científica e a crítica social, e/ou a indignação moral, e/ou o mirada utópica, estão intimamente associados.
A análise materialista do capitalismo e do conflito de classes não estão ausentes dos temas da obra de Marx e Engels que estudei, seja a dialética do progresso, o papel da religião, a ecologia ou o romantismo anticapitalista – assim como, é claro, a revolução. Como observa Ernst Bloch, a “corrente quente” do marxismo enfatiza a dimensão “utópica”– o Princípio Esperança –, mas não nega a necessidade da “corrente fria”, a análise implacável da realidade do capitalismo.
Podemos acrescentar, desse modo, que a ciência em Marx não é aquela positivista, fundada no paradigma das ciências naturais; é uma ciência dialética, que se interessa pelas contradições e movimentos da realidade econômica e social, uma ciência crítica que não esconde o seu ponto de vista de classe. É claro que a indignação não é suficiente para compreender a realidade; mas, como explico em meu prefácio, “se ignorarmos a dimensão ‘moral’ da indignação e da recusa, não poderemos compreender Marx, a motivação de seus escritos e sua coerência”.
Dito isso, em meu prefácio reivindico a dimensão subjetiva de minhas escolhas, dos temas dos diferentes ensaios, que rompem, especialmente na primeira parte do livro, com essa imagem convencional de Marx, muitas vezes reduzido a um “economista”.
Contretemps – A oposição entre cientificidade e utopismo parece determinar fortemente estratégias e até mesmo horizontes políticos divergentes. Na época do capitalismo financeirizado, cujas mutações tornaram inoperantes várias das análises tradicionais, não é justamente o primeiro termo dessa alternativa que precisamos atualizar hoje para tentar compreender a nossa situação econômica, histórica e social e poder agir sobre ela?
Michael Löwy – Em seu clássico da sociologia Ideologia e Utopia (1930), Karl Mannheim define a utopia como o conjunto de representações, aspirações ou imagens de desejo que são orientadas para a ruptura com a ordem estabelecida e e que exercem uma “função subversiva”.
Se aceitarmos essa definição, não há divergência entre a análise científica e a aspiração utópica. Como Miguel Abensour demonstrou em seus escritos sobre a utopia, Marx e Engels não rejeitaram as “utopias” de Saint-Simon, de Owen e de Fourier, sua visão de uma sociedade harmoniosa, para além do capitalismo. Suas críticas diziam respeito sobretudo à incapacidade desses pensadores de levar em conta o movimento de trabalhadores, a luta do proletariado por sua autoemancipação.
Na verdade, falo muito pouco sobre utopia neste livro… Por exemplo, no capítulo sobre o “comunismo romântico” de Marx e Engels, estou interessado sobretudo nas afinidades entre a crítica romântica e a crítica marxiana da civilização capitalista. Do mesmo modo, o capítulo sobre a ecologia está preocupado antes de tudo com a crítica de Marx e Engels à destrutividade do “progresso” capitalista. Essas análises críticas de Marx e Engels ainda são relevantes no século XXI, mesmo que tenhamos de levar em conta as novas formas do capitalismo. A mesma coisa vale, é claro, para os textos da segunda parte, sobre a estratégia revolucionária.
É sobretudo no prefácio do livro que faço referência à utopia comunista de Marx, o projeto de uma sociedade livre e igualitária, sem classes e sem Estado, em ruptura com o capitalismo; é claro que Marx “recusou-se a inventar receitas para as ‘marmitas do futuro’”, mas eu acrescentaria que “sua obra é iluminada, de uma ponta a outra, pelo horizonte de um outro mundo possível, que ele designou em O capital como o ‘Reino da Liberdade’”.
Concordo muito que é importante analisar, com os instrumentos da crítica da economia política marxista, as formas atuais do capitalismo financeiro. É uma condição necessária, mas insuficiente, para delinear uma estratégia de luta e um horizonte político…
Para isso, também é necessária uma análise das relações de classe, das formas de luta, das estruturas políticas, dos mecanismos de repressão, dos aparelhos ideológicos, etc. E é necessário, sobretudo, um conjunto de propostas, um programa social e político e uma estratégia revolucionária voltados aos explorados e oprimidos. O Manifesto Comunista termina com uma palavra de ordem: “Proletários de todos os países, uni-vos!”. Mais uma vez, o marxismo, como filosofia da práxis, é inseparavelmente ciência e ação, análise e movimento, crítica e transformação social.
Contretemps – O terreno da ecologia política, que o senhor aborda, parece ilustrar a aparente oposição entre a necessidade de uma abordagem racional e científica rigorosa do problema ecológico e, por outro lado, certas correntes de pensamento que enfatizam a necessidade de reformar nosso imaginário e nossa concepção de “natureza” para arrancá-la do domínio da racionalidade instrumental e econômica. Você foi um dos primeiros a investir nesse terreno, contribuindo para forjar a noção de “ecossocialismo”. A obra de Marx – que muitas vezes é acusada de ter ignorado a questão – nos permite pensar sobre essas questões e, se sim, em que direção?
