O marxismo inovador na China
O marxismo desenvolvido na China é desconhecido
Por Werner Rügemer - A ascensão da China como uma das maiores potências econômicas e comerciais do mundo é bem conhecida, mas um fato sistêmico geralmente é ignorado: o impulso à “globalização chinesa” ocorreu sem concomitante expansão militar internacional que tivesse semelhança com aquela praticada pela principal potência hegemônica capitalista quando de sua ascensão, os EUA. Os EUA possuem mais de 800 bases militares em todos os continentes, em 80 países, combinadas com presença militar global de grande envergadura, promoção de guerras de distintos tipos, incluindo as guerras por procuração, mudanças de regime e lideram alianças militares, como a OTAN.
O marxismo desenvolvido na China também é desconhecido no Ocidente. No entanto, recentemente foi lançado um extenso e importante livro sobre o assunto, em inglês: Innovative Marxist School in China. O livro não só pretende tornar o "marxismo com características chinesas" conhecido, mas também convida a um diálogo internacional sobre o assunto. O próprio livro é um meio para estabelecer esse diálogo: cerca de 50 autores de todos os continentes relatam e comentam sobre os desenvolvimentos e o estado atual do marxismo na República Popular da China.
O foco principal é o trabalho do Professor Cheng Enfu e seus coautores. Cheng Enfu ocupa posições de liderança no mundo acadêmico chinês, por exemplo, na Academia Chinesa de Ciências Sociais (CASS); ele também é presidente da Associação Mundial de Economia Política (WAPE). Desde 2006, organiza fóruns internacionais anuais de marxismo na China, mas principalmente em outros países, como EUA, Brasil, África do Sul, Japão, México, Índia, Rússia, França, Canadá, Vietnã e uma vez também na Alemanha (Berlim 2018); o próximo fórum, em agosto de 2024, acontecerá em Atenas, Grécia.
Os Primórdios da Cooperação Internacional
Os autores gregos Roula Tsakalidou e Alexandros Dagkas relatam sobre os primórdios do processo de cooperação internacional. O filósofo americano Erwin Marquit era membro do Partido Comunista dos EUA (CPUSA). Como resultado, ele foi proibido de exercer sua profissão nos EUA e discriminado por causa de sua origem judaica. Marquit fundou a Marxist Educational Press (MEP) e a revista Nature, Society and Thought (NST) fora das universidades estabelecidas e também fora do rígido CPUSA estalinista.
Enquanto o pequeno CPUSA condenava a República Popular da China, que se abriu aos EUA na década de 1980, como antissocialista e capitalista, Marquit foi convidado à CASS na China juntamente com vários marxistas gregos. A partir de 1991, conferências conjuntas foram organizadas, inicialmente com não mais de duas dúzias de participantes. Entre eles estavam os marxistas Domenico Losurdo (Itália) e Andras Gedö (Hungria). A conferência em Wuhan, em 1999, foi intitulada "Socialismo no Século 21"; em Pequim, em 2000, o título foi "Filosofia Marxista no Século 21".
No Vietnã - amplamente destruído pelos EUA, mas agora sob regime socialista - a conferência "Globalização e o Estado-Nação" aconteceu em 2003, em intercâmbio com o Partido Comunista Português sob Álvaro Cunhal, com o NST de Marquit e a Academia Nacional de Política Ho Chi Minh. Seguiram-se conferências na China, organizadas pelo NST com a Academia de Marxismo, que o Prof. Cheng Enfu havia recém-fundado na CASS.
Saída Laboriosa de Doutrinas Anteriores
Os marxistas chineses não apenas tiveram que tirar conclusões da experiência da União Soviética derrotada e colapsada, mas também encontrar seu caminho para fora do edifício doutrinário do "estalinismo". O maoísmo também se mostrou inadequado para um desenvolvimento posterior.
O Partido Comunista da China com Mao havia reconhecido desde a década de 1930 que a força decisiva para a revolução contra a ditadura de Chiang Kaishek, apoiada por senhores da guerra locais, pelos EUA e por Hitler, e contra o agressor Japão, não eram os poucos trabalhadores, mas os muitos milhões de camponeses. Assim, a revolução foi bem-sucedida e a República Popular foi fundada em 1949.
