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    Chris Hedges

    Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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    A mentira da inocência dos EUA

    "Todos os esforços para responsabilizar os nossos criminosos de guerra foram rejeitados pelo Congresso dos EUA" , escreve Chris Hedges

    Tropas estadunidenses na Síria (Foto: Sputnik)

    Por Chris Hedges

    (Publicado originalmente no The Chris Hedges Report. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz para o Brasil 247)

    A rotulação de Vladimir Putin como um criminoso de guerra, feita por Joe Biden – que fez lobby pela guerra no Iraque e apoiou firmemente os 20 anos de carnificina no Oriente Médio – é um exemplo a mais da postura moral hipócrita que varre todos os Estados Unidos. Não fica claro como alguém processaria Putin por crimes de guerra, já que os EUA não reconhecem a jurisdição da Corte Criminal Internacional (International Criminal Court) de Haia. Mas a questão não é a justiça. Políticos como Biden, que não aceitam a responsabilidade pelos nossos (dos EUA) bem-documentados crimes de guerra, reforçam as suas credenciais morais ao demonizar os seus adversários. Eles sabem que a possibilidade de Putin enfrentar a justiça é zero. E eles sabem que a possibilidade deles próprios enfrentarem a justiça é a mesma.

    Sabemos quem são os nossos criminosos de guerra mais recentes, entre outros:  George W. Bush, Dick Cheney, Donald Rumsfeld, General Ricardo Sanchez, o ex-diretor da CIA George Tenet, o ex-Vice Advogado-Geral Jay Bybee, o ex-Vice Advogado Geral Assistente John Yoo – os quais montaram a estrutura legal que autoriza a tortura; os pilotos de helicópteros que fuzilaram civis, incluindo dois jornalistas da Reuters, no vídeo “Assassinatos Colaterais” (Collateral Murders – ver o original, com legendas em português em: https://www.youtube.com/watch?v=r8Y-NVJFhbQ) divulgado pelo Wikileaks. Temos evidências dos crimes cometidos por eles.

    Porém, como na Rússia de Putin, aqueles que expõem estes crimes são silenciados e perseguidos. Apesar de não ser um cidadão dos EUA e do seu website Wikileaks não ser uma publicação baseada nos EUA, Julian Assange é indiciado sob o Ato de Espionagem dos EUA (US Espionage Act) por publicar numerosos crimes de guerra dos EUA. Atualmente detido numa prisão de segurança máxima em Londres, Assange está lutando por uma batalha perdida nos tribunais britânicos para impedir a sua extradição aos EUA – onde ele enfrenta 175 anos de prisão. Um conjunto de regras para a Rússia, outro conjunto de regras para os Estados Unidos. Verter lágrimas de crocodilo sobre as mídias russas – que são pesadamente censuradas por Putin – enquanto se ignora a situação do Publisher mais importante da nossa geração fala alto e em bom som sobre o quanto a classe dominante se importa com a liberdade de imprensa e a verdade.

    Se exigimos, como deveríamos, justiça para os ucranianos, também devemos exigir justiça para um milhão de pessoas assassinadas – 400 mil dos quais não eram combatentes – pelas nossas invasões, ocupações e ataques aéreos no Iraque, no Afeganistão, na Síria, no Iêmen e no Paquistão. Devemos exigir justiça para aqueles que foram feridos, ficaram doentes ou morreram porque nós destruímos hospitais e infraestruturas civis. Devemos exigir justiça para os milhares de soldados e fuzileiros navais que foram mortos, e muitos mais que foram feridos e vivem com incapacidades vitalícias, em guerras lançadas e sustentadas em mentiras. Devemos exigir justiça para as 38 milhões de pessoas desalojadas ou que se tornaram refugiados no Afeganistão, no Iraque, no Paquistão, no Iêmen, na Somália, nas Filipinas, na Líbia e na Síria – um número que excede o total de todos os desalojados em guerras desde 1900, afora a Segunda Guerra Mundial, segundo o Instituto Watson para Assuntos Internacionais e Públicos (Watson Institute for International & Public Affairs) da Brown University. Dezenas de milhões de pessoas – as quais não tinham conexão com os ataques às Torres Gêmeas em New York em 11/09 – foram mortas, feridas, perderam os seus lares e viram as suas vidas e as suas famílias serem destruídas por causa dos nossos crimes de guerra. Quem gritará por eles?

