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    "Lula tocou na ferida ao lembrar que genocídio não é monopólio do povo judeu", diz Breno Altman

    Em entrevista à Agência Pública, o jornalista comentou sobre sionismo e a fala do presidente Lula em relação ao massacre perpetrado por Israel em Gaza

    O presidente Lula e o jornalista Breno Altman (Foto: Reuters)

    Por Andrea DiP, Clarissa Levy, Ricardo Terto, da Agência Pública - Mais de uma semana depois, a fala do presidente Lula sobre a guerra em Gaza, feita na cúpula da União Africana na Etiópia, no dia 18 de fevereiro, continua gerando repercussões. Bolsonaristas utilizaram a reação do governo de Israel e de grupos judaicos como pretexto para convocação para o ato em apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro na avenida Paulista, no domingo 25 de fevereiro. O ex-presidente apareceu com uma bandeira de Israel nas mãos e o pastor Silas Malafaia repudiou o discurso de Lula.

    No episódio 108 do podcast Pauta Pública, o jornalista e fundador do site Opera Mundi Breno Altman explica as feridas históricas do conflito em Gaza e como elas se relacionam com a fala do presidente Lula. Altman analisa a vertente cristã do sionismo no Brasil, suas relações com o bolsonarismo e a utilização dos símbolos judaicos por líderes evangélicos, como Edir Macedo. 

    Altman, que também é judeu, diz que o genocídio não é monopólio do povo judeu, apesar do que esse povo sofreu seja de uma dor incalculável. O jornalista esclarece que o termo genocídio está associado a todas as políticas de Estado cujo objetivo seja, em maior ou menor grau, a destruição de um povo. Para ele, é evidente que essa é a política do governo Netanyahu, cujo o foco seria a destruição do povo palestino. 

    Autor do livro Contra o sionismo – retrato de uma doutrina colonial e racista, publicado pela editora Alameda, Altman indica que o sionismo tem diversas alas, porém todas partilham do mesmo consenso ideológico de haver um Estado Judaico. Diante disso, para ele, há um paradoxo dentro do sionismo no Brasil e no mundo, pois há judeus que são de esquerda, favoráveis aos direitos das mulheres e do povo LGBT, mas que ainda defendem a colonização da Palestina. Leia os principais pontos da entrevista e ouça o podcast completo abaixo:

     [Andrea Dip] Você poderia falar um pouco sobre a diáspora judaica e a formação do Estado de Israel? Pensando nessas expulsões e nas voltas que aconteceram em ondas, é possível dizer que foi um processo de colonização ou um processo diferente? Pergunto por conta da justificativa que se tem sobre a legitimidade do Estado de Israel.

    O povo judeu começa sua diáspora definitiva no ano 70 d.C., depois que o Império Romano destruiu Jerusalém. Os judeus vão para a Europa através do Mediterrâneo e foram se espalhando por várias nações. A partir da Europa, começam novas ondas migratórias, especialmente com o agravamento do antissemitismo. Embora fossem um grupo étnico cultural relativamente pequeno, é um grupo que vai adquirindo influência econômica, cultural e política. O antissemitismo é um termo apenas da metade do século XIX, a perseguição aos judeus é uma característica desse período de diáspora, especialmente por conta do papel econômico que esse povo desempenhava. 

    O sionismo, é uma doutrina encarnada no Estado de Israel hoje, e foi uma das alternativas para enfrentar o antissemitismo. Haviam duas grandes alternativas [para o enfrentamento]: os integracionistas e os sionistas.

    O primeiro grupo se dividia entre os religiosos e os marxistas – o marxismo ganha muito peso no judaísmo no século XIX. A base da alternativa à questão judaica do marxismo seria que os judeus deveriam se vincular à luta da classe trabalhadora e que o antissemitismo só teria solução se as bases materiais da sua existência fossem superadas. Isso só seria possível com a revolução socialista, o fim da propriedade privada e o fim das classes proprietárias.

    O sionismo surgiu no final do século XIX, mais precisamente como o movimento organizado em 1897, propondo uma outra alternativa contra o integracionismo revolucionário marxista e contra o integracionismo isolacionista religioso. Porque os religiosos ultraortodoxos propunham que os judeus permanecessem nas sociedades para as quais haviam imigrado, mantendo-se como um grupo religioso com sua própria identidade, mas entendendo que o retorno dos judeus à sua terra ancestral e a reconstrução do reino de Israel dependiam da chegada do messias. Enquanto o messias não chegasse, os judeus deviam continuar nas sociedades para as quais seus ancestrais tinham imigrado. 

