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Fernando Lionel Quiroga

É professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), na área de Fundamentos da Educação. Doutor em Ciências pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)

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A Argentina sob nova ameaça colonialista: a greve geral

A solução pela loucura

Greve em Buenos Aires contra o governo de Javier Milei 24/01/2024 (Foto: Télam)

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O que pode explicar a greve geral na Argentina, uma vez que o pacotão de reformas ultraliberais sempre esteve na mira do governo eleito, e o que se esperava era exatamente a sua materialização? Mas, o que parece uma contradição nada mais é do que o andar da fila puxada por Donald Trump, de presidentes, como o resultado de um fenômeno do que podemos chamar, fazendo eco ao pensamento do filósofo sul-coreano Byung Chul-Han, de “presidente-meme”. Javier Milei é uma dessas figuras cuja aura misteriosa de sua biografia não passa de um artifício tecnicamente desenvolvido para atrair o maior número de pessoas. Sabemos, desde o Império Romano, o poder de atração da excentricidade. Ora, em uma sociedade brutalmente massificada - não se engane quem pensa que os quinhentos canais do streaming (a mídia em fluxo contínuo) ou as quinquilharias da Amazon ou Mercado Livre preenchem nossos desejos e idiossincrasias mais secretas; antes, são nada mais que variações de um mesmo tom - aquele que se apresenta como verdadeiramente “excêntrico”, produz uma atratividade irresistível sobre si. Tal é o efeito místico que paira sobre figuras como as de Trump, Bolsonaro, e agora Milei. Literalmente, são eles os “salvadores da pátria”; justamente eles, os livres de uma racionalidade falida. São os “loucos” (será gratuito o apelido de Milei?), os escolhidos por Deus, únicos capazes de lidar com forças ocultas do miserável mundo dos homens - de um mundo sem saída pela via da razão. E é sobre eles, portanto, que se deposita a última fé diante de um mundo cujas soluções tornam-se a cada dia mais difíceis e distantes. Diante de um mundo cuja razão desfalece a cada segundo, o “louco” mostra-se como a única figura capaz de nos salvar do eminente colapso global. 

Os enredos da mentira e o espectro digital

Decorre da novidade deste fenômeno o tipo de arma envolvido na construção e retroalimentação dos poderes que tais personagens alcançam: as redes sociais. E, vejam: redes sociais não são “Ágoras digitais”, mas espaços regidos por um conjunto de regras computacionais projetados para determinar quais conteúdos são exibidos no feed de notícias de um usuário. Em uma palavra, são regidos por algoritmos e, portanto, ajustáveis a uma determinada direção. A gravidade disso é que quando os debates importantes passam a ser feitos é porque, na maior parte das vezes, as ideias que circulam na rede já aterrissaram ao mundo real e seus efeitos passam a ser percebidos fisicamente. Como a “ansiedade” é o estado de espírito normal do homem no atual estágio do capitalismo, a irracionalidade (como característica central da ansiedade) torna-se o elemento que predomina na atual sociedade. Ansiedade, do latim “anxietas”, significa angústia, preocupação, inquietação. A ansiedade como manifestação do espírito de um tempo nos aproxima da ideia de uma sociedade angustiada, que se antecipa sobre um mal imaginado. 

Não mais diz respeito a uma experiência fundamental da existência humana, em sentido kierkeegardiano, mas coloca-se como “fato social”, como fenômeno predominante nas relações sociais. A ansiedade, assim, imprime uma força sobre o indivíduo contra si mesmo. O sujeito ansioso é aquele que, substituindo a contemplação ou a resolução de um problema, qualquer que seja, desiste por antecipação, mudando o canal ou rolando a página do celular. A ansiedade é o estado bruto da compulsão à repetição e, não obstante, a principal característica do homem contemporâneo. É o ponto de contato entre civilização e barbárie. Na condição de ansiedade o pensamento torna-se impossível. A lógica subsume-se a uma prótese sempre à mão para substituí-la. Já não são as imagens do cinema, como na observação de Walter Benjamin, que escapam de nós a cada momento em que desejaríamos capturá-las; a própria vida se converteu numa espécie de cenas descontínuas, pedaços desesperados. Somos diariamente convencidos de um tipo de felicidade e liberdade que nunca se realiza; embora mantenha-se acesa a esperança de que poderá ser encontrada na próxima mordida de um hambúrguer gourmet, no encontro artificial via aplicativo, na compra de objetos inúteis ou de sapatos que não serão usados, na busca de um rosto deformado pelos efeitos de filtros e de botox. A ansiedade não é esse sacudir de pernas cuja tomada de consciência não produz nada além de um leve comentário irônico. Ela é a própria religião do capitalismo. É a ansiedade o nosso leitmotiv em direção aos deuses do capital. 

