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    O “Nunca Mais” que ainda hoje ressoa na Sicília

    Uma investigação científica sobre os desaparecidos italianos na Argentina ditatorial mobiliza a solidariedade

    Alberto Todaro (Foto: Captura de tela )

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    Por Sergio Ferrari, 247 - A reconstrução dos acontecimentos históricos transcende fronteiras geográficas e temporais. O pesquisador italiano Alberto Todaro está prestes a concluir seu doutorado na Universidade de Granada, na Espanha, sobre os desaparecidos sicilianos na Argentina durante a última ditadura cívico-militar (1976-1973). "Um desafio de mais de três anos que me permitiu desenterrar uma etapa complexa de um país –a Argentina– que já sinto como meu", explica Todaro, professor com longa experiência em vários colégios da região de Agrigento, no sul da Sicília. Seu compromisso associativo, bem como seu compromisso intelectual, também não têm fronteiras. Depois de uma viagem à África, fundou junto com sua esposa e outros cooperantes um abrigo para crianças órfãs por Aids em Isimani, no coração da Tanzânia, que ele continua a apoiar (https://www.nyumbayetu.org/chi-siamo/). Da Sicília de hoje à Argentina ditatorial de quase 50 anos atrás, passando pela Tanzânia, "o mundo é uno, amplo, diverso, no qual devem prevalecer novas relações de equidade e justiça. Sem um trabalho sistemático de memória, será impossível construir esse novo e essencial paradigma planetário", diz Alberto Todaro no início desta entrevista.

    Pergunta: Não é muito comum um italiano desenvolver uma tese de doutorado sobre a Argentina em uma universidade espanhola. Como você escolheu esse tema para sua tese?

    Alberto Todaro (AT): Acho que os italianos deveriam se importar muito mais com os argentinos porque a Argentina é, sem dúvida, uma nação irmã, com raízes comuns que nos aproximam particularmente. Desde a unificação da Itália, em 1861, às décadas de 1960-1970, cerca de três milhões de italianos foram morar na Argentina. O escritor Jorge Luis Borges disse certa vez que achava que não era argentino porque não tinha sangue nem sobrenome italianos.

    Em 2008, visitei aquele país latino-americano pela primeira vez com minha esposa e todas as quintas-feiras participamos das rondas das Mães da Praça de Maio. A partir desse momento, cresceu o meu interesse pela questão dos direitos humanos na Argentina, em sua dimensão mais geral. Soube, então, que havia alguns sicilianos que haviam desaparecido lá naquele triste período. Tive acesso a um relatório do consulado italiano em Buenos Aires com uma lista de 45 italianos desaparecidos na época, seis dos quais eram sicilianos (http://www.24marzo.it/index.php?module=pagemaster&PAGE_user_op=view_page&PAGE_id=25). Fiquei muito curioso para saber mais sobre eles. A motivação foi tão forte que solicitei uma licença profissional na escola onde trabalhava para pesquisar o assunto.

    Viagem ao passado

    P: Quais são, resumidamente, os conteúdos essenciais da sua tese de doutorado?

    AT: A pesquisa consiste basicamente em três partes: as histórias de vida dos desaparecidos sicilianos; o contexto histórico em que os eventos ocorreram e entrevistas com pessoas ligadas ao tema. As duas primeiras partes são desenvolvidas através dos depoimentos daqueles que foram testemunhas da época. Infelizmente, não consegui localizar parentes ou amigos de cada um dos seis sicilianos desaparecidos. Não há notícias de nenhum tipo sobre um deles. Para combater o anonimato, quero citar seus nomes: Salvatore Privitera, Claudio Di Rosa, Vincenzo Fiore, Giovanni Camiolo, Silvana Cambi e Giuseppe Vizzini. Com muito respeito, nesse processo, eles se tornaram, como sempre digo, "meus" desaparecidos, ou seja, meus companheiros de estrada na busca da verdade (https://www.lasicilia.it/sicilians/il-mistero-dei-desaparecidos-siciliani-1694385/).

    P: De acordo com sua explicação, um aspecto central de seu estudo foi o intercâmbio e os encontros com os parentes dos desaparecidos sicilianos...