    Todos os esforços para responsabilizar os nossos criminosos de guerra foram rejeitados pelo Congresso dos EUA, pelos tribunais, pelas mídias e pelos dois partidos políticos reinantes. O Centro por Direitos Constitucionais dos EUA (Center for Constitutional Rights) – impedido de apresentar casos contra os arquitetos destas guerras preventivas nos tribunais dos EUA, as quais são definidas pelas leis pós-Nuremberg como “guerras criminais de agressão” - apresentou moções aos tribunais alemães para responsabilizar os líderes do governo dos EUA por flagrantes violações da Convenção de Genebra, incluindo o sancionamento de torturas em “black sites” (prisões clandestinas) como Guantánamo e Abu Ghraib.

    Aqueles que têm o poder para fazer cumprir o estado de direito, para responsabilizar os nossos criminosos de guerra pelas suas ações, para reparar os nossos crimes de guerra – estes dirigem o seu ultraje moral exclusivamente à Rússia de Putin. “Alvejar civis intencionalmente é um crime de guerra” - disse o Secretário de Estado dos EUA Anthony Blinken, condenando a Rússia por atacar instalações civis - incluindo um hospital, três escolas e um internato para crianças com dificuldades visuais na região de Lugansk, na Ucrânia. “Estes incidentes juntam-se à uma longa lista de ataques a civis, e instalações não militares, por toda a Ucrânia”, disse ele. A embaixadora itinerante para a justiça criminal global dos EUA, Beth Van Schaack, dirigirá o esforço do Departamento de Estado, disse Blinken, para “ajudar nos esforços internacionais para investigar crimes de guerra e responsabilizar aqueles que os impetraram.”

    Esta hipocrisia coletiva, baseada nas mentiras que contamos a nós mesmos sobre nós mesmos, é acompanhada por massivos embarques de armas para a Ucrânia. Fomentar guerras por procuração era uma especialidade da Guerra Fria. Nós voltamos ao mesmo roteiro. Se os ucranianos são heróicos lutadores da resistência, o que dizer dos iraquianos e afegãos que lutaram tão valentemente e tão obstinadamente contra uma potência estrangeira que foi tão selvagem quanto a Rússia? Por que estes últimos não foram idolatrados? Por que não se impuseram sanções sobre os Estados Unidos? Por que aqueles que defenderam os seus países de invasões estrangeiras no Oriente Médio – incluindo os palestinos sob ocupação israelense – também não receberam milhares de armas contra tanques, armas contra blindados, armas antiaéreas, helicópteros, drones Switchblade ou “Kamikaze”, centenas de sistemas antiaéreos Stinger, mísseis antitanques Javelin, metralhadoras e milhões de rodadas de munição? Por que o Congresso dos EUA não se apressou em aprovar para estes últimos um pacote de US$ 1,3 bilhão para fornecer assistência militar e humanitária em adição aos US$ 1,2 bilhão já fornecidos às forças militares ucranianas?

    Pois, nós sabemos por quê. Os nossos crimes de guerra não contam, nem tampouco contam as vítimas dos nossos crimes de guerra. E esta hipocrisia torna impossível um mundo baseado em regras, um mundo que cumpra a lei internacional.

    Esta hipocrisia não é nova. Não há diferença moral alguma entre o bombardeio de saturação que os EUA executaram sobre populações civis desde a Segunda Guerra Mundial – incluindo o Vietname e o Iraque – e alvejar centros urbanos na Ucrânia pela Rússia, ou os ataques de 11/09/2001 no World Trade Center (Torres Gêmeas). Morte em massa e bolas de fogo nos céus de uma cidade são os cartões de visita que deixamos pelo planeta inteiro há décadas. Nossos adversários fazem o mesmo.

