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    Sérgio Ricardo, o multiartista que além de criar, retratou a realidade de um mundo desigual (*)

    A jornalista Irene Cristina destaca o talento do multiartista Sérgio Ricardo, que completaria 90 anos em 18 de junho deste ano, e a força da sua mensagem

    Cantor e compositor Sérgio Ricardo (Foto: Reprodução/Instagram)
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    Por Irene Cristina (**), 247 - Ê mundo velho

    Êta mundo sem porteira

    Vou me levando

    No retão da lembranceira🎶

    Em 2022, Sérgio Ricardo completaria 90 anos e, se ainda estivesse entre nós, nos brindaria com novas canções e filmes que, além da poesia, nos levariam a protestar e gritar: fora fascistas! 

    Foi assim desde suas primeiras incursões musicais quando abandonou o céu, o barquinho e a flor da Bossa Nova e, naquele ritmo contagiante, nos fez chorar com Zelão em pleno Carnaval. E foi com essa obra prima que se apresentou no Carnegie Hall, em Nova York. Segundo ele, um soco de poesia social na sede do imperialismo. 

    Para Sérgio, mais do que criar, o artista deveria retratar a realidade desse mundo tão desigual que passou a enxergar com os textos de Karl Marx presenteados por seu grande amigo João Gilberto. 

    Pesquisador contumaz, Sérgio retratou as injustiças e atrocidades do poder econômico também no futebol com Beto bom de bola que tentou cantar no Festival da canção de 1967. As vaias provocaram o ato mais popular de toda a sua vida com a destruição de seu violão que foi atirado contra a plateia. Mas ele não estava só e muitas pessoas entenderam sua canção crítica. Por vários dias, violões de todos os tipos chegavam pelo correio e ele pode fazer um ampla distribuição para jovens que não poderiam comprar o instrumento. Quanto ao Beto, o bom de bola, era o nosso Garrincha e “foi-se a Copa e foi-se a glória E a nação se esqueceu do maior craque da história.”

    Sua determinação o afastou da mídia, mas não dos fãs. Estudantes, jovens revolucionários, trabalhadores progressistas e … mulheres. Sim, Sérgio era romântico e tinha um charme que atraía mulheres de todas as idades. De Maysa a Leila Diniz entre tantas outras nem tão famosas. Maria Bethânia confessou a ele que, ainda muito jovem, rompeu um cordão de isolamento para tacar-lhe um beijo na boca, numa de suas visitas à Bahia. Em sua última morada, no hospital, suas ex-mulheres chegaram a se revezar para acompanhá-lo.

    E empatia e generosidade eram reconhecidas também pelos que ingressavam na carreira e ele sempre tinha tempo disponível para ouvi-los. Chico Buarque chegou a declarar que suas primeiras composições buscavam o estilo Sérgio Ricardo, para quem mostrou suas primeiras músicas antes das gravações. Alceu Valença e Geraldo Azevedo saíram direto do nordeste para tocar a campainha da casa de Sérgio Ricardo para mostrar seus trabalhos. João Bosco, que se tratavam por “brimos” teve sua música Agnus Sei com Aldir Blanc lançada no Disco de Bolso que Sérgio editava encartado no Pasquim. O ator Antônio Pitanga pediu moradia na casa de Sérgio para poder vir da Bahia para atuar nos seus filmes Esse Mundo é Meu e Menino da Calça Branca. Por sorte,  a família Lutfi e os irmãos,  o fotógrafo Dib Lutfi, o violinista Tufi Lutfi e a pianista Candura Lutfi recebiam a todos com alegria e até hoje são lembrados os quitutes árabes da síria Maria Mansur Lutfi, mãe deles, que fazia a melhor folha de uva do mundo!

    Até o final da vida, Sérgio incentivava jovens talentos no Palco Livre, em Niterói, e no grupo de teatro Nós do Morro, da favela do Vidigal, onde morava e com o qual filmou o longa-metragem Bandeira de Retalhos, aos 85 anos.  A temática ? A vitória dos moradores que  conseguiram impedir a remoção dos barracos do Vidigal no final da década de 1970, quando Sérgio reuniu amigos da Pastoral das favelas e juristas como Sobral Pinto e parlamentares como Délio dos Santos para a vitória dos moradores. No ano seguinte, trouxeram o papa João Paulo II que doou o anel episcopal para os moradores comprarem o terreno e rezou uma missa no quintal do barraco de Sérgio Ricardo. 

    Seus filmes também discutiam questões sociais. O primeiro, Menino da Calça Branca chamou a atenção de Glauber Rocha que o convidou para fazer a trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol e o refrão passou a ser entoado por presos políticos durante tortura, 

     informação que trouxeram para Sérgio anos depois e o deixaram aos prantos: “se entrega, Corisco. Eu não me entrego, não. Não me entrego ao tenente, não me entrego ao capitão, só me entrego na morte de parabelo na mão!” Outra composição, Calabouço, em referência ao restaurante estudantil do Rio, onde o estudante Edson Luiz foi assassinado pela ditadura, foi lançada na Catedral da Sé, em São Paulo,  durante a missa em memória de outro estudante também assassinado, Alexandre Vanucchi Leme.

    Considerado pioneiro da canção de protesto, suas músicas são atuais até hoje como Conversação de Paz, Ponto de Partida, Brincadeira de Angola, Semente, Bichos da noite, Palmares, Cacumbu, Lá vem pedra, Canto do amor armado, Vou renovar, A fábrica etc etc etc, sempre na tentativa de conscientizar através da poesia. 

    Com esse ser revolucionário, Sérgio Ricardo, nascido João Lutfi, na cidade de Marília, em São Paulo, eu convivi durante décadas junto com as meninas dele Adriana e Marina, as minhas Raiane e Taiana e o nosso João na subida do morro do Vidigal, na zona sul do Rio. 

    E quando presenciávamos o cotidiano pela janela, ouvíamos Sérgio:

    🎶Tristeza mora na favela 

    Às vezes ela sai por aíFelicidade então

    Que era saudade sorriBrinca um pouquinho

    Enquanto a tristeza não vem

    CantaCanta

    Nasceu uma rosa

    Na favela

    Enquanto a tristeza não vem🎶

    (*) Título da redação do Brasil 247

    (**) Jornalista, presidente do Conselho Deliberativo da ABI (Associação Brasileira de Imprensa)

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