    AT: De fato, tudo isso foi uma experiência essencial. Por exemplo, o encontro com Dona Josefa, mãe de Vincenzo Fiore, um trabalhador da Peugeot que desapareceu em Quilmes, Buenos Aires. Ela integra as Mães da Praça de Maio (https://www.balarm.it/news/sua-mamma-ha-90-anni-e-ancora-lo-aspetta-cosi-vincenzo-fiore-e-ritornato-a-casa-139324).

    Entrevistei irmãos e irmãs, amigas/os e companheiras/os de militância; foram encontros muito emocionantes. Encontrei pessoas muito gentis, dispostas a me contar suas histórias. Tentei ser muito cauteloso ao abordá-las/os, pois acho que recordar certas circunstâncias dramáticas da vida pode ser profundamente doloroso. Na verdade, por exemplo, apesar de várias tentativas, não consegui falar com a filha de Silvana Cambi, a única mulher entre os seis sicilianos desaparecidos. Apesar da sua disponibilidade para falar sobre as suas experiências em centros de detenção, notei que alguns dos antigos detidos que entrevistei estavam relutantes em abordar o tema da tortura. No final de 2022, em plena Copa do Mundo, visitei novamente a Argentina para fazer algumas dessas entrevistas. Foi uma viagem muito especial rumo à história e para o presente... Com toda a magia e a força do que se pode experimentar quando o principal imperativo é ativar a memória.

    P: Quais aspectos dessa viagem mais te desafiaram?

    AT: Eu poderia citar dezenas de fatos. Essa viagem foi um momento crucial na pesquisa e representou a parte mais emocionante e menos técnica dela. Foi importante visitar os lugares onde os eventos aconteceram e conversar com as pessoas que os haviam vivido dolorosamente em sua própria carne. Visitei lugares e conheci pessoas que não só forneceram materiais essenciais para minha tese, mas, também, me forçaram a mergulhar no coração da história daqueles anos. Por exemplo, o simples fato de visitar a Escola de Mecânica da Marinha (ESMA), um dos maiores centros de detenção clandestinos, foi como entrar nessa narrativa (https://www.museositioesma.gob.ar/). Estive em outros centros do mesmo tipo, como a Garagem Olimpo, o Clube Atlético, a Automotores Orletti, entre outros. Entrevistei membros de organizações de direitos humanos, como as Mães da Praça de Maio, Familiares, H.I.J.O.S. e a Comissão Nacional pelo Direito à Identidade. Conversei com profissionais da Equipe Argentina de Antropologia Forense (EAAF). Fui ao Parque da Memória. Enfim, andei muito pelas ruas de Buenos Aires, onde ainda se respiram os vestígios daquela história brutal.

    Se eu fosse relembrar alguns dos momentos mais impactantes desse processo de quase três anos, eu mencionaria a primeira ronda de Mães da qual participei e na qual chorei o tempo todo. Também o encontro com Vera Vigevani Jarach, mãe da Linha Fundadora da Plaza de Mayo, ou a visita à casa de Vincenzo Fiore e o encontro com sua mãe, Dona Josefa, me contando os detalhes do sequestro de seu filho no mesmo quarto onde aconteceu.

    Não ao esquecimento!

    P: Como você está prestes a terminar sua pesquisa de doutorado, quais são as conclusões mais significativas?

    AT: A principal: que é preciso, quase um dever, não esquecer o que aconteceu. É claro que também é necessário seguir em frente, mas lembrar aqueles eventos pode servir para garantir que eles nunca se repitam. "Nunca mais", como se intitulou o Relatório da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas de 1984, ou como sublinhou o procurador Julio Strassera no Julgamento das Juntas de 1985. Tornou-se uma frase que agora pertence a todo o povo argentino. Continua a haver um amplo movimento naquele país sul-americano que reivindica as três palavras-chave: Memória, Verdade, Justiça. Os lugares de horror tornaram-se agora lugares de memória.

