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    O mar não está para peixe. Pesca predatória dizima os nossos cardumes

    A sobrepesca ou pesca predatória – a pesca que reduz as populações de peixes além de sua capacidade de reprodução – é um problema global cada vez mais grave. Cerca de 70% das espécies de peixes dos mares estão sendo exploradas de forma insustentável.

    A sobrepesca ou pesca predatória – a pesca que reduz as populações de peixes além de sua capacidade de reprodução – é um problema global cada vez mais grave. Cerca de 70% das espécies de peixes dos mares estão sendo exploradas de forma insustentável. (Foto: Gisele Federicce)

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    Nas Filipinas, um mergulhador passa junto a rede de pesca predatória do atum.

     

     

    Por Eduardo Araia

     

    Quando o assunto é pesca além da conta, o Golfo Pérsico representa um desafio e tanto para a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO). Para começar, o Irã, dono do maior litoral da região, não informa à agência sua produção pesqueira. Em 2013, imagens do Google Earth abriram uma brecha no nevoeiro: analisando-as, os biólogos marinhos Dalal Al-Abdulrazzak e Daniel Pauly, da Universidade da Colúmbia Britânica (Canadá), concluíram que o país dos aiatolás produz 12 mil toneladas de pescado por ano, graças sobretudo a 728 grandes barreiras visíveis nas fotos.

    Mais importante do que isso, porém, foi o cálculo do total pescado na área. Em 2005, foram 31.433 toneladas – seis vezes o que os países do Golfo haviam informado à FAO. “Nossos resultados documentam a falta de confiabilidade da coleta de informações originárias do Golfo Pérsico, uma pequena parte de um problema de desinformação global”, afirmam Dalal e Pauly em artigo publicado em novembro de 2013 no ICES Journal of Marine Science.

     

    Visão por satélite de uma das armadilhas no Golfo Pérsico instaladas por empresas iranianas.

     

    A frase resume o frágil compromisso da maioria dos governos e da indústria pesqueira do mundo com a prática da pesca sustentável. Para muitos, os oceanos ainda são uma fonte inesgotável de peixes sem dono e, portanto, não exigem atenção.

    Até os anos 1990, a pesca em mar aberto se expandia continuamente. De 5 milhões de toneladas capturadas em 1900, o total saltou para 90 milhões em 1990. A evolução tecnológica da indústria fazia crer que esses números seguiriam crescendo, mas eles pouco mudaram desde então (em 2012, foram 93,2 milhões de toneladas, segundo a FAO). Mesmo descontando a desinformação do setor, ficou nítida, então, a prática da sobrepesca – a pesca que supera a capacidade de reprodução dos peixes.

     

    No Chile, a quantidade de peixes apanhados pela pesca predatória chega às raias do absurdo.

     

    “Estimativas apontam que cerca de 70% de todos os estoques de peixes marinhos estão sendo explorados de forma insustentável”, diz Tito Lotufo, professor do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará. “Muitos estoques já colapsaram e os grandes predadores, essenciais ao funcionamento dos ecossistemas marinhos, são os que estão em situação mais crítica. Para alguns especialistas, a situação tem melhorado no mundo, a partir de estatísticas da FAO, por exemplo, mas isso não é consenso. Por outro lado, tais estatísticas são deficientes, pois não conseguem medir o que acontece nos países menos desenvolvidos, de forma que não temos ainda uma noção adequada da situação em termos mundiais. Ao seguirmos nessa direção, certamente teremos problemas graves.”

    Devolver aos peixes marinhos condições de crescer sustentavelmente é o desafio dos governos e do setor pesqueiro. Sem resolvê-lo, seremos cada vez mais reféns da produtividade das fazendas de pescado, a aquicultura, uma prática polêmica pelo impacto ambiental que gera.

     

    O trawler Johanna Maria, especialmente equipado para a pesca de cardumes de sardinha em grandes profundidades, pertence à companhia holandesa Jaczon.

