Criatividade na pandemia: como isolamento interferiu em nossa capacidade de criar
Ao mesmo tempo em que o retiro doméstico trouxe condições favoráveis para a livre reflexão, a falta de contato social pode secar a fonte de quem precisa ter novas ideias
Por Frederico Cursino, da Agência Einstein - A pandemia colocou as mentes criativas num empasse. Se, por um lado, o isolamento em casa forneceu um refúgio favorável ao pensamento, por outro, as pessoas acabaram privadas de experiências que funcionavam como combustível para a criação. No livro O Poder dos Quietos (Ed. Agir), a escritora Susan Cain defende que a solidão seria um ingrediente essencial para a criatividade. Segundo a autora norte-americana, a pressão social quando se está em grupo inibe ideias disruptivas, e isso explicaria por que grandes descobertas ao longo da história partiram, quase sempre, de insights advindos de momentos solitários. Mas a criatividade não se limita a ideias que rompam com o status quo. No dia a dia, ela é usada em momentos muitas vezes imperceptíveis, nos quais a falta de sociabilidade pode ser um problema na hora de recorrer à engenhosidade da mente.
“Existe uma questão sobre a natureza do que chamamos de criatividade. Há a criatividade como habilidade de inventar algo, a criatividade para encontrar novas aplicações ou pontos de vista e a criatividade para soluções a problemas dados no momento presente e que exigem resposta rápida”, explica o neurocientista Álvaro Machado Dias, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Segundo Dias, a diferença básica entre essas naturezas encontra paralelo em dois conceitos da economia: inovação disruptiva e inovação continuada. Enquanto a primeira emergiria quase sempre de “mentes solitárias”, a segunda viria sobretudo de processos compartilhados. “Numa empresa, por exemplo, a demanda por inovações continuadas é muito maior, enquanto as soluções disruptivas são limitadas a um número restrito de pessoas, geralmente os líderes da corporação”.
Para a maior parte das situações, em que a criatividade ajuda a encontrar saídas para tarefas cotidianas, o isolamento pode ter efeitos distintos. De acordo com o neurocientista, as pessoas com maior grau de extroversão – que tendem a pensar melhor quando estão em grupo – seriam as mais afetadas pela falta de convivência: “Os mais individualistas, por sua vez, tendem a produzir de maneira mais criativa quando há menos interação.”
O músico Fernando Malt é um exemplo de quem prefere a experiência coletiva na hora da criação. Ele conta que, antes do isolamento, reunia-se frequentemente com amigos para compor canções. “Pegávamos o violão, às vezes sem nenhuma ideia na cabeça, e então alguém propunha um tema, outra pessoa acrescentava alguma ideia, e, assim, íamos criando juntos.” Porém, desde março, aquela confraternização intimista de toda semana teve que se adaptar a conferências de vídeo-chamadas ou troca de áudios via WhatsApp. “Ainda que a gente continue com o processo de criação em grupo, a experiência não é a mesma. Tem muita coisa que só conseguimos sentir na convivência pessoal. Além disso, deixamos de ter contato com pessoas como tínhamos antes, e isso, mesmo que a gente não perceba, acaba afetando”, confessa o cantor.
Para o professor da Unifesp, outro reflexo do confinamento seria a chamada “bolha”, um fenômeno similar ao que já acontece na internet. “Através dos outros, recebemos muita mais informação do que se imagina: insights, piadas, coisas que estão na prosódia, no feeling, e que absorvemos a partir do contato com o próximo. E conforme vamos interagindo com menos pessoas, passamos a repetir um mesmo padrão”, explica Dias.
Isolamento e conflitos
Mas o vazio social está longe de ser o único problema para quem precisa criar. O contexto em torno da pandemia abalou o pilar necessário para pensar além, formular ideias, inovar, que é manter uma mente calma e saudável. Na prática, o retiro esperado se transformou em uma ansiedade maior, devido à necessidade de uma série de adaptações, como gerir o trabalho a distância, ou conciliar tarefas domésticas e profissionais, tudo isso somado ao medo da doença e à incerteza sobre o futuro.
“A pandemia trouxe novos conflitos que foram bastante desestimulantes para a criatividade. Foi o chefe que, despreparado para gerir a distância, trouxe mais ansiedade à equipe; foram os problemas familiares que se exacerbaram no confinamento; e a própria necessidade de reorganização dos profissionais, que tiveram que se adaptar para produzir longe de seus colaboradores”, afirma Erika Linhares, socia e fundadora da B-Have, que presta consultoria para gestão de pessoas em empresas.
Especialista em comportamento e cultura de organizações, Erika conta que os pedidos de consultoria aumentaram desde a irrupção da epidemia. Num mundo em que se demanda cada vez mais inovação, a criatividade é um dos temas mais discutidos em suas conversas com profissionais:
“A criatividade é um processo de esforço, que consiste em adquirir conhecimento, experiências e exercitar a mente. Em época de pandemia, isso se torna ainda mais difícil. O ambiente de trabalho não é só mais da empresa, mas você tem que torná-lo propício para a criatividade, que faça você se sentir bem. Isso implica em fazer acordos familiares. Outro ponto essencial é manter as atividades de lazer, a conversa com amigos, mesmo pela internet, e coisas que te façam bem, pois um cérebro oprimido, angustiado, não consegue pensar”, orienta a consultora.
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