Mas contra o conceito de socialismo de Mao, ideologicamente mais puro e idealista, reconheceram que o desenvolvimento e a salvaguarda do socialismo e da prosperidade da população só seriam possíveis com a ajuda da industrialização em larga escala. A maioria das massas camponesas, completamente empobrecidas por 150 anos de colonialismo, teve que ser transferida para a indústria. Desde o início da década de 1980, empresas ocidentais, inicialmente principalmente corporações e consultores dos EUA, foram trazidas para a China. A industrialização progrediu, mas ao mesmo tempo o grande país tinha em seu meio o principal inimigo anticomunista do sistema, que espalhou novas injustiças tipicamente capitalistas.
Os inicialmente poucos marxistas ao redor de Marquit e Cheng Enfu começaram a trabalhar nisso: uma das descobertas foi que "economia de mercado" e "estado-nação" não precisam ser opostos ao socialismo, pelo contrário: pode ou mesmo deve haver uma "economia de mercado socialista", como parte do processo de transição. No entanto, ao contrário do discurso vazio e comum sobre globalização, a soberania nacional e um estado forte também aparecem como fundamentais. E a luta de classes continua, mas sob liderança comunista, por exemplo, contra a corrupção e os desvios no comércio interno, que são decorrências do capitalismo ocidental importado.
Crítica à Globalização Imperialista Liderada pelos EUA
Confrontados com as atividades de corporações capitalistas dos EUA, mas também da Europa e do protetorado dos EUA, Taiwan, os marxistas chineses, fortalecidos em número e com cooperação internacional, também confrontaram o neo-imperialismo dos EUA e seus sub-imperialistas.
A autora chinesa Peggy Fuyet resume os resultados: o imperialismo dos EUA tem três instrumentos de poder: 1) “hard power” com uma presença militar global, OTAN, etc.; 2) “strong power” com corporações/bancos transnacionais, investidores, Banco Mundial, OMC, G7, etc.; 3) “soft power” com mídia, "cultura", fundações, etc.: promovem individualismo egoísta e "novos valores", enfraquecendo e dissolvendo sindicatos e outras associações coletivas.
O capitalismo ocidental usa esses instrumentos para travar todos os tipos de guerras - com militares, sanções comerciais, endividamento excessivo, manipulação cambial, desinformação, roubo de recursos, mudanças de regime e terceiros diretamente e indiretamente comissionados. Dessa forma, os imperialistas exploram não apenas sua própria população trabalhadora, mas ainda mais aquelas dos países em desenvolvimento. Da UE, isso é praticado mais diretamente pela França na África. Dessa forma, o imperialismo em declínio cria superlucros extremos para suas minorias capitalistas em declínio, mas também se reorganizando e rejuvenescendo, tornando-se ainda mais perigosos e brutais do que antes. Consequentemente, desenvolvimento e paz só podem ser alcançados na luta contra o imperialismo.
É por isso que os marxistas chineses também estão se engajando no debate frente às teorias ocidentais "pós-modernas", incluindo aquelas com pretensões de esquerda e socialistas, que consideram a análise do imperialismo como desatualizada - por exemplo, através de narrativas de "totalitarismo" - e, consequentemente, criticam a China como o novo capitalismo. Isso se aplica em particular a teóricos como Arendt, Foucault, Habermas, depois Harvey, Arrighi, Negri/Hardt, Bobbio, Zizek e a "Nova Esquerda". As análises de Domenico Losurdo, segundo os autores brasileiros Diego Pautasso e Tiago Nogara, provaram ser uma ajuda importante para essa crítica.
A China Tornou-se Grande Através de Seu Próprio Trabalho Árduo e Vivo
A República Popular da China não se ergueu através da exploração de recursos estrangeiros, nem através da terceirização em massa de suprimentos de baixo custo de países pobres - nem através da "ajuda ao desenvolvimento" ocidental. Tanto o desenvolvimento nacional quanto o internacional seguiram uma lógica contrária à do imperialismo. A China se ergueu através de seu próprio trabalho árduo, combinado com o estabelecimento de suas próprias cadeias de produção em um estado aberto, mas soberano.