Michael Löwy – Como você bem disse, essa oposição é apenas “aparente”. O ecossocialismo combina uma análise científica rigorosa da crise ecológica – fornecida, por exemplo, pelo trabalho do IPCC (Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas) – com a necessidade de arrancar a natureza da dominação da racionalidade econômica capitalista. Uma racionalidade instrumental, de curta visão, interessada nos meios de assegurar a maximização dos lucros de bancos e empresas, mas que constitui, do ponto de vista global da vida na Terra, uma absoluta irracionalidade.
No combate em defesa da vida, a mudança de imaginário e da concepção dominante da natureza como “matéria-prima” são importantes; mas o aspecto decisivo é a luta concreta, prática, contra a dinâmica destrutiva, até mesmo suicida, da civilização capitalista industrial. A estratégia ecossocialista baseia-se na convergência entre as lutas sociais e ecológicas, na promoção de combates socioecológicos, que associam os interesses de classe das camadas populares oprimidas com a preservação dos equilíbrios ecológicos.
Qual é a contribuição de Marx para o ecossocialismo? Em primeiro lugar, com sua análise do capitalismo como um sistema baseado na acumulação ilimitada e sua crítica ao fetichismo da mercadoria, Marx fornece para a reflexão ecológica ferramentas indispensáveis. Em segundo lugar, o programa marxista de apropriação coletiva dos meios de produção e planejamento democrático continua atual, de um ponto de vista ecossocialista.
Por outro lado, como demonstrou o trabalho recente de pesquisadores como John Bellamy Foster e Kohei Saito, encontramos em Marx o esboço de análise da ruptura do metabolismo entre as sociedades humanas e a natureza. A preocupação ecológica está longe de estar ausente dos escritos de Marx e Engels, mas ela não ocupou um lugar central em seus escritos: não há nenhum livro, ou mesmo capítulo de livro, sobre a ecologia em sua obra. Isso se explica sem dificuldades: a crise ecológica estava ainda em seus inícios, e não tinham a importância decisiva para a humanidade que ela adquiriu no século XXI.
Hoje, nós não podemos mais pensar o marxismo, ou o comunismo, ou o socialismo, sem colocar no centro da reflexão e da prática a crise ecológica. Como bem disse Naomi Klein, a mudança climática “muda tudo”: para começar, muda nossa compreensão do próprio capitalismo, que não é somente um sistema fundado sobre a exploração do trabalho e a injustiça social mais feroz; é também uma ameaça para a sobrevivência mesmo da humanidade neste planeta. Nossa visão do que poderia ser uma sociedade socialista também se transforma: o respeito aos limites ecológicos, o restabelecimento do metabolismo entre sociedade e natureza, se tornam um dos principais eixos do projeto ecossocialista.
Contretemps – A segunda parte do seu livro aborda, sob vários ângulos, a importância da ideia revolucionária em Marx. O senhor insiste no fato de que, aos olhos dele, as revoluções por vir deveriam ser conduzidas apenas pelo proletariado, recusando qualquer aliança com a burguesia, que não deveria procurar ser “conquistada”. De acordo com a famosa fórmula, a emancipação dos trabalhadores deveria ser obra dos próprios trabalhadores. Marx e Engels repetiram isso aos dirigentes do Partido Social-Democrata Alemão em 1879, que desejavam justamente romper com a doutrina revolucionária e com o caráter “estritamente da classe trabalhadora” do partido. Você acha que uma posição como esta pode ser transposta para a situação atual dos países capitalistas mais avançados, se considerarmos as mudanças na organização do trabalho e, em particular, o enfraquecimento da classe trabalhadora? Ou será que a história finalmente deu razão aos “revisionistas”.
Michael Löwy – O “proletariado” não pode ser reduzido apenas à classe operária industrial tradicional. Como mostraram as análises de Ernest Mandel na década de 1970, estamos testemunhando uma crescente “proletarização” do trabalho intelectual: professores/as, enfermeiras, jornalistas, empregados/as, etc. são em sua maioria parte da classe de trabalhadores, a classe daqueles que vivem da venda de sua força de trabalho. Essa classe de trabalhadores, em sentido amplo, está longe de estar enfraquecida, e constitui, nos países capitalistas avançados, a maioria da população.
