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    Boaventura de Sousa Santos

    Sociólogo português

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    1932: e daqui a sete anos?

    "Porque é que a camada culta, a chamada intelligentsia, é a mais vulnerável a estas desastrosas sugestões coletivas?", questiona Boaventura de Souza Santos

    (Foto: Reprodução)

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    A quantos anos estamos de uma nova guerra mundial? 1932 não era um ano de paz. Pelo contrário, havia várias guerras no mundo: a guerra do Chaco entre a Bolívia e o Paraguai (1932-1935), a guerra de Letícia entre a Colômbia e o Peru (1932-1933), a invasão da Manchúria pelo Japão (1931- 1932), a guerra entre o Tibete e a China (1930-1032), para além de muitas guerras civis. Mas o espetro de uma nova guerra mundial avançava no então centro do mundo, a Europa. Em 1932, o Instituto Internacional da Cooperação Intelectual da Liga das Nações lançou um apelo aos intelectuais para que trocassem opiniões sobre “os problemas que a civilização enfrentava”.

    Um dos primeiros intelectuais contactados foi Albert Einstein, e este escolheu, para seu interlocutor, Sigmund Freud. Na sua carta, Einstein escolhe o problema da guerra e faz algumas perguntas. É possível livrar a humanidade da ameaça da guerra? Reconhecendo que a esmagadora maioria da população quer viver em paz, pergunta: como é possível que a vontade de uma pequena minoria se sobreponha à vontade da maioria? De que artifícios usa essa minoria para despertar o entusiasmo selvagem pela guerra ao ponto de justificar o sacrifício da vida? Como se dirigia a Freud, acrescentou ainda uma pergunta de natureza psicológica. É possível controlar a evolução mental de modo a neutralizar a psicose do ódio e da destruição?

    Porque é que a camada culta, a chamada intelligentsia, é a mais vulnerável a estas desastrosas sugestões coletivas?

    Freud, que já abordara antes o tema da guerra, responde dois meses depois com uma longa carta. Tipicamente freudiana, a sua resposta é complexa: refere a relação dialética entre o direito e a violência, a impossibilidade de generalizar sobre a guerra, a precariedade das soluções, sejam elas pacíficas ou bélicas, a coexistência dos dois instintos contrários mas mutuamente necessários (o instinto erótico da preservação da vida e o instinto agressivo da destruição da vida). Depois desta “imagem desagradável da mente humana”, e temendo que “o moinho moa o grão tão lentamente que a população morra de fome antes de a farinha chegar”, Freud pergunta: “Porque é que você e eu e tantos outros somos visceralmente contra a guerra?”

    A ciência não basta para responder. São os horrores da guerra que fazem com que ele e Einstein sejam pacifistas.

    Assumida esta posição ética, então a ciência pode ajudar: o progresso civilizatório (que para Freud é o mesmo que progresso cultural) conduz à deslocação e restrição dos instintos: fortalece-se o intelecto em relação ao governo dos instintos, ao mesmo tempo que a agressividade dos instintos é interiorizada. A guerra é a negação mais grosseira da civilização.

    Reconhecendo que a sua esperança é utópica (e talvez desesperada), Freud conclui que só o progresso da civilização poderá libertar a humanidade do horror da guerra.

    Quase cem anos depois, a conclusão a que somos forçados a chegar é uma de duas: não houve, entretanto, nenhum progresso de civilização, antes pelo contrário, houve retrocesso, tão delirante é a caminhada para a guerra; perversamente, é o próprio progresso deste tipo de civilização que mais e mais induz à guerra e à destruição.

    Em suma, o argumento civilizatório não nos ajuda. Daí o interesse em ouvirmos outras vozes que neste mesmo período se angustiavam com a possibilidade de uma nova guerra pouco tempo depois de outra ter terminado com o imenso rastro de destruição que deixara.

    NO MESMO PERÍODO, ROMAIN

    ROLLAND, que já se insurgira (quase sozinho entre os intelectuais franceses) contra a I Guerra Mundial, vê no horizonte um novo perigo de guerra, na ideia de uma Pan-Europa que exclui a Rússia e caminha cega para a guerra, tal como em 1914. Num texto intitulado Europe, élargis-toi, ou meurs!, (2) Rolland denuncia uma imprensa vendida aos interesses do capital e da guerra e ridiculariza os corifeus do hino “Europa, a minha pátria”, onde podemos reconhecer os antecessores de Josep Borrel. Um novo tipo de nacionalismo emerge que, depois de ter humilhado a Alemanha em 1919 (Tratado de Versalhes), se quer construir sem a Rússia e se fecha contra o mundo emergente da Ásia. Ao ler Rolland, e ao analisar a atualidade, não podemos deixar de concluir que já vimos este filme. E, tal como Rolland há cem anos, se esta é a Europa em gestação, declaro-me eu hoje anti- europeu!