Apesar de toda a modernização técnica da indústria inicialmente mais simples, o trabalho vivo é a única fonte de valor. Mesmo a internet, a digitalização e a IA requerem uma quantidade sem precedentes de material, matérias-primas, energia para a produção e operação de dispositivos, para cabos transatlânticos e satélites, e também para enormes fazendas de armazenamento - e no imperialismo também trabalho físico árduo de baixo custo realizado pelos "invisíveis" em regiões pobres e distantes. Isso abriu a questão: o que é trabalho vivo, e qual é necessário, qual é desnecessário, qual é prejudicial?
Esse debate constitui provavelmente a parte mais importante do livro. Em particular, os autores Roland Boer (Austrália), Alan Freeman (Canadá) e os dois franceses Jean-Claude Delaunay e Tony Andreani discutem o desenvolvimento adicional da teoria do valor de Marx. Eles se referem em particular ao livro The Creation of Value by Living Labor de Cheng Enfu, Wang Guijin e Zhu Kui.
Inicialmente, a China importou indústria ao estilo capitalista ocidental e hoje tem de longe a maior proporção de trabalho industrial de todas as economias nacionais, especialmente comparada aos EUA. Ao mesmo tempo, no entanto, esse trabalho foi regulado pelo estado de uma maneira completamente diferente daquela dos países imperialistas, e foi e está sendo transformado de uma forma emancipatória que sustenta o trabalho e o valor. Este é um processo de longo prazo, com contradições e novas desigualdades. Cheng e seus coautores, por exemplo, criticaram exageros temporários na "libertação das forças produtivas".
A organização e inovação do trabalho industrial na direção do socialismo necessariamente inclui trabalho que tradicionalmente e diretamente não serve à produção de bens materiais, incluindo bens agrícolas, mas também sua organização, administração, distribuição e segurança. Segundo Cheng e seus coautores, o trabalho vivo necessário é realizado por gerentes, pesquisadores, médicos, enfermeiros, motoristas, professores, vendedores, técnicos, engenheiros, banqueiros, silvicultores, trabalhadores culturais e também por aqueles empregados pelo estado, autoridades, partidos políticos, militares - bem como proprietários privados. Marx não conhecia a economia de "serviços" - a China tem 14 grupos de serviços.
A diferença para um estado capitalista é que todo trabalho é avaliado de acordo com sua contribuição para o bem comum, para o produto social da prosperidade. Isso ocorre porque economia, especialmente no marxismo, é economia política: organização estatal e civil e também salvaguarda militar da prosperidade para todos - se necessário, pela força, em oposição ao trabalho desnecessário ou até prejudicial, como o enriquecimento privado e secreto e o empréstimo fraudulento.
Perspectivas
Por muito tempo, as perspectivas de construção de uma "economia emancipatória" naturalmente tiveram seu epicentro inicialmente na China. Mas de outro lado, no Ocidente liderados pelos EUA, os trabalhadores seguem dependentes, extremamente fragmentados, explorados de várias maneiras e empobrecidos, ainda que parte deles disfrute de privilégios. Apontam uma insatisfação crescente, mas na maioria das vezes desorientada. Como podem se reorganizar efetivamente, nacionalmente, globalmente, com a perspectiva do socialismo? Alan Freeman, do Canadá, faz essa pergunta. Mesmo as formas mais desenvolvidas de organização das centenas de milhões de pessoas exploradas nas cadeias de produção global das empresas ocidentais de digitalização, armamentos, alimentos e plataformas, particularmente na Índia, ainda não são abordadas com a grande de tópico fundamental que constituem: ainda há grandes oportunidades para a cooperação científica internacional, incluindo inovações teóricas, com vistas à compreensão dos complexos fenômenos que nos cercam.
Tradução e revisão: Tiago Nogara
O artigo versa sobre o seguinte livro: Innovative Marxist School in China. Comments by International Scholars on Cheng Enfu's Academic Thoughts. Canut International Publishers, Istanbul Berlin London Santiago Cape Town 2023. ISBN 978-605-4923-74-8, também disponível como e-book
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