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    Palestina, meu amor

    Quando um palestino diz: “eu não aguento mais”, não é voz uma isolada. São gerações que falam

    Um estudante que apoia o Hamas segura uma bandeira palestina em um comício na Universidade Birzeit, na cidade de Ramallah, na Cisjordânia ocupada, 26 de abril de 2016 (Foto: Reuters)

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    Por Berenice Bento (Outras Palavras) - A imprensa repete: “Nada justifica matar civis!” para se referir aos ataques do Hamas nos últimos dias. Eu concordo. Mas por que Israel nunca foi condenado e exposto a um massacre midiático por seus crimes contra os civis palestinos? A cobertura sionista tem uma estrutura que se repete: corte cirúrgico para os fatos dos últimos dias. Negam-se a fazer qualquer reflexão, qualquer enquadramento mais amplo. O objetivo é claro: isolar os atos de um contexto anterior que o determina. E ao fazê-lo, o caminho está aberto para a patologização e a criminalização dos palestinos. Ou seja, mediante a absolutização do caso, se preserva a estrutura política, no caso, o colonialismo israelense.

    Ainda assim, não há como escapar de alguns dados: 70% da população dos dois milhões e trezentos mil habitantes de Gaza, a maior prisão do mundo, é formado por refugiados. O que isso significa? O Estado de Israel as obrigou a deixar suas casas, as expulsou e as entregou para colonos sionistas. Vamos tentar ligar as pontas, tentar contar uma história. Só existem milhões de palestinos refugiados porque há uma política continuada de colonização e genocídio por parte do Estado de Israel.

    O drama do povo palestino não começou há uma semana. São 75 anos de perambulação. A ONU já determinou o direito dos palestinos que tiveram suas casas roubadas por Israel, em 1948, a voltarem para suas casas. Essa e tantas outras Resoluções da ONU são letras mortas para um Estado que trata o povo palestino como barata, como lixo. Matar civis configura-se com ato terrorista, foi isso que aprendemos ao longo dessa semana. Se Israel tem matado civis palestinos há 75 anos, não nos resta outra alternativa que uma conclusão lógica: Israel é um Estado terrorista. Agora mesmo está cometendo um crime de guerra, nos termos das leis internacionais, ao punir coletivamente a população de Gaza. Para o Estado de Israel, no entanto, “palestinos” e “civis” são termos que não se encontram, são como água e azeite. Os israelenses são civis, têm vidas que merecem viver, os palestinos… bem, como disse Ayelet Shaked, ex-ministra da Justiça israelense, são “pequenas cobras”, para se referir às crianças palestinas.

    Não tenho dúvida: se alguém viver um dia, apenas um dia, como um palestino, seja em Gaza ou na Cisjordânia, se colocará a mesma questão que me perseguiu naquele inverno de 2017: como esse povo suporta? Eram 5h da manhã e a fila para atravessar o controle militar israelense era enorme. São quase 800 quilômetros de muro de concreto, com 8 metros de altura. Trabalhadores(as) que se amontavam em currais de metais para serem submetidos(as) a mais um ritual de humilhação; do outro lado, o escárnio nos rostos dos(as) soldados(as). Um senhor, diante da minha perplexidade e do meu choro, me fez um pedido: “Conte ao mundo o que você está vendo”.

    É impossível entender a erupção da fúria dos palestinos no último final de semana sem contextualizá-la em marcos mais amplos. Nas revoltas das pessoas escravizadas aqui no Brasil, era comum o assassinato do senhor, da família e do feitor. Os jornais dos senhores escravocratas da época, antecipando o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, afirmavam: “Estamos lutando contra animais e agindo de acordo”. Na mesma entrevista em que fez o diagnóstico da “não-humanidade” do povo palestino, o ministro Gallant determinou o “cerco total” à Faixa de Gaza: punição coletiva. O único direito que o oprimido tem é não ter direito. Mas a fúria chega. Será que os dominadores não aprenderam nada com seus crimes e fracassos? O mantra sionista de que a palestina era uma terra sem povo, transformou-se em estratégia política. Assim tem sido desde 1948: expulsar, matar, torturar, apropriar-se das vidas e dos bens palestinos.

