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    Lenio Luiz Streck

    Jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito

    38 artigos

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    A evangelhocracia de coalizão? Nossa democracia está garroteada?

    "Fiquemos com a Constituição, senhoras e senhores deputados. Pelo menos enquanto fazemos política", escreve Lenio Streck

    (Foto: Reprodução/Lucas Rocha/Sputnik)

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    Artigo publicado no Conjur

    1. E o Brasil se tornou refém de pautas medievais?

    Sabiam que até 1974 existia na Espanha a pena de morte executada por garrote vil? Sim, o último condenado foi executado naquele ano, sendo a pena extinta em 1978.

    O que é o garrote vil? Coisa de tempos anteriores à modernidade…!

    Pois ao tomar conhecimento do projeto sobre a criminalização do aborto com pena maior do que o estuprador (fora os demais terríveis problemas do projeto) fiquei pensando: será que extrema-direita não proporá a pena de garrote vil?

    Esse é o tom com o qual devemos discutir o assunto. Porque quem estabeleceu esse tom foram os autores do referido projeto de lei. Deixou – e isso ainda não terminou – uma péssima impressão, mormente estando como signatária uma ex-procuradora e ex-presidente da CCJ, deputada Bia Kicis. Para que serve o direito? Para isso?

    2. A Bíblia e Os Escravos de Jó… e a serva Bila

    O que pensam os apoiadores do projeto do estupro? Vi e ouvi vários deputados dizendo que o fazem em nome da fé. Como assim? Foi Jesus mesmo quem disse que “dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é Deus”. Isto quer dizer: separação do Estado, das coisas da política… da religião. Está na Bíblia, senhoras e senhores evangélicos.

    Mas, se quiserem insistir – e, de novo, o tom da discussão foi dado pela bancada conhecida como evangélica, podemos buscar o livro sagrado.

    Falemos do livro Contos de Aia e da república de Gilead, em que às mulheres é reservada a função de procriação e, ainda por cima, à base de relação forçada (para ser eufemista). Atenção: a autora do livro não inventou essa passagem de Gênesis: 30: 1-3, que exatamente mostra como a “palavra de Deus” é usada para justificar o uso das aias (mulheres) apenas como um objeto de reprodução: vendo Raquel que não dava filhos a Jacó, teve inveja de sua irmã, e disse a Jacó: “Dá-me filhos, se não morro”. E ela disse:

    “Eis aqui minha serva, Bila. Coabita com ela, para que dê à luz sobre meus joelhos… e eu, assim receba filhos por ela”. Assim lhe deu a Bila, sua serva, por mulher… e Jacó a possuiu.

    Talvez passagens como essa sejam inspiradoras. Outra vez: quem colocou a discussão no plano da religião não foram as pessoas contrárias ao projeto. Foram os próprios apoiadores.

    Vamos falar de fé? De política misturada com religião? Usando a Bíblia? OK. Então: os dois ursos que mataram 42 crianças “a mando de Deus” são “de verdade” e essa passagem bíblica pode ser lida do mesmo modo que a Bíblia proíbe, por exemplo, o homossexualismo (que as igrejas gostam de utilizar)?

    E o que dizer das filhas de Ló? O incesto? Ou do momento em que Ló, para salvar os dois anjos, oferece suas filhas para serem estupradas pelos invasores? Isso deve ser entendido literalmente, senhores pastores? Quanto à Ló, das duas, uma: se for ao pé-da-letra, parece “complicado” o pai oferecer as filhas, não acham? Se for simbólico ou alegórico (mas há que escolher qual leitura fazer da Bíblia), o gesto de Ló é visto de outro modo.

    O que quero dizer, principalmente aos evangélicos e cristãos que não concordam com a mistura “política-religião”, é que a Bíblia não pode ser lida ad hoc. Não dá para ser literalista e alegórico um dia sim, um dia não, segundo os interesses.

    3. A “escolha” que certos evangélicos fazem de passagens bíblicas…também posso fazer. Querem ver?

    Vamos fazer um festival de escolhas literárias ad hoc de passagens bíblicas, com as quais poderemos justificar a terceira guerra mundial, estupros para salvar a continuidade da humanidade, matança de crianças, traições como a do Rei Davi que fez sexo com a mulher de seu soldado e ainda por cima enviou o seu concorrente para a guerra para que morresse.

