"A desigualdade no mundo é ultrajante e tem gênero", diz ministra argentina das Mulheres e do Gênero
Ministra argentina das Mulheres, do Gênero e da Diversidade, Elizabeth Gómez Alcorta, em aula promovida pela Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag), explica o que é o feminismo popular: "um projeto emancipatório que questiona o capitalismo"
O texto a seguir é uma adaptação da 4ª aula do Curso internacional “Estado, política e democracia na América Latina”, da Escola de estudos latino-americanos e globais (Elag), ministrada por Elizabeth Gómez Alcorta, ministra das Mulheres, do Gênero e da Diversidade da Argentina
Feminismo Popular
O feminismo popular nos permite ampliar a concepção liberal de democracia, dando uma contribuição fundamental para a construção de um projeto popular e progressista. Proponho pensar a opressão e a injustiça de gênero a partir de três dimensões centrais: a distribuição desigual de riqueza, do tempo e do desejo. O feminismo popular nos ajuda a pensar sobre o poder de uma forma interseccional, revolucionária e crítica. Por esta razão, são desdobradas contra ele, discursos e forças conservadoras que procuram limitar seu impulso transformador e emancipatório.
Vivemos uma fase em que o capitalismo neoliberal busca superar sua crise, redobrando sua agressividade, acentuando a dominação e o controle sobre os corpos, em particular sobre os corpos racializados e feminilizados.
Também nos territórios, reforçando a exploração da força de trabalho e dos bens comuns da natureza. Essa dinâmica supõe um aprofundamento das crises sociais, ambientais, alimentares, políticas e econômicas.
Estamos passando por uma crise civilizacional sem a capacidade de criar novos sonhos de integração ou progresso. O que o capitalismo contemporâneo nos oferece constantemente são novos pesadelos, onde cresce a segregação de setores inteiros da população, o medo, o ódio e a criminalização da pessoa diferente e das diferenças, e a gestão cotidiana das inseguranças como forma de dominação política.
O preocupante é que esta crise, com pouquíssimas exceções, está sendo profundamente capitalizada por expressões políticas de direita, xenófobas, neofascistas e misóginas. Sempre sabemos que a “crise” é uma oportunidade, mas também sabemos que a oportunidade é maior para quem está em melhores condições para tirar vantagem disso. Infelizmente, são as classes dominantes, os poderes opressores, os proprietários brancos do sexo masculino que estão em melhor posição para capitalizar nesta crise.
Parte das debilidades com que temos de enfrentar as crises reside no enorme peso da ausência de alternativas sistêmicas críveis para milhões de seres humanos. Não há alternativa anti-sistêmica global ou adversário global do capitalismo, e essa ausência é sentida com mais clareza em tempos como hoje, onde o capitalismo neoliberal não tem nada a oferecer à humanidade, em face de uma crise como a que estamos enfrentando.
Não creio que isso deva nos levar ao desânimo ou à frustração, mas nos leva a reconhecer ou caracterizar corretamente o momento histórico que vivemos e a repensar onde estamos.
Estamos passando por uma ofensiva de direita em nível global, com projetos reacionários, que se apresentam com uma agenda anti-direitos, com um ressurgimento sistemático de ataques a projetos progressistas, com o ressurgimento de ideias ditatoriais. Uma ofensiva que visa silenciar a construção de qualquer referência alternativa ao capitalismo neoliberal, qualquer expressão de resistência popular e mobilização social democrata, como são os feminismos.
O feminismo popular é um projeto emancipatório e civilizador que faz um questionamento abrangente do sistema de hierarquias e opressões que está estruturalmente embutido na reprodução do capital.
Em um contexto de ofensiva neoliberalismo de ordem global, o feminismo tem a virtude de denunciar e expor que as desigualdades existem, que são produtos do sistema, que não são um erro, mas sim uma parte constitutiva da reprodução de um sistema político de opressões que casam o patriarcado com o capitalismo.
O feminismo popular permite compreender os três vetores que operam nos processos de opressão e dominação que se cruzam pelo gênero: a distribuição injusta da riqueza, do tempo e do desejo.
Distribuição da riqueza
A desigualdade no mundo é ultrajante. Mas é preciso ressaltar que, além de escandalosa, a desigualdade tem gênero.