     

    Ecossistemas em desequilíbrio

    A sobrepesca perturba fortemente o equilíbrio marinho, a começar pela espécie-alvo. Uma lista ampla da devastação inclui a anchova peruana, colapsada nos anos 1980, o arenque europeu, com estoques baixos desde os anos 1960, o bacalhau canadense e, mais recentemente, alguns tipos de atum e tubarão.

    A redução da presença desses peixes no mundo amplia a população das espécies que são seu alimento e reduz o número de seus predadores. Isso causa mudanças significativas nos ecossistemas, analisadas em um estudo da Universidade Estadual da Flórida publicado em janeiro na revista PNAS.

     

    Desenho infantil representando a pesca predatória

     

    Um dos casos examinados ocorreu nos anos 1970 na costa da Namíbia, onde a pesca excessiva de sardinhas e anchovas abriu espaço para multiplicação de águas-vivas e de um pequeno peixe, o caboz. A pobreza calórica resultante derrubou a produção local de merluzas de 725 mil toneladas métricas, em 1972, para 110 mil, em 1990. As populações de pinguins africanos e alcatrazes-do-cabo caíram 77% e 94%, respectivamente, desde os anos 1970. “Quando você põe exemplos assim juntos, percebe que há de fato algo importante ocorrendo nos ecossistemas do mundo”, afirma Joseph Travis, biólogo da Universidade Estadual da Flórida e coautor do estudo.

    A sobrepesca reduz o número de peixes de maior porte das espécies caçadas, alvos preferenciais da indústria. Em 2010, esse segmento encolhera 78% ante 1910, enquanto a população dos peixes menores crescera 133%. Isso não significa que peixes de menor porte, mas cruciais para a cadeia alimentar, estejam a salvo. Por ter valor comercial inferior, a sardinha, por exemplo, fica atraente para a produção de rações animais e, assim, é alvo de sobrepesca. Para a FAO, 37% do peso total pescado anualmente nos oceanos entra no preparo de rações.

    Outro problema colateral é o estrago causado pelas redes de arrasto dos barcos. “Três em cada dez peixes são mortos pela captura por ‘engano’ e jogados de volta à água”, diz o ambientalista Henrique Cortez.

     

     

    Gerenciamento precário

    A situação da sobrepesca no Brasil é semelhante à do resto do mundo, avalia Tito Lotufo. Para ele, um fator complicador é a responsabilidade sobre a regulação da pesca brasileira migrar de ministério para ministério, culminando em 2003 com a criação do Ministério da Pesca e Aquicultura (MPA). “Não é difícil prever que, num futuro governo, tal ministério seja extinto e suas funções, repassadas a outro”, afirma. “Com isso, toda a administração da atividade fica complicada. Estamos há anos sem estatísticas adequadas, pois essa atribuição foi retirada do Ibama, que já estava estruturado para fazer o trabalho, e passada ao MPA.”

    Lotufo lembra ainda que enfrentamos sérios problemas em termos de populações de peixes. “O governo estima que 80% dos nossos estoques estejam sobre-explorados”, diz, citando como exemplos a lagosta no Nordeste e grandes peixes oceânicos, como tubarões. O Ministério do Meio Ambiente contabiliza 19 espécies de peixes marinhos ameaçadas de extinção e 32 espécies sobre-exploradas ou ameaçadas de sobre-exploração.

    Reverter esse quadro não é fácil. Há um Código de Conduta para a Pesca Responsável da ONU que não é respeitado, como revela o estudo “Not honouring the code”, publicado na revista Nature em 2009. E a crônica falta de fiscalização aflige o Brasil e outros países.

     

    O atum é uma das maiores vítimas da pesca predatória

     

    As estratégias aplicadas ao setor incluem a criação de períodos de defeso, tamanho mínimo de captura, cotas ou, em casos extremos, a moratória. “As experiências mais interessantes, e que têm dado resultados surpreendentes, são o estabelecimento de áreas de exclusão de pesca”, diz Lotufo. “Elas garantem um local protegido para as espécies viverem e se reproduzirem e passam a funcionar como exportadoras de larvas e (organismos) juvenis para as áreas adjacentes, permitindo a recuperação da atividade pesqueira e sua sustentabilidade. Isso ainda é incipiente no Brasil e no mundo, mas os países desenvolvidos têm tomado a dianteira. É importante ressaltar que essas áreas devem contemplar uma ampla gama de habitats, garantindo a preservação da biodiversidade. Além disso, a maioria das espécies usa mais de um habitat ao longo da vida.”