Como resultados deste estágio, presidentes flutuantes e exóticos, títeres do capitalismo, emergem como consequência imediata da ansiedade. Presidentes desta natureza são semelhantes a um produto que termina por ser abandonado antes mesmo de seu uso: por não atenderem a um desejo real, tornam-se obsoletos assim que a realidade os toca: são como aquele tênis amarelo, arrogante e cafona que em um momento de vacilo produzido sob o efeito de uma música ou um cheiro, ou por um efeito fisiológico de mascar um chiclete, um devaneio industrial, por assim dizer. O que estes produtos fazem conosco é a produção do arrependimento como sentimento imediato após a compra. Isto resulta da ansiedade. A ansiedade como compulsão à repetição. Presidentes de última hora, como Bolsonaro e Milei, tendem a produzir arrependimento por uma razão inequívoca: é que neles encontra-se encarnada o paradigma da ansiedade. E ansiedade enquanto paradigma social é o oposto de democracia.

Presidentes ultraprocessados

Neste sentido, o ultraprocessado presidente Javier Milei é a razão pela qual seu tempo de validade já está vencido. Nos próximos capítulos da política Argentina, a população terá de conviver com um representante estranho à democracia, um hospedeiro, por assim dizer, que se encontra instalado nos pulmões de uma democracia doente. Isso explica o porquê da greve geral da Argentina ser uma consequência esperada dos primeiros movimentos de governo do presidente eleito. É que somente depois de adquirido o produto é que pode surgir o arrependimento: é a técnica comercial incorporada no âmago das democracias - é o algoritmo do capitalismo. E, note-se, não há fracasso na greve, como querem disseminar diversos serviços de desinformação pelas redes. A greve é legítima e deve se prolongar. A paralisação, que tem afetado tanto serviços de transporte terrestre, marítimo e aéreo, bem como instituições de ensino, reflete o descontentamento da população à Lei de Bases (ou Lei Omnibus), recentemente aprovada na Câmara dos Deputados e que deve ser brevemente apreciada pelo Senado. Não obstante aos desastres previstos na nova lei, como desregulamentações em questões administrativas, econômicas, trabalhistas e previdenciárias, é crucial e urgente o debate sobre o que efetivamente está em jogo no futuro do país. E aqui retomamos o argumento de que a “nova cortina de fumaça” não se apresenta mais exclusivamente pelo engodo, pelo artifício, mas pela captura da atenção em razão de outros assuntos de pauta que afetam frontalmente a vida e que, por isso, atuam como sugadores de toda a atenção do debate público. A “nova cortina de fumaça” se expressa pelo disparo de choques sucessivos de alta intensidade, com o objetivo de levar adiante o projeto colonialista.

A verdadeira razão da greve

O outro lado da greve geral é a razão de ser da ideologia da miséria que compõem a primeira camada. É a supressão da soberania como efeito imediato do colonialismo avassalador que se avizinha. Recentemente, em 12 de Abril, o oligarca Elon Musk e Javier Milei concretizaram o encontro publicizado desde janeiro do ano passado por meio do veículo particular de comunicação do magnata, o “X” (antigo Twitter).  Como postou um leitor em um comentário sobre a notícia em um jornal do país: “Ya está ajustando los detalles del saqueo del litio Argentino. Es tan cipayo y traidor que ni siquiera lo disimula”. Isso é quase, mas não é tudo, especialmente se lembrarmos a famosa frase de Musk referindo-se à Bolívia sobre o interesse do bilionário em impedir que o ex-presidente Evo Morales continuasse no poder: “vamos dar o golpe em quem quisermos". Lide com isso!”

A Argentina é o segundo maior produtor de lítio do mundo e compõe o “triângulo do lítio” ao lado do Chile e da Bolívia. Com vastas reservas localizadas principalmente na região de Salta, Jujuy e Catamarca, no noroeste do país, a Argentina é a bola da vez das ameaças colonialistas na região. No “X” de Elon Musk em resposta à Javier Milei,

após seu discurso em Davos, o milionário postou a imagem pornográfica de um casal nu em uma cama, com uma mulher de costas para a câmera e um homem deitado, segurando um laptop. No laptop, aparece a imagem de Milei durante o discurso no "World Economic Forum". Uma imagem que nos dá margem à interpretação de que Milei seria a fonte de prazer a partir da exploração da dimensão corpórea (a extração colonialista do lítio argentino representado pelo corpo da mulher). Este é o plano subcutâneo do mal-estar que paira no povo argentino, impelindo-o a sair às ruas. Esta é a verdadeira pauta; a pauta central que deveria orientar o debate sobre a posição da Argentina no atual tabuleiro global pela corrida comercial do “ouro branco”, o elemento chave para a produção de baterias de íon-lítio na transição energética em curso.

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