Mulheres, lésbicas, gays, travestis, bissexuais e intersexuais constituem a maioria das famílias mais pobres do mundo. Essa porcentagem, ao invés de diminuir, está aumentando.
Os 22 homens mais ricos do mundo têm mais riqueza do que todas as mulheres da África juntas. Globalmente, a diferença salarial entre homens e mulheres é de 24% e, ao ritmo atual, levaria 170 anos para acabar com isso. As diversidades não entram nessa lacuna, porque nem mesmo são medidas. 75% das mulheres nos países em desenvolvimento trabalham sem carteira de trabalho assinada, não têm direitos ou não têm acesso à seguridade social: sim, três em cada quatro mulheres não têm acesso à seguridade social no mundo. Na América Latina, 54,3% das mulheres estão ocupadas em setores precários do ponto de vista salarial, sem formalização do emprego, sem segurança no trabalho e muito menos acesso à proteção social.
Na Argentina, a situação não muda. As mulheres estão sobrerrepresentadas nos 10% mais pobres da população, estando entre 69% e 70%. Sete em cada dez pessoas no decil mais pobre são mulheres. Por outro lado, nos 10% das pessoas com maior renda, as mulheres estão sub-representadas, sendo apenas 37%. Em outras palavras, no decil mais rico da sociedade, quase 7 em cada 10 pessoas são homens. Do total de pessoas afetadas pelo imposto sobre os bens pessoais, em 2019, apenas 34% eram mulheres, o que reflete uma enorme assimetria na distribuição da propriedade dos bens que são atingidos por este imposto.
Distribuição do tempo
A divisão sexual do trabalho atribui tarefas eminentemente reprodutivas às mulheres e às diversidades e as tarefas produtivas aos homens. Diante dessa distribuição injusta de tempo, o feminismo popular trabalha por uma organização social dos cuidados muito mais justa.
Entende-se por tarefa de cuidados todas as atividades relacionadas com a assistência de meninos, meninas e menines e de todos as pessoas idosas e com deficiências que dela necessitem, bem como tudo que implique na gestão do lar, como cozinhar, lavar, passar e comprar. Social e culturalmente, todas essas tarefas são atribuídas e valorizadas como típicas das mulheres e não são tomadas como trabalho.
Nesse sentido, entendemos que a desigualdade nos cuidados precede e está profundamente ligada à desigualdade salarial, à feminização da pobreza e à perpetuação de situações de violência, justamente pela falta de autonomia econômica que as mulheres possuem. Segundo a OIT, na média mundial, as mulheres cumprem três horas diárias de trabalho remunerado e 4,4 de trabalho não remunerado e cuidado. Esta é a média mundial. Já os homens somam 5,4 horas de trabalho remunerado à média mundial e apenas 1,4 horas de trabalho não remunerado nos cuidados.
A atribuição da vida privada e doméstica às mulheres e o emprego no mundo público aos homens têm um impacto decisivo na vida das mulheres e de todos os corpos feminizados. Dedicar esse tempo à esfera privada afeta muitos problemas públicos. Isso se traduz na feminização da pobreza, porque temos tempo e recursos ocupados nos cuidados, e também porque as mulheres apresentam maiores taxas de desemprego e informalidade laboral. Ou seja, as mulheres têm menor probabilidade de serem contratadas porque podem ser responsáveis por filhos ou filhas, ou, pelo mesmo motivo, por buscar empregos com menor carga horária para poder conciliar com o número de horas necessárias para os cuidados, que em última análise, afetam na diferença salarial. Ou aceitamos, ou nos são oferecidos empregos com menos horas, pior remuneração, menos responsabilidades, menos demandas e em setores semelhantes aos cuidados - professoras e enfermeiras, entre outros.
A atribuição de todas essas tarefas, além de ser desvalorizada, social e economicamente, também afeta nossa presença na participação política, onde também somos sub-representadas. Todas nós sabemos que para ocupar espaços de representação política é preciso tempo, demandas e militância. Também tem impacto nas desigualdades entre as próprias mulheres, pois quando algumas têm ou têm capacidade econômica para delegar essas tarefas a outras mulheres, podemos ter mais tempo, e quando muitos, milhares, não têm essa possibilidade, além de tudo, não ocupam espaços de representação política e suas vozes não estão presentes nos espaços público-políticos. Dessa forma, a desigualdade intra-gênero também aumenta, devido à divisão sexual do trabalho. Por isso, sempre digo que as mulheres pobres cuidam de seus filhos e filhas, e dos filhos de outras famílias.
