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      João Ricardo Dornelles

      (Professor de Direito da PUC-Rio; Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da PUC-Rio; membro do Instituto Joaquín Herrera Flores/América Latina; membro do Coletivo Fernando Santa Cruz)

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      61 anos do golpe militar de 1964: lembrar nossos mortos para que nunca mais aconteça

      Se eles ainda andam por aí é bom lembrar que também nós estamos aqui

      Ditadura Militar (1964-1985) (Foto: Evandro Teixeira / Agência Brasil)

      Mais um dia 31 de março, mais um dia 1º. de abril, afinal tudo se passou há 61 anos atrás naquela madrugada do dia da mentira. 

      Já são 61 anos daqueles acontecimentos dramáticos que mudaram a história do Brasil e afundaram o país em um longo período de trevas que durou 21 anos. Muita coisa aconteceu naqueles anos de chumbo, muita gente foi perseguida, muita gente perdeu o seu emprego, muita gente foi presa, muita gente foi exilada, muita gente foi torturada, muita gente foi morta, muita gente foi desaparecida: Rubens Paiva, Stuart Angel, sua mãe Zuzu, Fernando Santa Cruz, Eduardo Collier Filho, Mário Alves, Honestino Guimarães, Paulo Stuart Wrigth, Helenira Resende de Souza Nazareth, Vladimir Herzog, Manuel Fiel Filho, Oswaldo Orlando da Costa (Osvaldão), Iara Iavelberg, Marighella, Lamarca, Soledad Barrett Viedma e muitos mais tiveram o mesmo destino trágico. Também temos a multidão das vítimas desconhecidas, trabalhadores pobres, moradores das favelas, camponeses e populações indígenas chacinadas pela expansão das fronteiras agrícolas do agronegócio em formação e das atividades mineradoras. Foram 1.654 camponeses mortos e desaparecidos na ditadura, segundo um estudo coordenado pelo pesquisador da Universidade de Brasília (UnB) e ex-preso político Gilney Viana, número bem maior do que o constatado pela Comissão Nacional da Verdade. 

      Segundo Eugênia Augusta Gonzaga, do Ministério Público Federal e Presidente da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, passam de 10 mil o número de mortos e desaparecidos políticos no Brasil, número bem superior aos 434 listados no Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade, de 2014. Em relação às populações originárias, a Comissão Nacional da Verdade só conseguiu investigar dez povos indígenas chegando a uma estimativa, já que não existe números oficiais, de cerca de 9 mil mortos em decorrência de ações da ditadura. Todos os pesquisadores, entidades indígenas e movimentos de direitos humanos informam que os números são bem superiores. Um verdadeiro genocídio.

      Aos mortos e desaparecidos juntamos o grande número de torturados, exilados, demitidos, censurados (homens, mulheres e crianças) pelo regime ditatorial. O golpe de 1964 deu o sinal verde para a implementação da barbárie através de um modelo de desenvolvimento fundado nas práticas da acumulação primitiva permanente em nome de uma modernização autoritária e conservadora que concentrou a riqueza e acumulou capital nas mãos de uma burguesia colonial oligárquica e predadora. 

      Assim, para (des)comemorar essa data tão vergonhosa, lembrar os mártires do povo brasileiro e representar todo esse sofrimento imposto pelos bolsonaros da época, relataremos um caso que poucos conheciam e que pode ser tão simbólico como o de Rubens Paiva, a Chacina de Quintino. 

