A bofetada de Ciro
Ciro talvez encarne o primeiro neocoronel nordestino, pertencente à nova cepa de um coronelismo turbo, jovem, digital e midiático
‘Merecimento’, coisa que muita gente alega ser credora, costuma ser, na filosofia, algo bem safado. Quando não apenas piegas. Mas alguns merecimentos até que acabam sendo razoáveis. Já outros, saborosos mesmo.
O sujeito sai de sua esfera existencial desconhecida para, buscando sensacionalismo, fazer um vídeo de Youtube e se meter na de Ciro Gomes. Logo quem. Xinga-o, do nada e espontaneamente, visando uma lacração de internet, afinal Ciro é famoso. Em retorsão imediata bruta, leva uma bofetada. Aí clama ao povo presente, buscando a praga desta modernidade brasilenha: seguidores. Choraminga que Ciro lhe bateu. Mas vai dormir com a bofetada.
Bofetadas costumam ser coisa ruim. Uma avó minha deu algumas no filho já médico e em minha mãe, já adulta. Registre-se que ninguém saiu ‘ferido’. Todos ali nordestinos, minha avó tipo Ciro Gomes. Antigamente isto era autoridade, agora querem como violência, se possível com sensacionalistas manchetes. O bom e verdadeiro conceito de autoridade empobreceu. Para os dândis, virou autoritarismo. Então tá.
Ciro talvez encarne o primeiro neocoronel nordestino, pertencente à nova cepa de um coronelismo turbo, jovem, digital e midiático, mas, diferentemente do coronelismo velhaco e ladro, é culto, rápido e bem formado. No argumento, no vôlei verbal é difícil bater Ciro. Por isso boa parte da imprensa que não se cria muito com ele, torce a cara.
Mas aí o sujeito lá, o esbofeteado, que não se sabe quem é, provoca Ciro. Para um ‘debate’. Bem, debate é dialética, coisa que com a sociedade da lacração, pouca gente consegue. Mas, vá lá. O rapaz provoca e não consegue seu intento, aí comete e consuma, classicamente, o crime de Injúria, Código Penal, artigo 140. Este delito admite a retorsão imediata, um xingamento reverso e imediato pela vítima originária. Jamais, obviamente, uma agressão física. Só que ofender um ‘coronel’, cearense, político, com couro grosso em debates e trocações verbais, à distância de um braço do ofendido, pode ser uma decisão pouco inteligente. Para o esbofeteado foi.
Agora, ele pode, se dispuser de dinheiro para tanto, contratar advogado e mover ação penal contra um Ciro. Isto se o advogado não lhe aconselhar a desistir da ideia. Correndo. Se sua intenção era causar, lacrar e fazer filminho de youtube, talvez tenha conseguido. Se era obter seus 15 segundos de ‘fama’, tudo bem. Outra dimensão seria a tal ação penal por esta bagatela esbofeteatória aí cireana. Parte da imprensa patrulhadora ‘quer’ Ciro violento. Além de a violência vender, no geral, o estigma também vende.
Há quem queira que Ciro possa ser o ‘grande prejudicado’. Talvez ele respondesse com vontade de riso: – Que medo!
É ocioso à inteligência mediana ‘precisar’ registrar que violências não se justificam blá-blá-blá. Violências são causas que deságuam no Código Penal como agressões a ‘bens jurídicos penalmente relevantes’, expressão que o jurista alemão Claus Roxin e outros exigem que só quando este bem jurídico seja verdadeiramente grave é que se dê uma norma jurídico-penal regulando para punir a situação.
A honra, por exemplo, na filosofia do alemão Peter Sloterdijk será vista, promissoramente, como ‘narcisismo social da burguesia’. Mas isto é filosofia, ainda que possa irritar formalistas, respeitosos e outros autoritários de plantão. Porém, ‘usar’ a honra como biombo altruístico continua dando ibope, principalmente entre novos conservadores deste Brasil reinventado nos últimos anos.
Assim, antes de alguém querer lacrar, causar, sensacionalizar, provocar, mas, sobretudo, consumar tecnicamente o bom e velho crime de Injúria, é razoável que analise se a reação da vítima não poderá ser ‘desmedida’. Tentar a prática com um Ciro Gomes, à distância de um braço, não é, de verdade, aconselhável. O mesmo valerá, noutro exemplo longe, para um marmanjo que faça uma ‘gracinha’ para uma menina de 10 anos de idade, ao lado de sua feroz leoa, popularmente conhecida como ‘mãe’. O gracioso correrá o risco de receber uma cadeirada na testa. E não vão adiantar politicamente corretos de plantão quererem condenar a mãe, dizendo que ela ‘exagerou’.
Para quem não é da área, vale saber que há 3 conceitos estudados cientificamente no Direito Penal, considerados pelo juiz para efeito de pena: motivo de relevante valor social ou moral; sob domínio de violenta emoção; injusta provocação da vítima. Um crime ou contravenção, bofetada, que seja, numa dessas configurações típicas dará em nada. No máximo um ai-ai-ai jurídico.
Às vezes, quem fala o que quer, não apenas ouve retorsões, pode apanhar.
PS. Pra não dizer que não falei das flores: Use EPI; beba com moderação; verifique se o elevador está no andar antes de entrar; no trânsito escolha a vida; diga não à violência.
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