A cara da corrupção
Hoje, cada vez mais, direitos fundamentais vão ficando de lado em nome do “bom” combate ao crime
Em recente noticiário, mostrou-se a cara da corrupção. Durante dois meses, um repórter do Fantástico trabalhou infiltrado em uma repartição pública. Obteve-se um retrato fiel dos ilícitos que há muito permeiam as atividades estatais. O jogo de cartas marcadas em licitações e as fórmulas empregadas para superfaturar preços foram escancarados. Mas qual o valor probatório de tudo isso? Os modelos tradicionais de produção de provas estariam obsoletos?
Hoje, cada vez mais, direitos fundamentais vão ficando de lado em nome do “bom” combate ao crime. Paulatinamente políticas securitárias ganham corpo num processo contínuo de policialização do Estado. E a conscientização da ineficiência dos órgãos de prevenção e repressão, aliada à crescente criminalidade, abalam a crença nas instituições democráticas. Basta ver o que ocorre hoje com o Poder Judiciário ou mesmo com a classe política: o desencanto é generalizado.
A questão é grave, pois aos poucos, em nome da repressão ao crime, da forte demanda securitária, Direitos Humanos vão sendo esvaziados. A sociedade, amedrontada, pouco faz para preservar suas conquistas históricas. O recurso a métodos de investigação invasivos é cada vez mais frequente. As interceptações telefônicas são um bom exemplo da vulgarização do direito à intimidade. Buscas domiciliares perderam o caráter da excepcionalidade. Acusações são atravessadas sem base empírica, mas logo encontram eco no “tribunal da opinião pública”.
Estamos em uma encruzilhada: curvar-se ao ressurgimento de um regime de força — espécie de neototalitarismo — por mais segurança, ou exigir a adoção de mecanismos criativos e aptos a reprimir o crime, sem sacrificar direitos fundamentais. De fato, é preciso recriar arquétipos legais que se harmonizem com as liberdades públicas se queremos preservá-las.
Na Europa, mais particularmente na França, tem-se buscado novos meios de produção de provas menos danosos aos Direitos Humanos. É o caso do denominado test de situation ou de récurrence, algo como “teste de situação” ou “teste de recorrência”, destinado à obtenção de provas em algumas e específicas modalidades criminosas. O testing - “ensaio” - tem por objetivo recriar uma situação bem parecida com aquela em que determinado delito tenha ocorrido, para verificar se, diante das mesmas condições, o fato típico se repete. Nada tem que ver com o conhecido crime impossível por obra de agente provocador, como aparentemente o testing pode estar a sugerir.
Há muito se assentou não haver delito na hipótese do flagrante adrede preparado pela autoridade policial. No testing, não há provocação ao crime, mas provocação à prova. Trata-se de fórmula empregada para evitar a aplicação de medidas invasivas (agressivas) a direitos fundamentais. Reduz-se, de quebra, o denuncismo irresponsável.
O test de récurrence vem sendo utilizado para conter a escalada ao preconceito racial e religioso em alguns países do continente europeu. Para exemplificar: denúncia de discriminação contra empresa que virtualmente eliminou candidato a emprego por conta de sua origem. Para constatar a veracidade (ou não) do fato e coletar provas ou indícios, o “teste de repetição” seria deflagrado com a atuação de atores à semelhança de agentes infiltrados. Um juiz haveria de autorizar a medida para sua utilização como prova do crime anterior, no virtual processo penal a ser instaurado.
Percebe-se o quanto o testing nos seria útil no combate à corrupção, ao tráfico de drogas e em muitas outras infrações. Neste caso, ao contrário da infiltração de repórter de televisão, a prova produzida com autorização judicial teria grande valor probatório. Serviria, inclusive, para que o administrador público pudesse eliminar focos de corrupção nos meandros mais ocultos e inalcançáveis da atividade criminosa.
Cumpre registrar que métodos e técnicas podem ser utilizados para reduzir ao máximo a voraz intromissão do Estado na vida privada dos cidadãos. Não é necessário que entre o crime e a persecução penal tenha-se que espremer cada vez mais o núcleo que dá vida a uma Constituição. A engenhosidade do delinquente está corroendo os alicerces do Estado de Direito democrático e deve ser antagonizada com inteligência, não com violações de direitos humanos.
Com as obras da Copa de 2014 a todo vapor, o test de situation seria uma grande arma contra a ganância e o oportunismo de corruptos. Além disso, amainaria o clima de insegurança que tem reduzido o turismo em nosso país. Arsenais eficazes, portanto, podem ser engendrados imediatamente. Que haja vontade política!
Ali Mazloum é juiz titular da 7ª Vara Federal Criminal de São Paulo
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