      O golpe militar começou na madrugada de 31 de março para 1º. de abril de 1964, instaurou um regime ditatorial, suprimiu direitos, prendeu, perseguiu, torturou e matou desde os seus primeiros dias. No entanto, a partir do dia 13 de dezembro de 1968, com a edição do AI-5, os generais-ditadores aprimoraram e ampliaram a sua política de extermínio das esquerdas, de quaisquer formas de oposição e do povo brasileiro. Era a fase da ditadura militar escancarada, com uma perseguição, iniciada no dia 1º. de abril de 1964, que se ampliou imensamente a partir de 1969. Foi o momento em que a repressão se expandiu, onde não apenas os militantes revolucionários e oposicionistas políticos foram perseguidos, mas também intelectuais, artistas, profissionais liberais etc. Foi o momento do exílio de Chico Buarque, da prisão e exílio de Gil e Caetano, da prisão de advogados de presos políticos como Heleno Fragoso. Também foi o momento da guerra suja, do terror de Estado, da criação dos DOI-Codis, da Operação Oban, das Casas da Morte, com a prática generalizada da tortura, das execuções e dos desaparecimentos. Foi o período em que desapareceram Rubens Paiva, Stuart Angel, Fernando Santa Cruz e muitos mais. 

      E foi assim que, no dia 29 de março de 1972, em uma vila de casas no subúrbio carioca de Quintino, na casa 72 do número 8988 da Av. Dom Helder Câmara ocorreu um episódio que muitos só vieram a conhecer décadas depois. Naquele dia os jovens militantes da organização VAR-Palmares, Lígia Maria Salgado Nóbrega, Antônio Marcos Pinto de Oliveira e Maria Regina Lobo Leite Figueiredo foram executados à sangue frio por agentes do DOI-CODI. Durante décadas esse episódio foi esquecido. Ninguém o conhecia, nem mesmo muitos dos que lutaram contra a ditadura militar. Foram mais de 41 anos para que a história fosse revelada após uma intensa investigação da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro (CEV-Rio). 

      Somente após a rigorosa coleta de documentos, provas, visitas no terreno, entrevistas com moradores do local e com o médico legista responsável pelos documentos sobre os óbitos, a CEV-Rio em conjunto com a Comissão Nacional da Verdade (CNV) realizou no dia 29 de outubro de 2013 o evento “Testemunho da Verdade”, onde foram escutadas as falas de Fátima Setúbal, Lília Lobo e Iara Lobo de Figueiredo, familiares e amigos das vítimas Antônio Marcos Pinto de Oliveira, Maria Regina Lobo Leite de Figueiredo e Lígia Maria Salgado Nóbrega, assassinados pelas forças militares. A CEV-Rio apresentou os resultados da investigação que revelou a verdade, desmoralizando a versão oficial de que teriam sido mortos em meio à troca de tiros, mostrando como os militares impediram que fossem divulgados os laudos cadavéricos que comprovavam a prática de tortura e as execuções. O que se confirmou foi que foram presos, espancados e executados no local, inclusive com o esmagamento das mãos das vítimas por coronhadas de fuzil. A investigação foi realizada pela jornalista Denise Assis, sob a minha responsabilidade como membro da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro. Vale a pena um pequeno parêntesis em relação ao trabalho de assessoria da Denise junto à CEV-Rio. A conheci naquele momento e imediatamente percebi que se tratava de uma das maiores e mais competentes jornalistas e pesquisadoras do mundo, sendo uma especialista nas questões referentes à ditadura militar no Brasil.  

      Voltando à pesquisa da CEV-Rio, o trabalho realizado demonstrou que se tratava de uma execução, com os três sendo mortos, após terem se rendido, com tiros na cabeça e que em nenhum momento os militantes efetuaram disparos contra as forças da repressão. A documentação referente à Chacina de Quintino foi cedida para a Comissão Nacional da Verdade. 

      Lembrar os 53 anos da Chacina de Quintino é um ato político de luta pela Memória, Verdade e Justiça que se junta ao filme “Ainda Estou Aqui”, à lembrança de outras vítimas da ditadura, seus familiares e contra os que continuam ameaçando as liberdades democráticas e os direitos humanos no nosso país. E é muito significativo que essa demonstração de repúdio à ditadura militar, aos ditadores e torturadores ocorra na semana em que o STF tornou réus os admiradores da barbárie Jair Bolsonaro e generais das forças armadas.

      Mais uma vez, no final de outro mês de março, é um dever da cidadania relembrar tudo isso para que ninguém esqueça e para que nunca mais aconteça. Se eles ainda andam por aí é bom lembrar que também nós estamos aqui.

      * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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