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    Boaventura de Sousa Santos

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    A missanga democrática

    Os povos ditos primitivos atribuíam às missangas que lhes eram oferecidas um valor muito superior ao que elas tinham para os europeus

    Uma foto danificada de Bashar al-Assad da Síria está no chão dentro do aeroporto internacional de Qamishli, depois que grupos armados sírios anunciaram que haviam derrubado Bashar al-Assad da Síria, em Qamishli, Síria, 9 de dezembro (Foto: REUTERS/Orhan Qereman)

    Karl Jaspers escreveu um dia que o grande público fazia uso dos resultados da ciência como os povos primitivos faziam uso das missangas que os colonizadores europeus lhes traziam. Claro que se eu pudesse conversar com Jaspers, dir-lhe-ia que o que ele entendia por povos primitivos eram povos que foram primitivizados por outros povos com poder para designar as suas diferenças em relação aos povos que encontravam como superiores e merecedoras da designação “civilizados”, os quais obviamente contrapunham à barbárie primitiva. Em suma, do que ele falava era de colonizadores e colonizados. Mas o que me interessa é o que ele queria dizer: que os povos ditos primitivos atribuíam às missangas que lhes eram oferecidas um valor muito superior ou lhes davam um uso muito diferente daquele que verdadeiramente elas tinham para os europeus. Pergunto-me se hoje os povos do mundo não estão perante a democracia que os grandes países democráticos lhes oferecem numa posição semelhante à dos povos ditos primitivos perante as missangas europeias. 

    As chamadas revoluções coloridas que têm ocorrido no mundo desde o início do colapso da União Soviética têm sido promovidas pelo imperialismo ocidental (EUA e União Europeia) na Europa Oriental, nos Balcãs, no Médio Oriente, na África e na Ásia oferecem aos povos uma missanga chamada democracia. É um elixir extraordinário, com qualidades mágicas, capaz de resolver todos os problemas que esses povos tiveram até então, sobretudo os que estiveram sujeitos a regimes políticos hostis aos interesses do imperialismo ocidental. A missanga democrática tem desempenhado bem esse papel e, por essa razão, os levantamentos revolucionários, apesar de teleguiados do exterior, capitalizam de tal modo nas dificuldades vividas pelas populações e nas suas justas aspirações de uma vida melhor que surgem como movimentos credivelmente espontâneos. E, muitas vezes, a componente espontânea é real e mesmo decisiva. 

    Acontece que o que vem depois não é democracia, é sempre mais missanga democrática. São momentos de brilho internacional, de genuíno júbilo popular, aproveitado pelos interesses imperiais para promover a instalação de governos pró-ocidentais que permitam o que o colonialismo e o imperialismo sempre almejaram: o acesso livre e a baixo custo aos recursos naturais e o enfraquecimento de inimigos reais ou potenciais. Logo a seguir vêm as consequências que o povo em festa não poderia imaginar. As consequências têm variado de país para país: rivalidades internas sem solução democrática, colapso das instituições, frustrações populares, caos social, saques, o empobrecimento geral, guerra civil, secessão, exílio. E quase sempre, a emergência de grupos de oligarcas que se apropriam da riqueza restante, o verniz do reconhecimento internacional mesmo que parcial, e o controle mais apertado e a apropriação mais violenta dos recursos naturais. O que nunca vem é a melhoria das condições de vida das populações e a libertação dos povos de influências externas de modo a decidirem por si os seus destinos e, se assim o entenderem, o formato da sua democracia.  Vem tudo isto a propósito do repentino colapso do regime sírio de Bashar Hafez al-Assad. O espetáculo da missanga democrática por parte dos media internacionais foi impressionante e, de facto, a missanga democrática foi sendo abundantemente distribuída um pouco por todo o país no período imediato à queda do regime, enquanto Israel obliterava todas as infraestruturas militares e estratégicas do país, anexava os Montes Golan e prosseguia o genocídio do povo de Gaza. Já ninguém se lembrava das mesmas cenas de destruição das estátuas de Saddam Hussein em 2003 e da encenação mediática que delas se fez. E a ninguém ocorreu o que aconteceu depois –  no Iraque, na Líbia, no Sudão, na Somália, no Egipto, na Tunísia, etc. E poucos terão visto a relação de tudo isto com a guerra na Ucrânia, com os BRICS+ (Brasil, Rússia, China, África do Sul e os países que se querem juntar ao grupo), com os CRINKS (China, Rússia, Irão e Coreia do Norte), com a rivalidade maior com a China e, finalmente, com a próxima guerra mundial. Foi um dejà vu nunca visto, passe a contradição.

