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Guilherme Paladino

Jornalista do 247, atualmente morando em Pequim. Graduado pela Unesp, tem passagens pelas áreas do esporte (Nosso Palestra) e divulgação científica (Jornal da Unesp). Estudou Ciências Sociais na USP em 2018.

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A democracia da China

Uma reflexão sobre povo e governo no contexto da nação que desafia a lógica ocidental e desponta como potencial futuro grande centro de poder do mundo

O presidente chinês Xi Jinping, também secretário-geral do Comitê Central do Partido Comunista da China (Foto: Yan Yan/Xinhua)

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Revolucionando conceitos, assim como afirma ter construído um “socialismo com características próprias”, a China vem desenvolvendo, ao longo dos últimos 75 anos, um novo modelo de democracia – diferente do qual as populações ocidentais estão acostumadas, mas cujos resultados, na prática, são dignos de reflexão.

Para introduzir a discussão sobre o assunto, relato aqui uma provocação feita pelo professor Chang Fuliang (Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim) logo no início de uma aula ministrada a jornalistas internacionais sobre a ‘Concepção de Democracia Popular do Processo Integral’ na última semana. Em um slide, ele exibiu definições de “democracia” em dicionários de espanhol e de chinês, a saber: no Gran Diccionario De Uso Del Español Actual, afirma-se que é um “sistema político mediante o qual os cidadãos elegem o Governo de seu país por votação livre e secreta. É baseado na igualdade de direitos e deveres dos cidadãos. [...]”; já o Dicionário Chinês Moderno diz que democracia “refere-se ao direito do povo de participar na gestão dos assuntos do Estado e dos assuntos sociais ou de expressar livremente opiniões sobre os assuntos do Estado”. Após ler ambas as definições, o professor apontou: “[Na definição chinesa] não se menciona a votação. Democracia é uma questão de atitude”.

DAS DINASTIAS À REVOLUÇÃO – Para começar a entender a forma de pensar atual da China, é preciso voltar um pouco no tempo. Vale lembrar o que era este país até o início do século XX: uma nação governada por imperadores feudais, quase sempre fechada ao resto do mundo e com uma população majoritariamente pobre, rural e analfabeta. É impossível desconsiderar este contexto em qualquer análise sobre o que é o gigante asiático na atualidade.

Soma-se a este contexto o fato de que a origem da atual República Popular da China se deu após um processo revolucionário que durou décadas e contou com grande adesão do próprio povo chinês, com destaque à população do campo, e precisou enfrentar inimigos militarmente poderosos tanto internos, como o governo da época (liderado pelo Partido Nacionalista Kuomintang), quanto externos, como o Império Japonês, uma das maiores potências asiáticas do período.

Levando tudo isso em conta, e também considerando a tradição milenar chinesa de possuir Estados fortes para administrar um território tão vasto e uma população tão volumosa (muitas vezes ameaçada pelas violentas inundações do Rio Amarelo), começa a ser mais possível entender a forma de administrar do Partido Comunista Chinês (PCCh), seu poder hegemônico e sua concepção de democracia.

Uma cerimônia de hasteamento da bandeira marcando o 75º aniversário da fundação da República Popular da China é realizada na Praça Tian'anmen, em Beijing, capital da China, em 1º de outubro de 2024
Uma cerimônia de hasteamento da bandeira marcando o 75º aniversário da fundação da República Popular da China é realizada na Praça Tian'anmen, em Beijing, capital da China, em 1º de outubro de 2024(Photo: Xinhua/Chen Zhonghao)Xinhua/Chen Zhonghao

AS DEMOCRACIAS – É certo que, para uma pessoa distante que vê a situação chinesa a partir de um ponto de vista ocidental (ou seja, que cresceu influenciada pela noção liberal de democracia), soa contraditório um país se autoproclamar “democrático” e concentrar o poder político em um mesmo partido há 75 anos. No entanto, vale sempre destacar que a democracia representativa burguesa – modelo atualmente vigente na maioria dos países do mundo – não é o único modelo possível e histórico deste sistema político. Inclusive, é radicalmente distinto do que era a democracia na Atenas antiga, por exemplo (e, ainda assim, as sociedades ocidentais atuais gostam de se apropriar da imagem da democracia ateniense como se fossem as únicas legítimas representantes de seu legado).

Para o PCCh, a democracia não deve somente se resumir a uma votação para eleger representantes do povo a cada número determinado de anos (como, na prática, é o que acontece em boa parte dos países ocidentais). O verdadeiro poder para o povo, na concepção chinesa, consiste em gerir o Estado de forma a elevar as condições de vida da população ao aprimorar as condições econômicas, culturais, educativas, de segurança e de infraestrutura do país. 

Vale também ponderar que, na realidade dos fatos, apesar de o PCCh ser hegemônico na China, trata-se de um partido de 99 milhões de membros – dos quais, mais de 30% são operários e trabalhadores rurais –, que internamente conta com intensos debates de opiniões e que já passou por relevantes mudanças de posicionamento ao longo de sua história no poder. É um organismo vivo, não um bloco de concreto que permanece imutável independentemente da circunstância. Além disso, apesar de os critérios de seleção terem ficado mais exigentes ao longo dos últimos 12 anos, qualquer cidadão chinês tem a possibilidade de se filiar ao PCCh, ascender na hierarquia do partido e exercer o poder político no país.