Quanto à ideia de revolução, ela me parece mais atual do que nunca. Se quisermos escapar da catástrofe ecológica –resultado necessário da lógica produtivista e consumista do capitalismo – precisamos de uma transformação revolucionária da sociedade, uma ruptura radical com o paradigma da civilização capitalista industrial moderna. Gosto muito da nova definição de revolução de Walter Benjamin: não “a locomotiva da história” (como Marx escreveu algumas vezes), mas os passageiros que puxam o freio de emergência do trem. Somos todos passageiros de um trem suicida chamado civilização capitalista industrial, que avança cada vez mais rápido em direção a um abismo, a mudança climática. É urgente parar esse trem que enlouqueceu.
Os “revisionistas” de hoje, os adeptos do social-liberalismo ou da ecologia de mercado, são parte do problema, não da solução; suas ambições – ou suas práticas, uma vez no governo – se limitam a uma gestão mais eficiente, mais “social”, ou mais “verde”, do “crescimento” capitalista.
Quem seria o sujeito de uma revolução ecossocialista? As forças que estão atualmente na vanguarda da luta socioecológica: a juventude, as mulheres, certos setores do campesinato e certas forças sindicais. Mas não podemos vencer a batalha sem o apoio de trabalhadores e trabalhadoras, sem que a maioria da população seja conquistada para o projeto de uma transformação social radical.
Contretemps – O último texto da coletânea é sobre o tema do internacionalismo. Em certos aspectos, o movimento social, à época de Marx, tinha uma dimensão mais internacionalista do que hoje. Isso não parece ir exatamente contra a evolução do capitalismo, que, por sua vez, completou sua globalização?
Michael Löwy – Na época de Marx, vimos o início de um movimento de trabalhadores internacional. A Primeira Internacional permanece um exemplo apaixonante, por sua capacidade de reunir, pelo menos em seus primeiros anos, sensibilidades sociais e políticas bastante diversas, do sindicalismo ao anarquismo, passando pelo socialismo marxiano. Desse ponto de vista, ela poderia ser um exemplo a ser seguido pelas iniciativas internacionalistas de nossa época.
Entretanto, a Internacional de Marx estava limitada aos países capitalistas avançados, da Europa e da América do Norte. É somente no século XX que o internacionalismo socialista/comunista vai se estender aos países do Sul, os países colonizados ou dependentes. A Terceira Internacional, que encarnou a esperança revolucionária após a Revolução de Outubro, foi dissolvida por Stálin em 1943, e a Quarta Internacional, fundada por Leon Trótski em 1938, sobreviveu, mas permanece bastante minoritária…
No início do século XXI, vemos aparecer iniciativas internacionalistas de um novo tipo: redes internacionais, como a Via Campesina, e encontros internacionais, como o Fórum Social Mundial, no qual se cruzam militantes políticos de esquerda, sindicalistas, movimentos campesinos, movimentos ecológicos e/ou feministas, em torno de uma palavra de ordem: “Um outro mundo é possível”.
Dito isso, a esquerda, o movimento de trabalhadores e a oposição antissistema ainda estão longe de ter alcançado uma verdadeira organização internacional de luta, capaz de enfrentar a Hidra de muitas cabeças – uma imagem proposta pelos zapatistas de Chiapas – do capitalismo globalizado. Isso é ainda mais necessário quando observamos, um pouco por toda parte do planeta, a ascensão de forças nacionalistas reacionárias, por vezes neofascistas, que traduzem, em várias línguas, a palavra de ordem mortal “Deutschland über Alles”.
A crise ecológica e a mudança climática não conhecem fronteiras. O combate ecológico, decisivo para o futuro dos povos que vivem neste planeta, só pode ser travado, em última análise, à escala internacional. As lutas socioecológicas que estão se desenvolvendo em nível local, regional ou nacional são muito importantes, mas não conseguiremos evitar a catástrofe sem uma batalha antissistema global.
Os escritos de Karl Marx são relidos e descobertos a cada geração, desde o século XIX. Em função de novas experiências e de novas condições históricas, é possível encontrar diferentes aspectos a cada leitura e interpretação. Seja nas páginas de O capital, sua obra-prima, seja em seus demais escritos, Marx denuncia o caráter desumano e perverso do capitalismo, suas contradições e origens.
Em Marx: esse desconhecido, o cientista social Michael Löwy apresenta ao leitor facetas inusitadas, por vezes quase exóticas, do trabalho desse grande pensador alemão. De fato, Löwy expõe e comenta neste precioso livro pequenos brilhantes garimpados na monumental obra de Marx, capazes de surpreender mesmo os leitores mais aficionados, transitando por temas como suicídio, religião e até ecologia – uma área de estudo que só iria se consagrar por completo mais de cem anos depois.
Junto com esses assuntos instigantes, Löwy não deixa de abordar temas mais clássicos do universo marxiano – como a luta de classes, o fetichismo da mercadoria e a alienação –, sempre com essa postura de revelar um “Marx desconhecido” até mesmo para aqueles que tanto o conhecem.
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