A ausência é a forma mais poderosa de presença
"Toda a narrativa da prisão ficou com Lula. Ele a fez, ele a comandou, ele a escreveu. É daí que vem o desespero generalizado que a imprensa concessionária vivencia em longa agonia histórica (eles só logram êxito no submundo do poder; é muito, mas é 'nada', comparado a Lula): ela não consegue - com toda a sua estrutura, dinheiro e favores - ganhar a narrativa de Lula", diz o colunista Gustavo Conde; "A vigília histórica, permanente e democrática por Lula deve continuar e deve agregar mais significados além daqueles que já tem. Deve ser uma vigília territorial e simbólica, que ocupe os espaços do tecido discursivo, exatamente como Lula fazia"
Depois de tantas vezes que escrevi sobre Lula, tantas vezes que deixei a emoção tomar conta do meu texto, tantas vezes que fui buscar no âmago da história uma cifra, um sentimento, um fato, uma cor que desse a dimensão deste agente máximo da democracia, depois de tantos textos, esperanças, chamamentos, alertas, celebrações, relatos e contenções narrativas para controlar o ímpeto ou o ceticismo, no eterno jogo das acelerações e desacelerações que gerencia nossa percepção de mundo, vejo-me diante do impasse de testemunhar o momento fatídico de uma prisão criada para alimentar os desígnios fascistas do prolongamento do golpe de estado que parasita o nosso sistema político.
Não é fácil escrever diante de mais uma ruptura social em flagrante desacordo com o ordenamento jurídico. Ontem, o Brasil parou. Ontem, o Brasil deixou sua habitual indiferença de lado e mergulhou no espírito daquele que encarna a síntese de sua história, na personagem principal de todo e qualquer roteiro que se possa redigir a partir de todo insumo social desta terra. O Brasil entrou em vigília e está em modo de vigília. Uma vigília diferente, uma vigília de um povo inteiro, uma vigilia que pode demarcar, afinal, a nossa alvorada como nação interrompida, sufocada pelo próprio esplendor de seu berço escravocrata.
A palavra 'vigília' tem um significado muito preciso, para além de sua acepção clássica, de mobilização quase religiosa. Nos estudos da psicanálise, 'vigília' se opõe a 'onírico', a dimensão que representa o mundo dos sonhos, o mundo do inconsciente, o portal do sono profundo.
A vigília histórica permanente
A vigília para Lula tem seu significado, entre outras coisas, calcado no gesto de 'acordar', de abandonar o universo onírico – artificial – que foi instalado no Brasil por uma emissora de televisão e por toda a rede de imprensa concessionária. Em outras palavras: Lula preso significa o obrigatório despertar de uma nação para com sua própria história e para a restauração de uma sociedade que não aceita mais ser subjugada por uma elite tão primária em suas ações arbitrárias e fraudulentas.
É por isso que a palavra 'vigília' é importante para significar esse momento. O país entra novamente em um processo disruptivo, mas a dimensão humana deste protagonista que nos conduz a narrativa é tal, que a ruptura nos 'acorda'. Lula preso é um soco factual, um despertador histórico, um alerta, um chamamento à ação, um estralar de ossos, um convite ao desjejum - ao desjejum histórico caracterizado pela fome simbólica decorrente da desinformação.
O mundo onírico do Jornal Nacional tão bem retratado pelo artista Nuno Ramos em sua obra conceitual "Lígia" – uma instalação digital com os frames do jornal adaptados para representar a canção de Tom Jobim, numa vertigem de edições, que foi ao ar ao vivo no Youtube no mesmo horário do jornal em setembro do ano passado – é o mundo que começa a correr riscos com a prisão de seu maior inimigo simbólico. Sem enunciados de Lula para distorcer e alimentar o sonambulismo do telespectador-padrão, esse mundo anestesiado e submerso do Brasil carnavalesco pode entrar em colapso e ser obrigado a 'acordar'.
A alvorada do brasileiro
São simbologias e palavras que invadem o cenário político de maneira decisiva como sempre sói acontecer em momentos extremos. Quando a sociedade "treme", a cadeia significante – todo o conjunto de palavras e enunciados que compõem o tecido linguístico da nossa experiência social – também sofre "tremores".
É preciso entender minimamente e ocupar esse lugar de compreensão e absorção simbólica dos enunciados e palavras que circulam de maneira errática no interior da cena política. Quem codificar primeiro esses processos, sairá na frente na tarefa de lograr êxito no espaço simbólico de disputa de sentidos históricos que são o substrato da civilização, para o bem ou para o mal.