A REPRESENTAÇÃO POPULAR – Mesmo isso não sendo um fato de conhecimento comum, sim, também existe o direito a voto na China. Os cidadãos são responsáveis por eleger seus representantes locais (em cidades maiores, a eleição é para o distrito; em cidades menores, a eleição é para o município). A partir disso, estes representantes elegem os representantes das instâncias superiores, como para os governos municipais, provinciais e, enfim, o Congresso Nacional do Povo e o Governo Nacional do Povo. As eleições locais, inclusive, registram mais de 900 milhões de votantes e os candidatos podem ser de qualquer um dos nove partidos políticos do país ou até mesmo independentes (sem partido político).

Desta forma, as decisões superiores não são tomadas apenas pelo ‘líder supremo’ e impostas ao povo de qualquer maneira. A redação de propostas precisa passar por diferentes grupos e instâncias de autoridade e, por fim, receber a aprovação do acima mencionado Congresso Nacional do Povo, mais importante órgão do poder legislativo, que é composto por 2.980 membros – eleitos para mandatos de cinco anos –, sendo que mais de 800 não pertencem ao PCCh. De forma complementar ao CNP, também existe a Conferência Consultiva Política do Povo Chinês, o principal órgão consultivo político da China, que conta com participação de operários, trabalhadores urbanos e rurais, grupos representantes das 55 minorias étnicas chinesas, religiosos, entre outros, e tem a função de discutir os problemas do país e recomendar melhorias ao PCCh e aos órgãos nacionais. 

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Seguranças de guarda antes da Terceira Sessão Plenária do Congresso Nacional do Povo (NPC) no Grande Salão do Povo, em Pequim, China, em 10 de março de 2023.(Photo: Mark R. Cristino/Pool via REUTERS)Mark R. Cristino/Pool via REUTERS

Para além da votação para eleger representantes da estrutura burocrática dos órgãos representativos oficiais, a participação do povo também se dá em outras etapas do processo político chinês. Por exemplo, a elaboração dos planos quinquenais conta com etapas em que se abre espaço às sugestões da população – de acordo com o portal Xinhua, mais de um milhão de comentários de internautas chineses foram recebidos durante a elaboração do 14º Plano, em 2020 – e, além disso, foram realizadas consultas offline e simpósios com  legisladores nacionais e conselheiros políticos para recolher sugestões.

PODER AO POVO ALÉM DO VOTO – O discurso até agora pode parecer bonito, mas, na prática, todo esse aparato cumpre o que se propõe a fazer? Na verdade, são justamente os resultados que sustentam a ideia de democracia construída pelo PCCh.

Em 1949, a expectativa de vida dos chineses ao nascer era de 35 anos; hoje, é de 78. O índice de analfabetismo naquela época era superior a 70%; atualmente, é de 3,2%. A taxa bruta de matrícula no ensino superior era de 0,26% e, em 2023, chegou a 60,2%. Com um PIB de US$ 17,71 trilhões, o país ocupa o posto de segunda maior economia do planeta. O território nacional é quase inteiramente interconectado por rodovias, ferrovias e vias aéreas, além de contar com alguns dos maiores sistemas metroviários de todo o mundo. Em relação à segurança, um cidadão chinês, atualmente, pode caminhar tranquilamente pelas ruas às 3 horas da madrugada com a certeza de que não será assaltado. O direito ao aborto é amplamente garantido às mulheres, que também aumentaram seus níveis educacionais e sua participação no mercado de trabalho e na política ao longo das últimas décadas.

Uma pesquisa de 2016 do Ash Center for Democratic Governance and Innovation, de Harvard (EUA), concluiu que 95,5% dos chineses estavam "relativamente satisfeitos" ou "muito satisfeitos" com o governo central liderado pelo PCCh. Uma reportagem da Harvard Gazzette sobre o impressionante nível de aprovação do governo chinês destacou ainda que, “em contraste com esses resultados, a Gallup informou em janeiro de 2020 que sua pesquisa mais recente sobre a satisfação dos cidadãos dos EUA com o governo federal revelou que apenas 38% dos entrevistados estavam satisfeitos com o governo federal”.

Enquanto as democracias ocidentais e o chamado “mundo livre” passam por cada vez mais turbulências de ordem social e política, assistindo atônitos ao expressivo crescimento da extrema direita e de ameaças à ordem institucional, a curva da China rumo ao desenvolvimento segue mostrando uma tendência de subida. Neste contexto, mais pessoas ao redor do mundo começam a ver o gigante asiático com olhos menos desconfiados.

Durante boa parte de nossa vida, fomos (e seguimos sendo) bombardeados com afirmações de que “a China não é uma democracia”. Em última análise, de fato, as características da democracia proposta pelo governo chinês podem não ser exatamente compatíveis com as do sistema representativo liberal a que estamos acostumados. Contudo, parece cada vez mais pertinente a reflexão sobre qual dos dois sistemas em debate verdadeiramente se mostra eficiente em dar condições de bem-estar ao seu povo e qual se mostra débil em atender às necessidades das pessoas que compõem seu país. 

Guilherme Paladino é jornalista do Brasil 247 em Pequim

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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