    Investir nas estratégias bem-sucedidas e fiscalizar com eficiência a atividade pesqueira são as maneiras mais promissoras de combater a sobrepesca. Joseph Travis ressalta, porém, que implementá-las é um trabalho mais do que urgente. “É bem mais fácil recuar para evitar que o copo transborde do que achar um jeito de voltar depois que o copo transbordou”, afirma.

     

    Ilustração com cortes de um navio-fábrica para a pesca industrial

     

    Bacalhau por um fio

    Em 1497, pescar bacalhau na costa da ilha da Terra Nova, no leste do Canadá, era facílimo. Em 1497, a tripulação do navio do explorador veneziano Giovanni Caboto baixou ao mar cestos que voltaram cheios, tamanha era a superpopulação do peixe ali. A pesca do bacalhau marcou a região por séculos. Mas a pesca sem controle e com tecnologia de ponta dizimou os estoques: a produção caiu de 810 mil toneladas, em 1968, para 34 mil, em 1974.

    O governo canadense resolveu então ampliar seu mar territorial para 200 milhas além da costa, a fim de afastar os barcos estrangeiros. Como a indústria local ocupou os espaços vagos, o efeito da medida foi praticamente anulado e em 1992 o país decretou uma moratória quase total da pesca na Terra Nova e na vizinha península do Labrador. A medida desempregou cerca de 40 mil pessoas – um trauma social.

     

    No Alasca, cardumes inteiros desaparecem nas redes da pesca predatória

     

    Nos últimos anos, segundo pescadores e cientistas, a população de bacalhau está se recompondo. Mas um estudo do biólogo Jeff Hutchings, da Dalhousie University, de Halifax (Canadá), publicado em 2013 na revista Science, indica que os estoques dificilmente voltarão às dimensões do passado.

    Enquanto isso, sem seu predador, as lagostas da região se multiplicam, induzindo ao aumento explosivo da sua pesca e a preços de liquidação. Com as devidas adaptações, a história se repete, até o próximo desastre.

     

    Pesca no mundo 2006-2011

     

     

    Produção (em milhões de toneladas)

    Ano

    2006

    2007

    2008

    2009

    2010

    2011

    Pesca extrativa

     

     

     

     

     

     

    Continente

    9,8

    10,0

    10,2

    10,4

    11,2

    11,5

    Mar

    80,2

    80,4

    79,5

    79,2

    77,4

    78,9

    Total capturado

    90,0

    90,3

    89,7

    89,6

    88,6

    90,4

    Aquicultura

     

     

     

     

     

     

    Continente

    31,3

    33,4

    36,0

    38,1

    41,7

    44,3

    Mar

    16,0

    16,6

    16,9

    17,6

    18,1

    19,3

    Total capturado

    47,3

    49,9

    52,9

    55,7

    59,9

    63,6

    Total geral

    137,3

    140,2

    142,6

    145,3

    148,5

    154,0

     

    Destino da produção 2006-2011

     

    Utilização (em milhões de toneladas)

    Ano

    2006

    2007

    2008

    2009

    2010

    2011

    Consumo humano

    114,3

    117,3

    119,7

    123,6

    128,3

    130,8

    Outros usos

    23,0

    23,0

    22,9

    21,8

    20,2

    23,2

    População (em bilhões)

    6,6

    6,7

    6,7

    6,8

    6,9

    7,0

    Consumo per capita (em kg)

    17,4

    17,6

    17,8

    18,1

    18,6

    18,8

    Fonte: The State of World Fisheries and Aquaculture 2012, FAO. Os dados de 2011 são estimativas. Não estão incluídas plantas aquáticas.

     

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