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    Alexandre Aragão de Albuquerque

    Escritor e Mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual do Ceará (UECE).

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    A bispa falou

    O discurso da reverendíssima Budde é mais do que um alerta para a gravidade do tempo presente

    Mariann Edgar Budde (Foto: Reprodução (YT))

    1. Quando analisamos o aspecto concreto das realidades sociais, ou seja, as forças produtivas de que uma sociedade dispõe para agir sobre a natureza que a cerca, constata-se que há dois componentes intimamente ligados entre si: uma parte material (os bens da natureza, as ferramentas, a própria força humana) e outra parte ideal (as representações da natureza, as regras da convivência social, a legitimação da distribuição desigual do produto social). Tais representações são indispensáveis para a mobilização destes meios materiais, a qual se efetua por conjuntos de ações encadeadas que constituem aquilo que é chamado por processos de trabalho. 

    Estas representações, conforme atesta o antropólogo Maurice Godelier, só fazem sentido no interior de um sistema ideológico que define e legitima uma certa repartição de todas as tarefas necessárias à reprodução social entre os indivíduos e os grupos que compõem uma sociedade (homens/mulheres, velhos/jovens, senhores/escravos, aristocracia/plebe, clérigos/leigos, capitalistas/proletários). Este sistema de valores constitui um dos efeitos da divisão do trabalho no jogo desigual das relações de produção. (Carvalho, Edgard de Assis (org.). GODELIER: antropologia. São Paulo: Ática, 1981). 

    Assim, afirma Godelier, estas realidades ideais aparecem não como efeitos no pensamento das relações sociais, mas como um dos seus componentes internos necessários, condição tanto da sua formação como da sua reprodução. 

    Isto fica bem visível no caso das atividades religiosas. No Egito Antigo, o faraó era considerado um deus que reinava entre humanos, uma encarnação temporal e ressureição permanente de Hórus, filho de Osíris, senhor da terra e da vida dos seus súditos. 

    Estas realidades ideais, ao mesmo tempo, legitimavam o poder do faraó como serviam de princípios para organizar o império egípcio, dividindo as tarefas e as obrigações materiais e espirituais, fazendo os camponeses trabalharem para a glória dos deuses, do faraó e de todos aqueles que dele recebiam poder e riquezas. Ou seja, as ideias não são neutras, nem aparecem como uma instância separada das relações sociais. 

    E para que a religião domine os espíritos e a vida social são necessárias algumas condições a mais para que ela se torne uma forma de soberania. É preciso que a religião se tenha tornado a forma das relações de produção e um de seus componentes internos. 

    2. Em janeiro de 1942, realizou-se num subúrbio de Berlim (Alemanha), a Conferência de Wannsee, convocada pelo general Heydrich, para a aprovação, pelo corpo dirigente nazista, da Solução Final a ser aplicada em toda a Europa objetivando o extermínio de 11 milhões de judeus. A reunião foi secretariada por Adolf Eichmann, com duração de apenas duas horas. 

    A centralidade da ideologia nazista consistia em considerar o povo judeu como não-humanos, como uma doença contaminadora da raça ariana, superior a todos os povos da terra, segundo apregoava a fé nazista alemã de então, cujo Fürher (o Guia) Adolf Hitler era cultuado como um escolhido de Deus para realizar esta missão divina de eugenismo racial. 

    Para Hitler, o triunfo ariano alemão, supremacista branco masculino, exigia que as vítimas por ele torturadas fossem levadas à ratoeira humilhadas, sem capacidade de protestar, renunciando e abandonando sua condição humana. O sistema nazista alemão visava destruir suas vítimas antes de sua eliminação final nos campos de extermínio. Tal destruição precoce era considerada como excelência para manter um povo escravizado na construção do Terceiro Reich. 

    3. No 20 de janeiro de 2025, dedicado à memória do negro e mártir das causas civis Martin Luther King Jr. (1929 – 1968), Donald Trump tomou posse como presidente dos Estados Unidos. A exemplo de Hitler, Trump em suas primeiras palavras, no discurso de posse, afirmou que irá colocar os Estados Unidos em primeiro lugar no mundo, atacando diretamente o sistema de Justiça de seu país. 

    Em seguida, a exemplo de Bolsonaro, disse ser salvo do atentado à bala pela Providência de Deus, para tornar a América grande novamente. 