    Mirar deliberadamente em civis – seja em Bagdá, Kiev, Gaza ou New York City – são todos crimes de guerra. A matança de pelo menos 112 crianças ucranianas (https://thewire.in/world/ukraines-prosecutor-office-says-112-children-killed-in-war) até 19 de março é uma atrocidade, mas também o é o assassinato de 551 crianças palestinas durante o ataque militar de Israel em Gaza em 2014. Também o é a matança de 230 mil pessoas nos últimos sete anos no Iêmen, com as campanhas de bombardeio e bloqueios sauditas que resultaram na fome em massa e na epidemia de cólera. Onde estavam os pedidos de “no-fly zone” (guarda-chuva aéreo) sobre Gaza e o Iêmen? Imagine quantas vidas poderiam ter sido salvas?

    Todos os crimes de guerra demandam o mesmo julgamento moral e responsabilização. Porém isto não é feito – porque temos um conjunto de padrões para europeus brancos e um outro para as pessoas não-brancas do mundo todo. As mídias ocidentais transformaram em heróis os voluntários europeus e estadunidenses aglomerando-se para lutar na Ucrânia, enquanto os muçulmanos no Ocidente que se engajam em grupos de resistência lutando contra ocupantes estrangeiros no Oriente Médio são criminalizados como terroristas. Putin tem sido cruel com a imprensa. Mas também assim age o nosso aliado de facto, o governante saudita Mohammed bin Salman, que ordenou o assassinato e esquartejamento do meu amigo e colega Jamal Khashoggi, e que supervisionou neste mês a execução em massa de 81 pessoas condenadas por ofensas criminais. A cobertura jornalística da Ucrânia – especialmente depois de eu ter reportado durante sete anos sobre os ataques assassinos de Israel contra os palestinos – é um outro exemplo da divisória racista que define a maior parte das mídias ocidentais.

    A Segunda Guerra Mundial começou, pelo menos da parte dos aliados, com a compreensão de que o emprego de armas industriais contra populações civis era um crime de guerra. Porém, depois de 18 meses desde o início da guerra, os alemães, os estadunidenses e os britânicos estavam bombardeando cidades implacavelmente. Até o fim da guerra, um quinto das casas alemãs haviam sido destruídas. Um milhão de civis alemães foram mortos ou feridos nos bombardeios. Sete milhões e meio de alemães perderam as suas moradias. A tática de bombardeios de saturação, ou bombardeio de área - que incluíam o bombardeio incendiário de Dresden, Hamburgo e Tokio, os quais mataram mais de 90.000 civis japoneses em Tokio e deixaram um milhão de pessoas sem moradia, e o despejo de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki que mataram entre 129.000 e 226.000 pessoas, a maioria dos quais civis – tiveram como propósito único desmoralizar a população através das mortes em massa e do terror. Cidades como Leningrado, Stalingrado, Varsóvia, Coventry, Royan, Nanjing e Rotterdam foram obliteradas.

    Isto faz dos arquitetos da guerra moderna – todos eles – criminosos de guerra.

    Em todas as guerras desde então, civis têm sido considerados como alvos legítimos. No verão de 1965, o então Secretário de Defesa dos EUA, Robert McNamara, chamou de um meio efetivo de comunicação com o governo de Hanói os ataques aéreos ao norte de Hanói que deixaram milhares de mortos. Seis anos antes de morrer, diferentemente da maioria dos criminosos de guerra, McNamara teve a capacidade de autorrefletir. Entrevistado no documentário “The Fog of War” ('Sob a Névoa da Guerra', 2003), ele se declarou arrependido não só sobre alvejar civis vietnamitas, mas também sobre o alvejamento aéreo de civis no Japão durante a Segunda Guerra Mundial, supervisionado pelo General da Força Aérea dos EUA Curtis LeMay.

    “LeMay disse que se nós (os EUA) tivéssemos perdido a guerra, seríamos todos julgados como criminosos de guerra”, disse McNamara no filme  (https://www.youtube.com/watch?v=fDT8NdyoWfI – ao final do vídeo). “E eu penso que ele tem razão... LeMay reconheceu que o que ele estava fazendo seria considerado como imoral, caso o seu lado tivesse perdido. Mas o que se torna imoral se você perde e não é imoral se você vence?”

    Como chefe do Comando Aéreo Estratégico dos EUA mais tarde, durante a Guerra da Coréia, LeMay iria adiante, despejando toneladas de napalm e bombas incendiárias sobre alvos civis na Coréia – as quais, pelas próprias estimativas dele, mataram 20% da população num período de três anos.