Não se pode, além do mais, confundir essa leitura dos sentidos em jogo com o trabalho que faz o marqueteiro ou o publicitário – que também lidam diretamente com os sentidos disponíveis do embate público. A proposta que se coloca aqui, nesta reflexão, é observar com rigor teórico mas com liberdade intelectual e criativa, os sentidos das palavras que atravessam o nosso tempo de maneira mais invasiva e expressiva.
A revolução não se faz só com ocupação das ruas e, eventualmente, com o voto. A revolução se faz com a ocupação dos sentidos, com a formulação de ideias e propostas e com a desapropriação cirúrgica de significados que operam em favor de interesses classistas. Quem se utiliza, ainda que de maneira um tanto desorganizada e fraudulenta desse dispositivo é a imprensa concessionária brasileira.
A análise do discurso francesa como instrumento de resistência política
A imprensa concessionária brasileira obriga diariamente seus consumidores-leitores a aceitarem um conjunto de pressupostos falaciosos e fantasiosos. Um pressuposto nada mais é que um sentido. Por exemplo, se um jornal estampa a seguinte manchete: "Condenação histórica: Lula preso", ele está disputando o sentido de "história".
Ele obriga seu leitor a aceitar que aquilo que está diante dele é um fato histórico, mas não só: é um fato positivamente histórico. Esse sentido positivo pode ser recuperado pela memória da palavra 'histórica'. Naquela manchete, 'histórica' é sinônimo de 'maravilhosa' e não de algo que simplesmente pertence à história.
Este tipo de análise se chama "análise do discurso", mais precisamente "Análise do Discurso Francesa", um campo do saber independente fundado por um linguista francês chamado Michel Pêcheux. Para se discutir suas premissas e formulações é preciso conhecer minimamente a linguística, a psicanálise e o marxismo. Não cabe aqui, portanto, esmiuçar mais detida e tecnicamente o enunciado acima arrolado. Trata-se, apenas de um exemplo para deixar claro que lidar com as palavras e com os enunciados não é uma tarefa óbvia nem simples.
Ocupando espaços de sentido
Ora, posto isso, invoco mais uma vez a palavra 'vigília' como ponto de inflexão histórica que se coloca de maneira irresistível neste preciso momento o nosso país. Não só rastreio esse sentimento latente, mas também tenho a liberdade intelectual para propô-lo. Como disse acima, sentidos se disputam. Eles não nos são dados a priori como a imprensa concessionária quer nos fazer crer diariamente.
Para que se haja resistência democrática, é preciso que ocupemos todo o espectro físico e simbólico que torna a sociedade tal como ela é. Nós somos seres predadores de sentido, precisamos do sentido para sobreviver, ele é o nosso alimento mais importante, ainda que metafórico – porque simplesmente não somos "animais".
É exatamente por isso que Lula foi preso. A inteligência diferenciada de Lula fez com que ele sempre se colocasse como uma ameaça a esse regime de sentidos pré determinados pela imprensa concessionária que atuava e atua de braços dados com os interesses nada republicanos do darwinismo econômico e social.
Toda essa tese ainda pode explicar a animalização de um segmento conservador – que não consegue formular hipóteses nem lidar com a complexidade dos sentidos sociais e que, por isso, recorre fatalmente à violência; e por outro lado, ela pode explicar a perseguição histórica a Lula que, durante 40 anos de vida pública, produziu, formulou, dialogou, compreendeu, acolheu, negociou sentidos e enunciados Brasil e mundo afora.
Lula: o gerenciador de sentidos
Lula não é apenas esse cara genial e popular amado por mais da metade do país. Lula é um acontecimento na arte de gerenciar o próprio sentido das palavras e dos discursos. Ele é, de fato, um ser além de seu tempo e além das limitações técnicas que nos são impostas pela evolução natural da história e da sociedade.
É um analista de discurso, um psicanalista, um publicitário, um estrategista, enfim, um manancial de senhas e operações complexíssimas de persuasão e realização subjetiva, política e histórica. Não há precedentes no mundo para sua atuação enquanto ser humano e enquanto ser político.
É esse 'monstro' que assusta tanto nossa limitadíssima elite que só conhece a arte da violência e do encarceramento como soluções viáveis para uma sociedade controlada. É esse 'monstro' que precisa ser eliminado, preso, morto, enterrado, superado, aniquilado. É esse monstro que precisa ser destruído simbólica, física, territorial e emocionalmente.
Não admira que, 40 anos de perseguições depois, a elite brasileira tenha finalmente conseguido 'aprisioná-lo': se ela fosse "competente" ou minimamente "inteligente", Lula nem teria saído do Sindicato dos Metalúrgicos em 1978. Sua vida teria sido abreviada ali, como tantos outros que tiveram a vida abreviada pela ditadura militar – que aliás se assanha novamente.