No entanto, o impacto mais profundo dessa divisão entre o que é público e o que é privado tem a ver com os objetivos da economia. Quantas vezes os projetos neoliberais nos pediram para ajustar nossa qualidade de vida para que a produção cresça? Quantas vezes você começou cortando os setores e serviços associados a cuidar e viver bem? O que em última análise deveria ser o objetivo final do sistema econômico, sempre se torna a variável de ajuste. Tudo isso para gerar riquezas, que quase nunca chegam àqueles que efetivamente abriram mão do próprio bem-estar. É indesculpável que a desigualdade econômica e a persistência de elevados níveis de pobreza, no marco do crescimento exclusivo, sejam os dados característicos dos países de nossa região.
Se almejamos honestamente a igualdade de gênero, devemos questionar o atual modelo de desenvolvimento produtivo: um modelo que esgota os recursos naturais e impacta a vida das pessoas, mas, com particularidade, a vida das mulheres. Por isso, repensar os modelos de desenvolvimento merece incluir a perspectiva de gênero em todos os aspectos, integrando o mundo reprodutivo, mas de forma crítica.
Portanto, a igualdade de gênero e a definição de modelos de desenvolvimento mais inclusivos requerem sempre Estados que estejam presentes, fortes, com capacidade de desenhar, mas também de garantir a efetiva implementação das políticas públicas. Estados com capacidade e vontade para melhorar as condições de vida das pessoas.
Em nossa região prevalece uma profunda divisão sexual do trabalho e uma injusta organização dos cuidados, sustentada, em grande medida, pela forte persistência de padrões culturais patriarcais, discriminatórios e violentos. Por isso, afirmamos que o Estado, em seu papel de garantir a justiça social, deve colocar a organização dos cuidados no centro das prioridades políticas. Trata-se de colocar os cuidados no centro da vida e a vida no centro do desenvolvimento econômico. Sem esse ciclo, que para nós é um ciclo virtuoso, jamais conseguiremos reduzir essas brechas de desigualdade que nos atravessaram e nos marcaram historicamente.
Distribuição do desejo
Como último eixo, afirmo que o patriarcado se baseia em uma distribuição injusta do desejo. O patriarcado tem sua gênese além do capitalismo e de sua origem colonial. Foi Rita Segato quem apresentou indícios que apontam a existência de alguma forma de patriarcado ou predominância masculina na ordem de estatuto das sociedades não intervencionadas pelo processo colonial, a partir do que se designa por “mitos de origem”. Não há dúvidas sobre a investigação que Silvia Federici tem feito sobre esses assuntos. Convido a todos a lerem suas obras, em particular o livro “Caliban and the Witch” (Calibã e a Bruxa), que trabalha sobre a história da transição do feudalismo para o capitalismo. Federici provou que a acumulação primitiva não avançou apenas sobre o feudalismo, a derrota do campesinato e de certos movimentos urbanos que reivindicaram a vida comunal e a distribuição de riquezas na forma de diferentes heresias religiosas, mas que a conquista, a escravidão e a exploração da América teve como principal objetivo as mulheres. É precisamente no centro da acumulação primitiva que a feminista ítalo-americana situa a caça às bruxas nos séculos XVI e XVII. Trago este estudo para poder destacar que historicamente as mulheres têm sido objeto de particular exploração e que existe uma relação direta entre a caça às bruxas e a divisão sexual do trabalho, o que acaba nos confinando ao trabalho reprodutivo.
A obstrução, a barreira, o impedimento às tarefas produtivas e a imposição das reprodutivas realizavam-se, nem mais nem menos, por meio da máxima violência estatal.
Desse modo, tanto os papéis sexuais quanto a feminilidade são construções constituídas para a mulher como função-trabalho, justamente sob uma cobertura, que é a da função biológica.
Nesse sentido, nossos corpos foram objetos centrais desta constituição. Consequentemente, a maternidade, o parto e a sexualidade passaram a ser objeto de regulamentação estatal, e ainda são. É aí, nesse ponto, que se localiza o controle do desejo.