    O sionismo não propõe um Estado nacional, porque os judeus já não eram mais uma nação. Os judeus eram um grupo étnico, cultural, religioso, embora nem todos os judeus sejam religiosos. O sionismo propõe a criação de um Estado racial, não necessariamente um Estado exclusivista. Eles sugerem que esse Estado fosse reconstruído (ou construído) na antiga Canaã, atual Palestina, como assim a denominou o Império Romano. Então, eles deveriam construir o seu Estado de supremacia racial na “terra prometida”. O problema é que a Palestina (quase 2 mil anos depois da expulsão dos judeus) não era mais ocupada pela população daquela etnia; ela era ocupada majoritariamente por uma população árabe e palestina. É completamente diferente dos processos tradicionais de construção de um Estado nacional, que parte de um povo que quer suas liberdades dentro de um determinado território. Os judeus não estavam na Palestina. O sionismo propõe um mecanismo paulatino de colonização da Palestina para poder construir um Estado de supremacia racial. 

    Podemos dividir a colonização em três etapas: a primeira, uma etapa de colonização por povoamento, que foi marcada pela acumulação de enormes recursos financeiros por parte do sionismo. Esses recursos foram aportados pela burguesia judaica da Europa ocidental e dos Estados Unidos. Também foram aportados por aliados do sionismo que não eram judeus. Com esses recursos financeiros se compraram terras de árabes na Palestina, e os judeus da Europa oriental começaram a migrar para aumentar a densidade demográfica do judaísmo na Palestina.

    Passou-se um tempo e começou a segunda etapa, o colonialismo por segregação. Com o aumento do número de judeus na Palestina, começam a ser construídas escolas, hospitais, empresas, clubes judaicos apenas para judeus. Os palestinos não podiam ter acesso nesses locais, e foi se construindo esse ambiente segregacionista que conhecemos hoje. 

    Na terceira etapa, o colonialismo por ação militar, surgiram vários grupos terroristas com o objetivo de provocar terror e pânico entre os árabes para que não lhes restasse outra alternativa senão fugir de suas terras. Houve uma série de ataques contra aldeias palestinas, especialmente nas décadas de 1930 e 1940, para provocar a fuga dos árabes palestinos e permitir a ampliação do domínio territorial do sionismo. 

    O projeto sionista se consolidou com a Segunda Guerra Mundial, com o Holocausto e o assassinato de 6 milhões de judeus. Cria-se um consenso mundial de que os judeus tinham direito ao seu Estado, e isso levou à consagração do projeto sionista. Este projeto teve a aprovação das grandes nações vitoriosas da segunda guerra para criar o Estado judaico pelo patriarca do sionismo, Theodor Herzl, em seu livro O Estado judaico.

    Em 1947, por decisão da ONU, ocorre a partilha da Palestina: 53% do território foi destinado à criação do Estado judaico e 47% foram destinados à criação do futuro Estado palestino.

    As lideranças palestinas e os países árabes não aceitam essa partilha, porque eles perderiam metade de um território no qual eles eram majoritários historicamente. Isso desencadeia uma guerra contra o Estado de Israel, da qual ele sai vitorioso, e os 53% de domínio territorial sobre a Palestina crescem para 79%.

    Finalmente, na Guerra dos Seis Dias, em 1967, iniciada por Israel com o pretexto de se prevenir contra um possível ataque egípcio, o controle territorial sobre a Palestina aumentou para 100%. Com isso, temos 57 anos em que a ocupação desse território e o Estado de Israel se consolidou como um regime, além de racista, colonial. Essa é a breve história do surgimento do Estado de Israel, uma resposta ao antissemitismo. 

    [Clarissa Levy] Olhando um pouco para o Brasil, o sionismo tem uma vertente cristã aqui no país calcada na extrema direita (próxima a Bolsonaro), assim como há vertentes sionistas que se identificam com agendas de esquerda. Como você vê esses grupos e esse movimento operando aqui no Brasil durante o conflito? 

    O sionismo tem diversas alas, mas todas partilham do mesmo consenso ideológico sionista. Esse consenso tem dois pilares: a defesa de um Estado de supremacia racial, um Estado judaico; e o direito de ocupação da Palestina para construir o Estado judaico.

    Então, pode haver várias alas, tem alas liberais, ultraliberais na economia, alas próximas ao socialismo reformista do século XIX, que incentivou a criação dos kibutzim… Nós vamos encontrar judeus que no Brasil são de esquerda e votaram no Lula, são contra o Bolsonaro, por exemplo, mas eles também defendem o Estado de supremacia racial judaica com o direito de colonização da Palestina.

    Essa característica racista e colonial sempre esteve presente na social-democracia europeia. Quando a sociedade entrou em colapso na Primeira Guerra Mundial, foi exatamente porque as correntes sociais democráticas apoiaram suas próprias burguesias contra as burguesias dos demais países, ao invés de defender as classes trabalhadoras. Essa lógica nacionalista e colonialista, até racista, não é antagônica à social-democracia. Esse é um dos motivos pelos quais o setor da esquerda liderado por Vladimir Lenin e por Rosa Luxemburgo rompe com a social-democracia e cria uma outra corrente, a corrente comunista dentro do movimento operário. 