Como enfrentar tamanha dimensão humana?
Lula resistiu 40 anos, ainda foi presidente e fez a sua sucessora, uma mulher que foi torturada e presa pela ditadura. Não há parâmetro no mundo para uma atuação nesse nível político de desafiar os 'sistemas'. Diga-se, de passagem: Lula fez tudo isso através do voto e pela democracia. Nunca optou pela força bruta.
Como enfrentar um homem desses? Como vencer uma ideia dessas? Como ganhar espaço social com um 'monstro' desses à solta, seduzindo o mundo inteiro com sua simplicidade, sua história, sua origem, sua força, sua fala, seu sorriso, sua emoção, sua inteligência, sua generosidade, sua capacidade de mobilização, sua coragem, seu desapego, seu apreço e seu amor descomunal pelo seu povo? Como?
Prova cabal – aliás, ele também parece ser o único que prova o que diz e o que faz – dessa monumentalidade sígnica é o domínio completo que Lula teve do protocolo de sua prisão.
Também já é fato histórico – agora sim, 'histórico' no sentido de 'espetacular' e não no sentido de 'vingança' – que a reação popular provocada por sua prisão é sem precedentes no mundo. Lula comandou sua própria prisão. Quase teve pena dos policiais que foram ao sindicato na esperança de conduzi-lo às dependências da polícia federal. Saiu a pé, para poupar-lhes tempo. Quem tem esse poder?
Lula venceu mais uma vez
Toda a narrativa da prisão ficou com Lula. Ele a fez, ele a comandou, ele a escreveu. É daí que vem o desespero generalizado que a imprensa concessionária vivencia em longa agonia histórica (eles só logram êxito no submundo do poder; é muito, mas é 'nada', comparado a Lula): ela não consegue - com toda a sua estrutura, dinheiro e favores - ganhar a narrativa de Lula.
Um ser humano único, de carne e osso, desafia o poder de uma Rede Globo inteira, servida das mais suculentas verbas de publicidade vindas diretamente do caixa de um governo golpista lá instalado por ela. Ou seja: a expropriação perpétua do nosso dinheiro de contribuinte através da articulação midiática de 2013 não foi suficiente para viabilizar uma vitória simbólica sobre um indivíduo perseguido.
É por isso que quero insistir hoje aqui nesta coluna: a hora de sermos o Lula inteligente, articulador, narrador e persuasivo, mais do que nunca, chegou. 'Ser' o Lula não é apenas "amá-lo"; é compreendê-lo e tentar, na medida do possível, colocar em prática o seu maior talento: o talento simbólico de disputar narrativas e vencer.
Não pensem vocês que Lula está tombado. Muitos já sabem que é exatamente ao contrário. Lula, ontem, foi alçado à categoria de legenda universal da civilização. Repito: não há precedentes no mundo para nada do que ele fez ou representa. Digo do fundo do coração e com todo o respeito – e peço vênia sentida aos apaixonados pelos célebres herois estrangeiros: não tem Mandela, não tem Che Guevara, não tem Fidel Castro, não tem Churchill, não tem Lincon, não tem Mao, não tem Lênin. Lula é maior do que todos eles. E isso deveria ser motivo de orgulho para nós brasileiros.
O momento exige mobilização, mas mobilização com análise e compreensão do cenário. Com Lula momentaneamente fora de cena, o que mais nos fará falta é sua palavra, é sua conexão com a palavra. A mera voz rouca de Lula já fazia Globo e toda a imprensa corporativa tremer nas bases. Isso, por ora, estará suspenso.
A vigília histórica, permanente e democrática por Lula deve continuar e deve agregar mais significados além daqueles que já tem. Deve ser uma vigília territorial e simbólica, que ocupe os espaços do tecido discursivo, exatamente como Lula fazia.
Uma diferença abissal que Lula tem de todos os agentes políticos e mesmo seus apoiadores é: Lula tem uma autoestima avassaladora. Sem autoestima, não se conseguirá nem começar a disputas os significados das palavras e dos enunciados centrais dessa disputa épica que se desenrola no Brasil.
Por isso, é importante que todos aqueles que valorizam a resistência democrática e que compreendem o que são as liberdades democráticas se mobilizem em torno desta expertise complexa de gerenciamento de sentidos e de discursos que Lula deixa como legado parcial. Legado parcial, porque, não se enganem: Lula está mais forte e presente do que nunca.
* O título deste artigo faz referência a uma frase de James Joyce.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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