    Impressionou-me também a análise dos vários caminhos no processo de integração dos sicilianos, em particular, e dos italianos, em geral, que emigraram para a Argentina com suas famílias em busca de trabalho e de uma vida digna (muitos, em situações econômicas desesperadas). Alguns foram pegos nas malhas da ditadura como vítimas da repressão. Outros se tornaram repressores: muitos dos "chefes" do Processo de Reorganização Nacional, como era chamada a ditadura, tinham sobrenomes italianos.

    P: Apesar da distância necessária e obrigatória que qualquer estudo científico exige, esse assunto em particular confrontou-o com um drama humano. Até que ponto esse trabalho quase concluído mudou sua visão pessoal?

    AT: Vou te dizer uma coisa. Em um dos meus primeiros dias em Buenos Aires conheci Ricardo e Mirta, dois amigos de Claudio Di Rosa, um dos "meus" sicilianos desaparecidos. Sentamos em um bar perto da Praça de Maio e então Ricardo e Mirta começaram a conversar um com o outro. Assim como fazemos na Itália, quando nos reencontramos com nossos antigos colegas de escola ou de infância, ou da universidade. Conversamos sobre nossos outros companheiros, dizendo que um foi morar fora da cidade, que outro se casou com sua namorada na época, etc. Ricardo e Mirta começaram a lembrar que um foi morto pelos militares, que outro ainda está desaparecido, que outro foi sequestrado e jogado no mar... Naquele momento, naquele bar da Praça de Maio, fui confrontado com a revelação do que foi a ditadura militar para a juventude argentina da época. E isso causou um grande impacto em mim.

    Atualizar a memória; solidariedade militante

    P: Em paralelo à sua pesquisa, você se envolveu com outras atividades relacionadas à memória na Argentina?

    AT: Nesses últimos anos descobri também o mundo dos presos que passaram pelos presídios oficiais durante a ditadura, devidamente reconhecidas, que é algo que raramente se fala. Em maio deste ano, com um grupo de camaradas sicilianos, organizamos a apresentação do livro Grande Hotel Coronda (https://elperiscopio.org.ar/), publicado em italiano, sobre aquela prisão de segurança máxima da Argentina. Um microcosmo de histórias de vida, de sofrimento, de luta, de resistência unitária e de contribuição para a memória, a verdade e a justiça que, francamente, eu não imaginaria.

    P: Quase em paralelo à fase final de sua tese, concepções e discursos negacionistas estão crescendo na Argentina. Sua opinião sobre isso?

    AT: Eu vivo em um país onde há pessoas que dizem "Mussolini também fez coisas boas", então não me surpreende que também existam formas de revisionismo ou negacionismo em outros lugares do mundo. No entanto, tenho a sensação de que uma grande parte das pessoas na Argentina se apropriou da memória, da verdade e da justiça. Essas palavras foram semeadas no coração de amplos setores, muitos dos quais sofreram em nível pessoal e familiar com os acontecimentos da década de 1970. Embora possa haver alguns retrocessos parciais, não tenho dúvidas de que esses conceitos bem estabelecidos retomarão seu caminho e continuarão a germinar.

    P: É certo que depois de tantos meses de pesquisa você também se envolveu em uma campanha ativa de solidariedade?

    AT: Com certeza. Lancei uma espécie de "campanha da memória" na Sicília. Escrevi aos prefeitos das cidades de origem dos "meus" desaparecidos; contei-lhes em poucas palavras a história dos seus concidadãos –primeiro, emigrantes e, depois, desaparecidos– e convidei-os a homenageá-los, dedicando uma rua na cidade em seu nome. Até o momento, apenas um desses prefeitos atendeu ao meu convite: o prefeito de San Mauro Castelverde, cidade natal de Vincenzo Fiore. Aliás, no último mês de agosto estive lá, convidado pelo próprio prefeito, para assistir ao descerramento de uma placa comemorativa de Vincenzo e prestar meu depoimento. Agora vou escrever novamente aos demais prefeitos para contar sobre o evento em San Mauro Castelverde e espero que essa experiência continue se multiplicando.

    Sergio FerrariJornalista RPTel: (00 41) 078 859 02 44sergioechanger@yahoo.fr

    Tradução: Rose Lima

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