A democracia e a relatividade
Quando a democracia esteve em perigo no Brasil e quando se instaurou um regime francamente antidemocrático, aqui, o que fizeram e disseram esses críticos?
Um fato curioso da história milenar do pensamento sobre a experiência política está na raridade de testemunhos deixados pelos partidários da democracia. Da Grécia, por exemplo, fonte mais importante para o conhecimento desse regime, quase nada se guardou do que teriam escrito os democratas. Pode-se imaginar que estivessem tão ocupados na difícil tarefa de construir a democracia, que pouco tempo lhes sobrava para que empreendessem uma teoria consistente sobre sua prática. Os adversários da democracia eram muito mais fortes (ricos e cheios de títulos da nobreza e de pretensão de saber) e foram mais eficientes, ao escreverem e preservarem suas reflexões. Aquilo que chamamos de filosofia ou teoria política e do direito (sobretudo na área do direito constitucional) nos vem do que disseram esses adversários da democracia. Isso ajudou no enraizamento do preconceito, que ainda vigora, em relação àquela forma de Constituição, na qual o poder do povo se apresentava e realizava.
Hoje em dia - muito embora o número de Países (e de teóricos do direito e da política) que se declaram democráticos tenha aumentado -, permanece uma nuvem de questionamento sobre as qualidades de se conceder as decisões sobre o destino da sociedade ao povo. O povo continua a ser visto com desconfiança, tanta vez com desprezo, tanto pelos que praticam quanto pelos que refletem sobre a vida política e jurídica das Nações. A torto e a direito, essas pessoas repetem a velha citação de Churchill - de que a democracia seria o menos ruim dos regimes -, esquecendo-se de que o escritor e político britânico era um crítico da democracia, que pensava a sociedade sob o ponto de vista da desigualdade, de modo mesmo cínico, ao afirmar defender as liberdades contra o nacional-socialismo e contrariá-las interna e, sobretudo, externamente, com a preservação da prática hierárquica e do colonialismo britânico.
Recentemente, essa polêmica veio à tona no Brasil, no debate que se seguiu a discurso do Presidente Lula, no qual defendia o regime Venezuela de seus críticos, dizendo que esse juízo deveria ser tomado de modo relativo, pois haveria índices democráticos, no regime sob a Constituição bolivariana, que não podiam ser desconsiderados.
Claro que os adversários do Presidente - que mal inicia seu terceiro mandato, na liderança de um movimento pela restauração da democracia no Brasil, e que sempre primou pelo respeito e pela construção da democracia - apressaram-se em tomar a afirmação ao pé da letra, da relatividade democrática. Segundo esses críticos (que acreditam ostentar conhecimento sobre o que seja a democracia e pretendem dar lições ao Presidente sobre o caráter absoluto da democracia), Lula deveria simplesmente dizer que a Venezuela viveria sob ditadura, e engajanr-se numa campanha estrangeira bastante suspeita, que envolve a adoção de velhos modos de embargos e sufocamento econômico da população, para obter à força uma transição conveniente do poder. É uma forma de argumentar rasa e interessada, que parte de premissas teóricas vagas e prescinde da análise do que efetivamente ocorre no País vizinho, que vive conflitos tradicionais e enfrenta crise grave e complexa, sobretudo de ordem humanitária.
Diante disso, a expressão do Presidente Lula deve ser entendida mais como apontando para o aspecto da complexidade (significado mais correto do termo relatividade, por ele empregado). Assim, que a situação venezuelana deve ser analisada a partir do conhecimento de várias realidades e relações sociais e históricas, internas e internacionais, e nunca com o mero pinçar de um ou outro fato, cujo conhecimento adviria mais do que expressam versões adotadas por esse ou aquele órgão de imprensa, desvinculado de outros fatos e, portanto, versões. Se toda política é conflituosa, é preciso sempre desenhar sua cena contrapondo as várias personagens que nela antagonizam. Nesse aspecto, os críticos do regime afirmam que seu governo age desse ou daquele modo, e que lhe falta isso ou aquilo para que se possa amoldar a um conceito idealizado e genérico, se não dogmático, de democracia. Não levam em consideração, porque não lhes interessa dar visibilidade a isso, as práticas e os discursos dos oponentes do regime venezuelano. Essa prática e esse discurso estão longe de se mostrar democráticos, é importante pontuar, o que torna o discurso dos críticos vazio, pois, ao negarem o regime atual, não mostram quais seriam as opções que efetivamente se apresentam para que se torne democrático, no sentido que empregam esse adjetivo.
Podemos admitir que o regime protagonizado pelo chavismo não seja democrático. No entanto, não podemos deixar de considerar e de dizer que o regime proposto pelos seus adversários também está longe da democracia. Ainda mais, na medida em que pretende restaurar práticas antigas e coloniais de dominação sobre a maioria do povo venezuelano, restaurando o papel das elites tradicionais, pugna mesmo pelo afastamento do povo das esferas de poder, não deixando de prescindir do velho golpismo que tem caracterizado as práticas dessas elites em nosso continente americano, de norte a sul.
Entretanto, devemos admitir, que os críticos brasileiros do regime venezuelano, em sua maioria, não estão interessados verdadeiramente em restaurar ou ajudar a construir a democracia naquele País. Seu interesse autêntico está em repisar seus antigos conceitos e preconceitos a respeito do Presidente Lula e do que representa – paradoxalmente, em termos de construção democrática – e a respeito do que consideram ser o discurso e a prática da esquerda política. Mais grave é o fato de que, no momento presente, pretenderem minar precisamente o processo de reconstituição da democracia no Brasil, que sofreu os revezes que sofreu, além de preservar a força de perigosos oponentes, encastelados nos poderes de todas as esferas da federação, exatamente em razão da atuação e da omissão desses mesmos críticos e adversários do atual regime brasileiro.
Ao usarem a democracia como argumento, o que fazem, de modo significativo e aparentemente contraditório, é relativizar seu conceito, afirmando falsamente que seria absoluto e tentando apontar nas características desse ou daquele País seu antípoda. Quando a democracia esteve em perigo no Brasil e quando se instaurou um regime francamente antidemocrático, aqui, o que fizeram e disseram esses críticos? Ajudaram com suas decisões, ações e declarações a impedir que ocorresse a assunção do poder por grupos dotados de capacidade enorme para o cometimento de atos anticonstitucionais e violentos, no discurso e na prática? A história demonstra que, bem ao contrário, contribuíram para que a situação de impasse constitucional se implantasse, deixando presente a ameaça constante de desestabilização e de encaminhamento do regime constitucional brasileiro à bancarrota, por meio de atos calculados e torpes de enfrentamento e obstaculização do livre curso das informações verdadeiras e das políticas públicas, direitos e deveres postos na Constituição cidadã. Podemos dizer a tais críticos que estão certos em falar sobre os valores e princípios postos nessa Constituição, que negam a ditatura e suas práticas. Mas apontar que, em sua prática, no espaço público, acabaram por negar o que agora cobram.
Em próximo texto, farei uma abordagem mais precisa sobre o que seja a democracia – mostrando como estão errados esses partidários do absolutismo ida crítica fácil e irresponsável. Por ora, encerro esse breve artigo dizendo que o Presidente Lula estava certo, ao argumentar que a democracia, onde queer que seja, está envolvida em uma realidade complexa e que, em decorrência, é preciso enxergá-la com a prudência do olhar que a relatividade do mundo sugere, para que se possa construir, de fato, a relação democrática que todas as pessoas sinceras desejam: o poder pertence ao povo.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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