     Tudo isto foi feito em nome da democracia e promovido por países democráticos. No caso da Síria, Israel, EUA e Turquia. Estes tempos de crise profunda são favoráveis à reflexão, não só sobre a missanga democrática, como também sobre muitas outras missangas que os media hegemónicos vão distribuindo a populações primitivizadas do Ocidente, como sejam, a ordem internacional assente em regras, a contradição entre países democráticos e países autocráticos, Estados fortes e Estados frágeis, a paz universalmente desejada apesar dos Estados párias que querem a guerra, o genocídio de Gaza que não é propiamente um genocídio, o sionismo como máxima expressão do judaísmo.  

    Neste texto, limito-me a responder a uma pergunta: porque é que a democracia se transformou no instrumento privilegiado para destruir as possibilidades de democracia? A resposta superficial seria a de que os processos de democratização não foram democráticos. Seria uma resposta superficial, porque as democracias nasceram sempre de processos revolucionários, por vezes bastantes violentos, de que são exemplo os processos democráticos matriciais da Inglaterra, da França e dos EUA. A reflexão mais profunda tem a ver com abalos tectónicos na teoria democrática que os sismógrafos da ciência política não detectam. 

    O primeiro abalo diz respeito à redução da democracia à democracia liberal e à redução da soberania popular à ideia de representação. Claro que nenhuma representação é perfeita, tal como a representação do círculo não é redonda ou a representação da loucura não é louca. Mas a imperfeição da representação democrática agravou-se profunda e irreversivelmente a partir da década de 1980 quando o neoliberalismo se transformou na versão hegemónica do capitalismo e a mercantilização da vida económica se converteu na mercantilização da vida em todas as suas dimensões. As democracias foram-se convertendo em plutocracias e os EUA são o exemplo paradigmático desta transformação. Como escrevia Joseph Stiglitz em 2011, “Of the 1%, by the 1%, for the 1%” (Vanity Fair, Maio, 2011). O segundo abalo tectónico teve lugar com a contaminação religiosa da política democrática. Na raiz da democracia está o secularismo, a César o que é de César, a Deus o que é de Deus, segundo o ditado bíblico. Sabemos que o secularismo nunca foi total e que a democracia não desdenhou ser considerada uma nova religião, tal como pretenderam os positivistas. Mas o abalo de que falo é o da penetração qualitativamente diferente da religião política nos processos democráticos. Tratou-se da conversão da teocracia em política não religiosa, em política tout court. Duas das democracias com intervenção na Síria – Israel e Turquia – são democracias em transição para teocracias. São democracias teocráticas. E, nesse sentido, é mais aparente que real o estarem a festejar a entrega do poder sírio a islamistas radicais. Um Estado democrático que pretende converter-se em Estado judaico e um Estado democrático que pretende converter-se em Estado islâmico não deixa de ser um familiar de um Estado islâmico radical. Trata-se de uma negociação entre teocracias.

    E a democracia? A democracia é a missanga da democracia para obter vantagens geoestratégicas, acesso a recursos naturais e neutralização de inimigos ou rivais. Aqui reside o terceiro abalo tectónico na teoria democrática. É que a missanga democrática deixou de ser um objecto de exportação e está a converter-se num objecto de uso interno, seja ele sob a forma da plutocracia ou da teocracia, ou ainda sob a forma de uma combinação entre elas, a mais perniciosa e fatal de todas. Os povos ditos primitivos descobriram um dia que a missanga era mesmo missanga e só missanga, e libertaram-se do jugo colonial. É urgente que os povos ditos civilizados do Ocidente aprendam com eles.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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