    A matança industrial define a guerra moderna. Esta consiste em matança em massa impessoal. É administrada por vastas estruturas burocráticas que perpetuam a matança por meses e anos. A mesma é sustentada por uma indústria pesada que produz um fluxo contínuo de armas, munições, tanques, aviões, helicópteros, navios de guerra, submarinos, mísseis e suprimentos produzidos em massa – junto com transportes mecanizados que levam ao campo de batalha tropas e armamentos por trens, navios, aviões e caminhões de carga. Ela mobiliza para a guerra total estruturas industriais, governamentais e organizacionais. Ela centraliza sistemas de informação e controle interno. Ela é racionalizada para o público por especialistas e peritos em comunicação oriundos das estruturas militares, junto com acadêmicos maleáveis e as mídias.

    A guerra industrial destrói os sistemas de valores existentes que protegem e nutrem a vida, substituindo-os pelo medo, o ódio e a desumanização daqueles que o sistema de guerra faz crer que mereçam ser exterminados. Ela é movida por emoções e não pela verdade, nem pelos fatos. Ela oblitera a nuance, substituindo-a por um universo binário infantil de “nós” contra “eles”. Ela move para o subsolo narrativas, ideias e valores concorrentes e vilifica todos aqueles que não falam o jargão nacional que substitui a discussão e o debate civis. Ela é elogiada como um exemplo da marcha inevitável do progresso humano, quando, na realidade, ela nos traz cada vez mais perto da obliteração em massa num holocausto nuclear. Ela zomba do conceito de heroísmo individual, apesar dos febris esforços dos militares e das mídias de massa para vender este mito aos inocentes recrutas jovens e a um público crédulo. Ela é o Frankenstein das sociedades industrializadas. Como Alfred Kazin advertiu, a guerra é “o propósito último da sociedade tecnológica”. O nosso verdadeiro inimigo está dentro de nós.

    Do ponto de vista histórico, aqueles que são processados por crimes de guerra – sejam da hierarquia nazista em Nuremberg ou os líderes da Libéria, do Chad, da Sérvia e da Bósnia – são julgados porque perderam a guerra e porque são adversários dos Estados Unidos.

    Não haverá julgamento dos governantes da Arábia Saudita pelos crimes cometidos no Iêmen, nem para os militares e lideranças políticas dos EUA pelos crimes de guerra que perpetraram no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Líbia, nem por uma geração anterior no Vietnam, no Camboja e no Laos. As atrocidades que cometemos – como em My Lai, onde 500 civis desarmados foram fuzilados por soldados estadunidenses – que se tornam públicas são tratadas por encontrar um bode expiatório, geralmente um oficial de baixa patente a quem é dada uma sentença simbólica. O Tenente William Casey cumpriu três anos de prisão domiciliar pelas matanças de My Lai. Onze soldados dos EUA – nenhum dos quais oficiais – foram condenados por tortura na prisão de Abu Ghraib, no Iraque. Mas os arquitetos e mandantes das nossas carnificinas – incluindo Franklin Roosevelt, Winston Churchill, Gen. Curtis LeMay, Harry S. Truman, Richard Nixon, Henry Kissinger, Lyndon Johnson, Gen. William Westmoreland, George W. Bush, Gen. David Petraeus, Barack Obama e  Joe Biden jamais são responsabilizados. Eles deixam o poder para tornar-se venerados anciãos estadistas. 

    A matança em massa da guerra industrial, a falha em responsabilizar-nos, de ver as nossas próprias faces nos criminosos de guerra que condenamos, terão consequências sinistras. O escritor e sobrevivente do Holocausto Primo Levi compreendeu que a aniquilação da humanidade de outros é um pré-requisito para a aniquilação física deles. Nos tornamos cativos das nossas máquinas de morte industrial. Políticos e generais brandem a sua fúria destrutiva como se fossem brinquedos. Aqueles que caluniam esta loucura, que exigem o estado de direito, são atacados e condenados. Estes sistemas industriais de armas são os nossos ídolos modernos. Nós adoramos a sua proeza mortal. Porém a Bíblia nos diz que todos os ídolos começam por exigir o sacrifício de outros e acabam terminando em um auto-sacrifício apocalíptico. 

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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