O programa do feminismo popular
Sobre esses três eixos (riqueza, tempo e desejo), enuncio uma breve lista de desafios sobre os quais o feminismo popular é construído coletivamente:
- O feminismo popular coloca a vida no centro de qualquer projeto político.
- Não pensamos o poder como subordinação, mas como uma forma de consenso e empoderamento; capacidade de poder realizar e também pensar as relações de poder como algo mais envolvente, como uma série de laços complexos e comunitários. Relações de poder que nos obrigam a nos mover em redes.
- Os feminismos populares têm uma capacidade muito poderosa de interpelação sistêmica e por isso são antirracistas, anticoloniais, antineoliberais, anticapitalistas, antiextrativistas e ambientalistas, o que nos dá um grande desafio aqui e agora que cabe a nós sustentar, no momento mundial em que estamos inseridas e inseridos.
- O feminismo popular busca construir o poder popular.
- Nós que atuamos no campo do feminismo popular também temos a possibilidade de demonstrar que há uma forma de exercer a política em tom feminista, diferente do hegemônico, diferente do masculino, com outros códigos, construindo outros saberes e outras práticas porque, a partir disso, também estamos trabalhando para modificar a correlação de forças contra o patriarcado. Em suma, se a política é a arte de tornar possível o que até ontem era impossível, a política feminista significa também dar credibilidade a que possamos viver em um mundo que vale a pena viver, em um mundo de iguais e sem violência de gênero.
Discursos que atacam, silenciam, invisibilizam
O poder que este projeto político possui, gera, por outro lado, diferentes discursos que tentam minimizá-lo - afirmando que trata-se de um projeto de classe média, um fenômeno urbano marginal -, outros que o querem calar e outros que, diretamente, atacam-no frontalmente.
Chamo a atenção especialmente para esses últimos discursos porque os estudos que se dedicaram a analisá-los nos ensinam que eles sempre têm uma perspectiva transnacional e que, embora ofensivas contra o gênero, apresentam características ou dinâmicas de desdemocratização - entendendo-as como erosão do tecido democrático.
Além disso, a atuação de grupos ultraconservadores e antidireitos na América Latina e no Caribe remonta a décadas, sempre com uma forte articulação com o poder político e econômico, e nos últimos tempos, de poder e crescimento do movimento de mulheres e diversidades, aumentou fortemente a contra-ofensiva pública e política contra a igualdade de gênero, avanços nos direitos das mulheres, pessoas LGBTIQ, direitos sexuais e reprodutivos, especialmente o direito ao aborto e à educação sexual abrangente.
A América Latina enfrenta uma contra-ofensiva altamente articulada e financiada do neoconservadorismo religioso, o neointegrismo religioso, que tem uma enorme inserção social - no campo da política, da educação, dos movimentos sociais - e com a enorme capacidade de disciplinar as subjetividades e de torná-las politicamente dóceis - com discursos populares e amistosos. Buscam resgatar "a família" e a complementaridade do masculino e do feminino, por isso são ferozes combatentes da promoção dos direitos reprodutivos das mulheres, e se unem sob o rótulo de combater a "ideologia de gênero", fórmula que, vale a pena lembrar, foi cunhada pelo Vaticano a partir de 1990.
É imprescindível acompanhar de perto essa dinâmica de “desdemocratização”, principalmente neste presente em que os direitos humanos, a igualdade e a liberdade nas esferas de gênero e sexualidade estão mais em disputa do que nunca.
Como disse Gramsci: “a rigor, cientificamente a única coisa que se pode prever é a luta”. Embora não saibamos de antemão o resultado dessa luta, acredito que devemos enfrentá-la com muita pedagogia, mas também com muita alegria e, sobretudo, com a responsabilidade da consciência que envolve saber tudo o que está em jogo.
*O Curso Internacional "Estado, política e democracia na América Latina" é uma iniciativa destinada a militantes e ativistas sociais, funcionários públicos, docentes e estudantes universitários, pesquisadores, sindicalistas, dirigentes de organizações políticas e não governamentais, trabalhadores da imprensa e toda pessoa interessada nos desafios da democracia na América Latina e no Caribe. Foi promovido pelo Grupo de Puebla, o Observatório Latino-Americano da New School University, o Programa Latino-Americano de Extensão e Cultura da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a UMET.
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