    As condições objetivas para produção da fúria foram sendo gestadas diariamente por Israel. E, como uma barragem que está cheia de rachaduras no interior, mas que não aparece na dimensão externa, rompeu. Com ela, vemos emergirem todos os senhores e senhoras escravocratas. Apenas o(a) senhor(a) tem direito de vida. E os animais-palestinos? Morte total. O processo de desumanização do povo palestino repete a mesma estrutura responsável pela manutenção de seres humanos na escravidão: não são pessoas, são animais, são terroristas. E aqui está o motivo pelo qual a imprensa não fala, não televisiona, não entrevista as mães que perdem seus filhos, suas crianças, para o terror israelense: não são seres humanos. Não tenho dúvidas de que se fosse possível para as mães brasileiras (principalmente aquelas que perdem seus filhos executados pelo terror do Estado brasileiro), olharem nos olhos das mães palestinas, elas diriam “eu também sou palestina”.

    Não entenderam nada do sentido da fúria do(a) oprimido(a)? Quantas intifadas serão necessárias para que o mundo ocidental e Israel entendam que o povo palestino não irá desistir, que o pulso ainda pulsa? Quando um palestino diz: “eu não aguento mais”, não é voz uma isolada. São gerações que falam, são ecos que chegam ao presente, é o passado tornando-se “agora”. Então, não nos peçam o impossível. Nós, apoiadores da luta palestina pelo direito ao retorno dos(as) refugiados(as) às suas terras e à autodeterminação, seguiremos contando a história da mais longa ocupação militar da história moderna, seguiremos fazendo o passado falar no presente.

    Me recuso a discutir o Hamas sem enquadramentos históricos mais amplos. Me recuso a fazer um recorte histórico que aponta Netaniyahu como o princípio do mal absoluto. A solução parece simples: bastaria eleger um israelense de esquerda e a situação do povo palestino seria resolvida. O atual governo não é antítese dos anteriores. Ele não existiria sem a Plano Dalet, sem Levi Eshkol Shkolnik, sem Golda Meir. Os assentamentos ilegais não foram uma invenção de Benjamin “Bibi” Netanyahu. Nada nele é original. Tudo é cópia e continuidade.

    Ilan Pappé, um historiador israelense, concluiu: “depois do início da Operação ‘Chumbo Fundido’, em 2009, optei por chamar à política israelita ‘genocídio gradual’”. O respeitado jornalista israelense Gideon Levy, do Haaretz, afirmou em 8 de outubro de 2023: “Pensávamos que tínhamos permissão para fazer qualquer coisa, que nunca pagaríamos um preço, tampouco seríamos castigados. Prendemos, matamos, maltratamos, roubamos, protegemos colonos massacradores, disparamos em pessoas inocentes, lhes arrancamos os olhos e destruímos seus rostos, os deportamos, confiscamos suas casas, terras, saqueamos, os sequestramos em suas camas e praticamos uma limpeza étnica…”.

    A fúria desses últimos dias foi alimentada com os banhos de sangue dos massacres de Tantura, de Deir Yassim, Dawayima, de Sabra e Chatila, pelos gritos dos 800 mil palestinos expulsos de suas casas. Teve a presença das almas dos que perderam suas vidas nos 31 massacres que acontecem em 1948, dos moradores das 511 aldeias destruídas para construir casas para os colonos sionistas. A fúria tem o sangue que jorrou da cabeça da jornalista Shireen Abu Akleh, da morte dos 230 palestinos civis esse ano, da morte de 2410 civis em 2014 em Gaza. O mundo ocidental já perdoou Israel. Mas os crimes contra civis não são imperdoáveis? A fúria, ao contrário, do que os sionistas querem, não é algo desumano. É o não-inteligível na gramática do colonialismo. Fúria é aquilo que senti naquele checkpoint em Qalandia e que tive uma vontade imensa de, aos berros, com pulso para o alto, clamar por “Free Palestina!”. Afinal, não gritei, fiquei com medo. Mas, sigo contando o que vi. Eu vi o terror diante dos meus olhos.

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