Unicef: mais de mil crianças tiveram membros amputados na Faixa de Gaza
Autoridades de saúde de Gaza dizem que quase um quarto das lesões relativas ao conflito ocorre em crianças. Má higiene e falta de remédio significam mais amputações
Por Arafat Barbakh, Maggie Fick e Emma Farge
Reuters - A perna esquerda de Noor foi quase completamente arrancada quando sua casa em Jabalia, na Faixa de Gaza, foi atingida por uma explosão em outubro. Agora, sua perna direita, que carrega uma barra de metal pesada e quatro parafusos perfurados no osso, pode ter que ser amputada.
"Isso me machuca muito. Tenho medo de que tenham que cortar minha outra perna", disse a menina de 11 anos em sua cama no hospital. "Eu costumava correr e brincar, era tão feliz com minha vida, mas depois que perdi minha perna minha vida ficou feia e fiquei triste. Espero conseguir uma prótese."
No território palestino devastado por bombardeios, uma geração de crianças com amputações está surgindo à medida que a ofensiva de Israel em retaliação aos ataques do Hamas no dia 7 de outubro resulta em lesões por explosões e esmagamento em locais densamente povoados.
Autoridades israelenses já disseram que trabalham para minimizar os danos aos civis em Gaza. A unidade de porta-vozes militares de Israel ressaltou o que chama de estratégia do Hamas de "exploração de estruturas civis para fins terroristas", mas não fez nenhum comentário específico sobre crianças amputadas.
Médicos e trabalhadores humanitários dizem que o sistema médico colapsado de Gaza não está preparado para fornecer às crianças os complexos cuidados e acompanhamento de que precisam para salvar seus ossos ainda em crescimento. Apenas 30% do total de médicos pré-conflito no território estão trabalhando devido a assassinatos, detenções e deslocamentos, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mais de mil crianças passaram por amputações nas pernas, às vezes mais de uma vez ou em ambos os membros inferiores, até o final de novembro, segundo o Unicef, o fundo das Nações Unidas para crianças; autoridades de saúde de Gaza dizem que quase um quarto das lesões relativas ao conflito ocorre em crianças.
Má higiene e escassez de medicamentos significam mais complicações e amputações em lesões existentes, algumas das quais podem resultar em morte, dizem os médicos.
"Muitos membros que aparentemente haviam sido salvos, acabarão por exigir amputação. E muitos dos pacientes com amputações e membros que achamos que foram salvos ainda podem acabar morrendo das consequências a longo prazo", diz Chris Hook, um médico emergencista britânico que trabalha com os Médicos sem Fronteiras e retornou de Gaza no final de dezembro.
Moscas e descomposição
A equipe do Hospital Europeu em Gaza que opera com o triplo de sua capacidade máxima e onde Noor está sendo tratada, não pode fornecer o novo membro com o qual a menina sonha.
Até mesmo analgésicos para ajudar amputados com a dor constante estão acabando, dizem os funcionários. Moscas zumbiam ao redor da ala hospitalar quando um jornalista da Reuters a visitou.
"Eu tento o máximo que posso facilitar as coisas para eles como enfermeira, mas não importa o que você faça, eles têm graves problemas psicológicos, eles se sentem incompletos e com muita dor", afirma a enfermeira Wafa Hamdan.
O principal centro de próteses da região, o hospital Hamad, financiado pelo Qatar na Cidade de Gaza, foi fechado semanas atrás depois de ser atingido por Israel, dizem as autoridades de saúde do território palestino. A unidade de porta-vozes militares de Israel não respondeu a um pedido de comentário sobre este hospital.
Crianças com amputações relacionadas à guerra precisarão de até uma dúzia de cirurgias no membro ferido até atingirem a idade adulta, porque seus ossos continuam crescendo, dizem especialistas.
Mesmo antes do conflito, havia escassez de cirurgiões vasculares e plásticos, de acordo com os médicos, e as autoridades de saúde palestinas afirmam que mais de 300 profissionais de saúde morreram desde o início da guerra.
Ainda assim, Noor, cuja perna direita pode sobreviver sem sequelas, tem mais sorte do que algumas crianças cujos membros foram amputados rapidamente devido à falta de tempo ou expertise médica, às vezes sem anestesia.
"Infelizmente, muitos deles são realmente desnecessários", diz Sean Casey, coordenador das equipes médicas de emergência da OMS. Em outras ocasiões, a amputação é a única escolha porque as crianças feridas chegam ao hospital dias após a lesão.
O porta-voz do Unicef, James Elder, diz ter visto uma criança cuja perna esquerda ferida começou a se decompor porque ela ficou presa em um ônibus por mais de três dias devido a atrasos em postos de controle militares. A unidade de porta-vozes militares de Israel afirma que uma análise operacional foi realizada para tirar lições imediatas do incidente e que seria examinada mais detalhadamente.
"Ninguém vai visitá-los"
Embora as autoridades de saúde de Gaza não tenham um número oficial, médicos e trabalhadores humanitários dizem que a cifra de mil crianças amputadas dada pelo Unicef é precisa para os primeiros dois meses do conflito; o número, porém, teria sido superado desde então, tornando as taxas de amputação de Gaza altas em comparação com outros conflitos e desastres.
O cirurgião britânico-palestino Ghassan Abu-sittah afirma que realizou seis amputações em Gaza em uma noite, e conta de quanto teve de reabrir uma perna recém-amputada devido a uma infecção.
Hook, da MSF, também relata que muitas pessoas voltaram à sua clínica de cuidados de feridas em Rafah com infecções no que resta dos membros amputados. A presidente do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, Mirjana Spoljaric, diz que não consegue esquecer as imagens de crianças, muitas vezes órfãs, com múltiplas amputações deitadas em enfermarias de hospitais após visitar Gaza em dezembro. "Além das feridas que você vê e da falta de medicamentos para a dor, elas estão deitadas lá e ninguém vai visitá-las."
Em alguns casos, como o da órfã de Gaza Ritash, 10, sua perna direita teve que ser reamputada mais acima, logo abaixo do joelho, depois de ficar infectada, de acordo com Gemma Connell, trabalhadora da agência de assuntos humanitários da ONU (Ocha, em inglês).
Uma fotografia a mostra franzindo a testa em uma cadeira de rodas no chão sujo de um hospital, sua perna recém-amputada se projetando para cima. "Acho que o que vi partiria o coração de qualquer pessoa", diz Connell.
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