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    Roberto Bueno

    Professor universitário, doutor em Filosofia do Direito (UFPR) e mestre em Filosofia (Universidade Federal do Ceará / UFC)

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    A fronteira da resistência humana: Woodfox

    Albert Woodfox participou da criação do movimento de direitos dos Negros, os Black Panther Party (BPP) (Panteras Negras) empenhados na ação política como forma de rebelião contra o regime racista norte-americano em uma de suas mais cruéis prisões, a Penitenciária Estadual de Louisiana, conhecida como “Angola

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    Por  Joelma L. V. Pires / Profa. Associada (UFU) e Roberto Bueno / Prof. Associado (UFU) - 

     A capacidade de resistência humana é notável. Expostos a instabilidades extraordinárias sucumbir de imediato é a regra. Enfrentados a inauditos desafios, há quem os supere de forma absolutamente insuspeita, para além da imaginação do que algum humano pudesse suportar. Um destes casos de superação de limites e quaisquer fronteiras imagináveis é o de Albert Woodfox (New Orleans, 1947-), cuja inserção na conjuntura de dominação capitalista radical impôs o recurso à resistência como única forma de sobrevivência e manifestação da sua condição humana. Nessa perspectiva, Albert Woodfox participou da criação do movimento de direitos dos Negros, os Black Panther Party (BPP) (Panteras Negras) empenhados na ação política como forma de rebelião contra o regime racista norte-americano em uma de suas mais cruéis prisões, a Penitenciária Estadual de Louisiana, conhecida como “Angola”. 

    A prisão é o anti-humano por definição, o aprisionamento é a mais radical restrição ao humano, limitadora de movimentos mas dilapidadora da saúde e da sanidade mental. Existem homens presos que são verticais mesmo em celas lotadas, amontoadas de gente, ou submetidos a diminutos cubículos, inclusive solitárias, algo como 2x3 metros. Outros há, sem embargo, que circulam livres pelo mundo, mas não abandonam a sua condição horizontal e rasteira. O Pantera Negra Woodfox indubitavelmente, pertence ao primeiro grupo, indivíduos negros cuja angulação da cabeça é mantida erguida contra tudo e contra todos, assim como a moralidade conduzida pelo notável orgulho de si próprios sob as mais desfavoráveis condições objetivas de vida.   

    Woodfox foi encarcerado por crime de roubo à mão armada que, por certo, sempre negou ter praticado. Falsas acusações são corriqueiras, subornos e chantagens para obter confissões não menos. Foi cumprir pena e logo arregimentou forças para organizar célula dos Panteras Negras em Angola, conhecido como presídio dos mais violentos. Woodfox é um homem preto, e isto conta demais para as autoridades policiais ou perante as barras dos tribunais de países racistas cujo sistema capitalista é policialesco, não raro em aberto flerte para transitar ao neofascismo. Em ambos os casos as surras e violações ao corpo sob diversas formas são práticas corriqueiras, e para estas “autoridades” o sangue corre tão fácil nas veias humanas como fora delas. Assinam o atestado de defunção de cada uma de suas vítimas, e com ele, a sua própria.  

    Woodfox resiste ao aprisionamento em isolamento em “Angola” há, nada mais, nada menos, do que de quatro décadas, precisamente, 42 anos. São quarenta e dois anos! Mais de quatro décadas encarcerado, e desde o alvorecer da década de 1970 encerrado em solitária durante vinte e três horas diárias. Corria o ano de 1973 quando Woodfox com condenado por homicídio em segundo grau. Condenação: à prisão perpétua. Dali em diante, pura solidão, de imersão psicológica, privação de convívio, de reclusão do corpo em escassos metros similares ao de uma vaga de veículo automotor de tamanho médio. Nem um dia, nem uma semana ou mês inteiro, não, são quarenta e dois anos de pura tortura! Para estes prisioneiros encarcerados na solitária de “Angola” não há exercícios diários e nem direito a chamadas telefônica. Nada. Além disso, trabalham em condição de semi-escravidão. Há casos de prisioneiros presos nesta condição durante anos. É possível que um sistema político e econômico que sustente tal condição de fato mereça o reconhecimento público como democrático tal qual reclama para si mesmo, ainda que em básica e baixa voltagem? Acaso têm estas práticas sequer tênues traços do que deveria ser qualificado como direito penal reconhecido em conexão com os valores do Iluminismo ou descemos aos porões do baixo medievalismo? Cesare Beccaria (1738-1794) não foi lido por quem sustenta este modelo penal nem os legisladores da matéria alcançaram o Renascimento nem os ventos do Iluminismo e do século XVIII. Infelizmente, não é apenas na Louisiana que a barbárie vem encontrando território fértil. 