    Para isso, seu primeiro ato foi decretar Estado de Emergência Nacional da Fronteira Sul visando promover “a devolução de milhões e milhões de estrangeiros”, considerados por ele como criminosos, invocando uma Lei de 1798: Alien Enemies Act 1798.

    Outra emergência nacional decretada por ele foi: “drill, baby, drill”. Ou seja, resgatando o slogan da conservadora Maryland Steele, em 2008, ele afirmou que os EUA, por meio de uma nova onda de perfurações de poços petrolíferos, terão a maior quantidade de petróleo e gás de qualquer país da Terra. Para isso ele extinguirá o Green New Deal, um plano abrangente proposto pelo Estado norte-americano para transitar para uma economia verde e sustentável, reduzindo as emissões de gases de efeito estufa a zero até 2050. 

    Ainda disse: “A partir de hoje, será política oficial do governo dos Estados Unidos que existam apenas dois gêneros: masculino e feminino”. “Criaremos uma sociedade baseada no mérito”. “Construíremos novamente as Forças Armadas mais fortes que o mundo já viu”. “A América reivindicará seu lugar de direito como a maior, mais poderosa e mais respeitada nação do planeta, inspirando respeito e admiração de todo o mundo”. “E dentro de pouco tempo, mudaremos o nome do Golfo do México para Golfo da América”. “Vamos tomar de volta o Canal do Panamá”. 

    Ao todo, em apenas dois dias, Trump assinou 78 revogações e ordens executivas (decretos presidenciais) localizadas nas áreas de segurança fronteiriça e imigração (reativação da construção do muro na fronteira com o México, fim do programa de proteção a imigrantes menores de idade, retomada da separação de famílias na fronteira); energia e meio ambiente (retirada dos EUA do Acordo de Paris, permissão para exploração mineral em áreas indígenas, revogação de normas de emissão de gás carbono para veículos automotores); políticas sociais e diversidade; políticas públicas de saúde; justiça e direitos civis (redução do programa de reabilitação de presos, proibição do ensino da teoria crítica da raça em escolas públicas, cancelamento de programas de fiscalização de crimes de ódio). 

    Por fim, no espetáculo da posse presidencial, televisionada para todo o planeta, fato de forte teor simbólico foi protagonizado pelo novo Chefe do Departamento de Eficiência Governamental, Elon Musk, doador de US$250 milhões para a campanha de Trump, ao acenar com a saudação nazista, ao final de seu breve discurso. Uma temeridade! 

    4. Mas na cerimônia religiosa ecumênica da posse presidencial, realizada na Catedral de Washington, a Bispa anglicana Mariann Edgar Budde não se calou. Pela constatação do medo que paira entre comunidades de imigrantes, como dentro de comunidades LGBT’s, em sua homilia ela falou olhando nos olhos de Trump: “Milhões confiaram em você. Como você disse à Nação, ontem, você sentiu a mão providencial de um Deus amoroso. Em nome do nosso Deus, peço-lhe que tenha misericórdia das pessoas do nosso país que estão assustadas agora. Existem crianças gays, lésbicas e transexuais em famílias democratas, republicanas e independentes, algumas das quais temem pelas suas vidas. E as pessoas que colhem nossas plantações, limpam nossos escritórios, que trabalham em granjas e frigoríficos, que lavam a louça depois que comemos em restaurantes e trabalham em turnos noturnos nos hospitais, elas podem não ter a documentação adequada, mas a grande maioria dos imigrantes não são criminosos. Peço-lhe que tenha misericórdia, Senhor Presidente, daqueles em nossas comunidades cujos filhos temem que seus pais sejam levados embora, e que ajude aqueles que estão fugindo de zonas de guerra e de perseguição em suas próprias terras a encontrar compaixão e acolhimento aqui”. 

    O discurso da reverendíssima Budde é mais do que um alerta para a gravidade do tempo presente. É um claro chamado à união dos povos da terra em defesa da vida no Planeta. Ao mesmo tempo que nos provoca a não fecharmos os olhos nem selarmos os ouvidos para as ameaças da banalidade do mal em andamento. Pois, paradoxalmente, não podemos olvidar a pavorosa prece daquele frade franciscano, professada em celebração eucarística, no dia 08 de outubro de 2022, após o primeiro turno da eleição presidencial, afirmando abertamente, em rede mundial pela internet, durante a homilia, na sua Capela Matriz, em Guaratinguetá-SP (Brasil): “Para o nosso trabalho, a direita [Bolsonaro] é melhor”. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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