    A sensação de impotência, bem patente na correspondência entre Einstein e Freud, está igualmente presente em Rolland quando ele lamenta que os intelectuais franceses, depois de um curto período de coragem cidadã, durante o Affaire Dreyfus (1894-1906), se tenham remetido a um silêncio cúmplice, quando não à apologia da loucura oficializada como política europeia. Algumas décadas depois, a União Europeia começou por seduzir os intelectuais que se acomodaram a um silêncio celebratório. Hoje, se eles quiserem romper o silêncio, são silenciados.

    Tal como hoje, o espectro da guerra estava associado ao espectro do fascismo. E também aqui as analogias entre os dois períodos, separados por quase um século, são assustadoras. O espectro do fascismo foi o que mais insidiosamente iludiu os intelectuais, incluindo os melhores. É esse o caso de Rabindranath Tagore, e a correspondência entre ele e Rolland é de novo iluminadora, uma correspondência prolongada (1919- 1940), feita de admiração recíproca e de algumas divergências profundas (3). Tagore visitou a Itália em junho- julho de 1926. Recebido com todas as honras de Estado e lisonjeado pelo acolhimento, Tagore declarou- se fascinado com Mussolini, que comparou a Napoleão ou a Alexandre, o Grande. Rolland, bem consciente de que os intelectuais confundem frequentemente amigos e admiradores com bajuladores e manipuladores, ficou tão angustiado com este “deslize” de Tagore que escreveu 50 páginas no seu diário a insurgiu-se contra o escândalo de Tagore ter sido convidado oficial de alguém “que incarna a mais brutal, mais opressiva e mais letal tirania”.

    Foi por pressão de Rolland que Tagore publicou uma longa carta no Manchester Guardian desfazendo o equívoco do seu suposto apoio a Mussolini. Em 11 de novembro de 1926, Rolland escreve a Tagore: “Sinto-me culpado por perturbar a sua paz ao desviá-lo da fé que teve no seu anfitrião italiano. Mas o meu único interesse é proteger a sua glória que é mais preciosa para mim que a sua paz.” E acrescentava pouco depois em carta a um assistente de Tagore: “Eu compreendo que a Europa de hoje – tão manchada de sangue – seja um território perigoso para um estrangeiro que a visita com curiosidade mas sem as suficientes precauções.” A cem anos de distância, o que podemos dizer é que a Europa de hoje é um território perigoso para os próprios europeus e sobretudo para aqueles que procuram assinalar as devidas precauções.

    HOJE DE NOVO ENTRE A GUERRA EO FASCISMO

    A história não se repete, mas os humanos esforçam-se por isso. E esforçam-se tanto que conseguiram acrescentar aos espectros do século passado um novo que torna os outros dois ainda mais assustadores. Refiro- me à iminente catástrofe ecológica. É um triângulo de morte, um triângulo sem enigma nem esperança, ao contrário do triângulo maçónico (nenhuma propaganda à maçonaria). Ao prestar recentemente homenagem a um velho líder nazi da Ucrânia, o Parlamento canadiano juntou a apologia do fascismo à apologia da guerra. Ao hipotecar o seu futuro numa guerra eterna que lhe foi encomendada, a Europa perdeu para sempre a liderança na transição climática. Pelo contrário, a Europa transformou-se num vasto laboratório de testes para novas tecnologias de guerra.

    Num artigo recente da revista do exército dos EUA sobre as lições da guerra da Ucrânia é feito um apelo a uma “inflexão estratégica” decorrente, entre outros fatores, da falta de combatentes para substituir os que morrem. (4) Segundo os autores, calcula-se que haja 3.600 “ocorrências” por dia (entre mortos, feridos e doentes) e que a este ritmo será impossível manter um nível adequado de combatentes. A solução está no recurso à inteligência artificial, no combate terrestre com veículos não tripulados.

    Será este o tipo de experimentação tecnológica que irá marcar o futuro da Europa? É bem possível, pois o autorizado Wall Street Journal noticiava, em 26 de setembro, num texto com o subtítulo “os fabricantes de armas estão a receber encomendas de armas para serem testadas no campo de batalha”, que “a guerra na Ucrânia é uma feira gigante de armas”. Tudo isto num contexto em que, segundo o New York Times de 28 de setembro, a linha da frente pouco mudou desde o início do ano e as tropas russas terão conquistado mais 500 quilómetros quadrados que as tropas ucranianas!

    Tanta morte, tanta devastação para isto? E por quanto tempo mais? Uma nova guerra eterna como a da luta contra o terrorismo no coração da Europa? Ou outra aqui bem perto no Mediterrâneo Oriental onde Israel acaba de encontrar o pretexto que procurava para a “solução final” do povo palestiniano? “Aqui bem perto”? Não, no coração da Europa. Sem alma nem memória, a Europa é incapaz de ver a semelhança entre as imagens de morte e de destruição no gueto de Varsóvia aquando do levantamento desesperado dos judeus em 19 de abril de 1943 e as imagens que nos chegam da faixa de Gaza.

    Gaza é Europa aqui e agora.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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