    Quanto ao sionismo evangélico, há uma aproximação religiosa entre a vertente religiosa e os evangélicos, especialmente o fundamentalismo neopentecostal. O sionismo, quando surgiu, era um movimento laico, seu patriarca, Theodor Herzl, era ateu. Herzl sabia que sem a religião não chegaria às massas judaicas mais empobrecidas que estavam na Europa oriental, das quais o projeto sionista dependia para povoar colonizadamente a Palestina. 

    Então, o sionismo fez um acordo com grupos religiosos e promoveu uma alteração estrutural nas escrituras judaicas, pois nas escrituras o povo judeu só poderia retornar a Canaã e reconstruir o reino de Israel que havia existido, que havia sido criado mil anos antes de Cristo, depois da chegada do messias, como eu já havia citado anteriormente. O sionismo se articulou para dizer que o messias só chegaria se a antiga Canaã, da terra prometida, voltasse a ser ocupada pelo povo eleito, os hebreus, os judeus, e purificada dos ímpios: os não judeus. A leitura do Velho Testamento feita por grupos neopentecostais é muito semelhante. 

    A diferença básica é que, para os religiosos judeus, o messias chega; para os cristãos, o messias volta, porque os cristãos veem em Cristo o messias retornar. E essa aproximação religiosa foi criando um ambiente comum entre as correntes evangélicas, os pentecostais, e o sionismo religioso.

    Isso começou a acontecer lentamente nas décadas de 1940 e 1950 do século passado, nos Estados Unidos, e foi evoluindo aceleradamente a partir dos anos 1960 e 1970. Essa confluência se acelera muito nos anos 1980 e 1990.

    Então, esse grupo que existe, o sionismo evangélico, esse grupo não tem judeus. É um grupo praticamente só de cristãos, mas que organiza turismo religioso para a terra prometida, para os símbolos do judaísmo. Ao vermos a Igreja Universal do Reino de Deus, que é a segunda maior denominação neopentecostal do país, do Brasil, e o Templo de Salomão, o templo da Igreja Universal aqui em São Paulo, ele é uma reprodução do que se imagina que tenha sido o segundo templo de Salomão em Jerusalém. Vemos as vestimentas do Edir Macedo quando ele vai realizar seus atos religiosos: é uma vestimenta com adereços judaicos, então essa proximidade religiosa passou a existir.

    [Andrea Dip] Existe hoje uma disputa em torno do termo “genocídio” e essa polêmica sobre a comparação do massacre que está acontecendo em Gaza com o que os alemães nazistas fizeram com os judeus na Segunda Guerra. A fala do Lula entrou nessa discussão. Eu vi recentemente uma entrevista com a jornalista Masha Gessen em que ela defende essa comparação das ações de Israel com o nazismo. Ao citar Hannah Arendt, diz que, se levássemos a sério para que nunca mais aconteça, este seria o momento em que algumas pessoas ainda poderiam ser salvas em Gaza. O que você pensa sobre essa comparação?

    Eu acho que a comparação foi absolutamente apropriada. O presidente Lula mexeu em duas feridas essenciais para compreendermos a situação atual. A primeira ferida é a de que genocídio é a definição de uma determinada política de Estado. Uma política que visa exterminar um povo.

    Genocídio não é um monopólio do povo judeu, embora o que o povo judeu sofreu seja de uma dor incalculável. O genocídio é um termo que está associado a todas as políticas de Estado cujo objetivo seja, em maior ou menor grau, em maior ou menor escala, a destruição de um povo.

    É evidente que esta política do governo Netanyahu é a destruição do povo palestino. O que o governo Netanyahu faz é uma carnificina que mata enormes quantidades de civis, especialmente mulheres e crianças, através de bombardeios cegos cujo objetivo é gerar extermínio, terror e pânico num determinado grupo étnico e nacional.

    O fato do genocídio do povo judeu sobre o nazismo ter uma escala maior do que o genocídio sobre o povo palestino até o momento não retira qualquer propriedade de classificar o massacre de Israel contra a Faixa de Gaza como expressão de uma política genocida. Então, essa é a primeira ferida na qual tocou o presidente Lula com muita propriedade. 

    Tem uma segunda ferida ainda mais importante. O fundamento, a fonte de legitimidade do regime sionista é o Holocausto, o antissemitismo. É especificamente o ápice do antissemitismo, que é o Holocausto, o assassinato de 6 milhões de judeus pelo nazismo. O regime sionista, de toda maneira, teve sua fonte principal de legitimação no Holocausto. Como é possível que um regime político cuja legitimação é o sofrimento contra o povo judeu exerça contra um outro povo metodologias semelhantes de extermínio àquelas que foram empregadas pelos nazistas contra os próprios judeus?

    Como é possível você reivindicar como sua fonte histórica de legitimidade algo provocado pela ação de extermínio do Estado alemão, do Estado nazista, contra os judeus e repetir práticas do Estado nazista contra outro povo? Essa é uma contradição brutal, uma contradição frontal, e o presidente Lula tocou o dedo na ferida. Não é à toa que o regime sionista se incomodou e reagiu com as quatro pedras nas mãos.

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