    E o que dizer de seu filho Ammon, que estuprou sua meia-irmã Tamar, embora ela implorasse a ele que não o fizesse? Mais à frente, Absalão, também irmão de Tamar, faz o mesmo com dez concubinas de Davi. Quanta promiscuidade, não? Já no livro Juízes, os benjaminitas vão até Jabes, em Galaad, e sequestram 400 mulheres, obrigando-as a desposar seus sequestradores — supostamente tudo isso com a bênção do Senhor [1].

    Portanto, o Velho Testamento trata o estupro como “normal”. Que tal ler ao pé-da-letra o Código Penal da Bíblia, em Deuteronômio 22:28–29?

    “Se um homem achar moça virgem, que não está desposada, e a pegar, e se deitar com ela, e forem apanhados, então, o homem que se deitou com ela dará ao pai da moça cinquenta siclos de prata; e, uma vez que a humilhou, lhe será por mulher; não poderá mandá-la embora durante a sua vida.” Se a vítima de estupro não estava noiva, então o estuprador enfrentava consequências diferentes.

    Um pouco antes disso, nos versículos 23 e 24, o mesmo Deuteronômio sugere que, se um homem encontrar uma mulher prometida ou casada e se deitar (sic) com ela no campo, tudo bem, aí a culpa é só dele, porque ninguém a teria ouvido de qualquer forma. Mas, se for na cidade, os dois devem ser apedrejados — ele pelo ato, ela porque não gritou pedindo ajuda [2].

    Boa essa parte “porque não gritou pedindo ajuda”. E assim segue a Bíblia.

    O que quero dizer é que há que se ir muito devagar com o andor nessa coisa de “usar a Bíblia”. Ou misturar política e religião. Dai a César…

    Nesta coluna, apenas quero mostrar que não parece adequado e correto invocar a fé para cometer absurdos como esse de condenar a vítima de estupro [3].

    A literalidade da Bíblia é certeza de derrota para quem quiser misturar política e religião. Perderão facilmente. Como mostrei acima.

    4. Vamos discutir esses temas à luz de outro livro, a Constituição?

    O que eu desejo é, sim, discutir o aborto, saidinhas de presos e quejandos à luz de um outro livrinho, a Constituição. Esta sim até pode ser lida ao pé-da-letra. Pode, às vezes, apresentar pequeníssimas contradições. Que qualquer hermenêutica resolve. Mas, com certeza, não traz contradições e paroxismos com a Bíblia. Fiquemos, pois, com a Constituição, senhoras e senhores deputados. Pelo menos enquanto fazemos política. A Bíblia? Usemo-la nos templos.

    Podem crer: Deus não mandou o Sol parar para Josué matar mais gente. É que…o Sol já estava parado…!

    Portanto, sem essa de que fazem esses projetos em nome da fé e que estão amparados na Bíblia.

    Post scriptum. Recentemente, escrevi um livro chamado O que é fazer a coisa certa no direito. O busílis é muito simples. Lembram-se dos dileminhas popularizados por Sandel? “Você prefere mudar o curso do trem e matar o gordinho ou deixar que o trem mate cinco pessoas?” O ponto é que o direito dissolve esse tipo de problema. Vira um não-problema. Porque, numa democracia, é o direito que institucionaliza e resolve os desacordos morais. E o que esse caso da handmaidestalização da democracia mostra é que estão degenerando o direito.

    Para que serve um direito que se pode levar a um paradoxo tal em que a pena da mulher estuprada é maior que a do estuprador? Fracassamos? Se for assim, vamos todos para casa. E entreguemos as chaves do sistema político às Igrejas. Sim, isso tem de ser dito. Talvez este seja o momento. Quando deram o maior tiro no pé da história, pode ser o momento de colocarmos cada coisa em seu quadrado.

    Pois então façamos a coisa certa. Qualquer que seja sua convicção moral. Ônus da democracia. Que não pode aceitar certos tipos de coisa.

    Ou vamos subverter os fundamentos da democracia com o nome de “democracia”? Por isso, peço atenção para uma leitura atenta da presente coluna.

    Para evitar mal-entendidos.

    ---

    [1]  Ver o site megacurioso que trata do tema.

    [2] Idem, ibidem.

    [3]  A propósito, a dogmática penal (refém do criterialismo bem brasileiro) não faz tanto tempo continha passagens como esta, constante no livro de Damásio de Jesus, famoso penalista falecido há alguns anos: “sempre que a mulher não consentir conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que tenha ela justa causa para a negativa”. Vejam como é difícil a discussão dessa pauta.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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