    Mesmo impossível de justificar, afinal, o que deflagrou esta insana tortura durante décadas? Woodfox rebelou-se contra as políticas penitenciárias racistas aplicadas na prisão quando ainda corriam os primeiros anos da década de 1970. Preso, Woodfox foi condenado pelo homicídio de Brent Miller, guarda penitenciário, cuja continuada alegação de inocência foi apoiada até mesmo pela viúva do policial, insuspeita de relação ou de prestar quaisquer favores aos acusados e, logo, condenados. A acusação foi sustentada através de testemunho de preso condenado por estupro, que negociou o testemunho com a Promotoria para obter indulto. Não foi o único ponto de ancoragem para a condenação e danação de décadas de Woodfox, que também o testemunho de indivíduo cego que assegurou a presença de Woodfox no local do crime, além de mulher esquizofrênica então sob efeitos medicamentosos.  

    Desde então a solitária foi o recurso do regime e da administração de “Angola” para manter Woodfox sob constante tortura, pois é disto o que se trata quando observamos a imposição de pena de isolamento contínuo, e sob a agravante de tratar-se de décadas, transforma-se em genuína tentativa de homicídio coordenada pelo Estado. Woodfox sofre tortura física e mental, e não apenas por período determinado, senão por interregno de tempo ilimitado, sem que possa contar o dia final de seu tormento. Woodfox resiste.  

    Quantos serão os Woodfox que hoje foram entregues a perecer sob torturas à céu aberto? Quantos serão os Woodfox que têm suas vidas abreviadas por sentenças de morte executadas por agentes do Estado que sequer tem competência para tanto em regimes que, não raro, tampouco preveem tal pena em suas legislações? Este é o caso brasileiro, onde o caos substituiu a lei, onde o bárbaro substituiu a civilização, onde a omissão sucumbiu ante a covardia do agressor, e onde o colonizador perdeu a vergonha não em menor intensidade do que a canalha interna vestida de luxo com falsas cores sóbrias bastante conhecidas e medalhas distintivas são ostentadas como galardões da pátria que entregam. É tudo crueldade temperada com traição. 

    Crueldade e degradação são marcas de sistemas penais como o da Louisiana. Mobiliza todas as suas forças e subjuga um homem preto aprisionando-o em cubículo durante quatro décadas. Qual o tipo de crime tão ofensivo poderia um homem isolado cometer que seja superior ao que toda uma sociedade de omissos pratica quando permite que a barbárie seja adotada como política de Estado? Este é um dos cartões de apresentação dos que pretendem ludibriar politicamente a humanidade em sua suposta defesa da democracia, quando o império, em verdade, já cruzou o rubicão para o neofascismo e ali fincou bandeira. Contra o império encontram-se posicionados alguns indivíduos e organizações, verticais, enquanto o império intervém com titânica força, esmagando a tudo e a todos que encontra pela frente em resistência. Ainda assim os Woodfox resistem, e resistem brava e ousadamente, décadas afora. Definitivamente, é um sistema que precisa ser combatido, definitivamente, são indivíduos que precisam ser protegidos e suas memórias enaltecidas como referenciais para os genuínos modelos democráticos. 

    Quem pode “quebrar” um Woodfox? E se não podem “quebrar” este humano admirável, de qual instrumento poderiam lançar mão para “quebrar” a qualquer um de nós? Conhecer Woodfox é ampliar a esfera da humanidade por intermédio do labirinto da barbárie que o vitima e ao qual ele sobrevive. Conhecê-lo melhor é indispensável para encontrar o antídoto ao mal. Resistir sempre foi preciso. Resistir continua sendo indispensável quando o adversário objetiva e propositalmente veste a roupa de inimigo com o propósito de exterminar a todos que não se deixem passivamente subjugar nem componham a sua brigada ligeira. É isto direito? Para quem funciona o direito sempre a tempo? A quem ele nunca atende? A quais carnes ele sempre se presta a triturar? É isto direito? Qual a real fronteira humana para resistir à ignomínia e toda a sorte de violência antes que esta seja a sua resposta?

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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