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    Chris Hedges

    Jornalista vencedor do Pulitzer Prize (maior prêmio do jornalismo nos EUA), foi correspondente estrangeiro do New York Times, trabalhou para o The Dallas Morning News, The Christian Science Monitor e NPR.

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    A morte por procuração da Ucrânia

    A Ucrânia é um peão para a intenção dos militaristas de degradar a Rússia e, em última instância, a China em uma busca para assegurar a hegemonia dos EUA

    Proxyboy — arte de Mr. Fish (Foto: Mr.Fish)

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    Originalmente publicado no Substack do autor em 11/2/23. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247

    Há muitas maneiras de um estado projetar poder e enfraquecer adversários, mas as guerras por procuração são as mais cínicas. Guerras por procuração devoram os países que elas simulam defender. Elas aliciam nações ou insurgentes a lutar por metas geopolíticas que, em última análise, não são do seu interesse. A guerra na Ucrânia tem pouco a ver com a liberdade ucraniana e muito a ver com degradar as forças militares russas e enfraquecer a aderência de Vladimir Putin ao poder. E quando a Ucrânia se encaminha para a derrota, ou quando a guerra chega a um impasse, a Ucrânia será sacrificada, como muitos outros estados, naquilo que um dos membros fundadores da CIA, Miles Copeland Jr., se referia como o “Jogo das Nações” e “a amoralidade da política de poder”.

    Eu cobri guerras por procuração nas minhas duas décadas como correspondente estrangeiro, incluindo na América Central, onde os EUA armaram regimes em El Salvador, na Guatemala, e os insurgentes Contras que tentavam derrubar o governo sandinista na Nicarágua. Reportei sobre a insurgência no Punjab, uma guerra por procuração fomentada pelo Paquistão. Eu cobri os curdos no norte do Iraque, apoiados e depois traídos mais de uma vez pelo Irã e Washington. Durante o meu tempo no Oriente Médio, o Iraque proveu armas e apoio aos Mujaheddin-e-Khalq (MEK) para desestabilizar o Irã. Quando eu estava na antiga Iugoslávia, Belgrado pensou que, ao armar os sérvios e os croatas bósnios, ela poderia absorver a Bósnia e partes da Croácia numa grande Sérvia. 

    As guerras por procuração são notoriamente difíceis de controlar, especialmente quando as aspirações daqueles que fazem o combate e aqueles que enviam armas divergem. Elas também têm o mau hábito de atrair patrocinadores de guerras por procuração para participarem diretamente no conflito — como aconteceu com os EUA no Vietnã e com Israel no Líbano. Os exércitos por procuração recebem armamentos com pouca responsabilização, quantidades significativas dos quais acabam no mercado negro ou nas mãos de senhores da guerra, ou de terroristas. No ano passado, a CBS News reportou que cerca de 30% das armas enviadas à Ucrânia chegaram às frentes de batalha; esta foi uma reportagem que eles escolheram recolher parcialmente, sob pressão pesada de Kiev e de Washington. O desvio difundido de equipamentos militares e médicos doados para o mercado negro na Ucrânia também foi documentado pelo jornalista estadunidense Lindsey Snell. Armas em zonas de guerra são commodities lucrativas. Sempre houve abundância para venda nas guerras que cobri.

    Os senhores da guerra, os gângsteres e os bandidos — a Ucrânia tem disso considerada há muito tempo como um dos países mais corruptos da Europa — são transformados pelos estados patrocinadores em heroicos combatentes pela liberdade. O apoio para aqueles que combatem nestas guerras por procuração é celebrado como a nossa [dos EUA] suposta virtude nacional, especialmente sedutora após duas décadas de fiascos militares no Oriente Médio. Joe Biden, que tem tristes números nas pesquisas de opinião pública, tem a intenção de concorrer a um segundo mandato como um presidente “em tempo de guerra” que apoia a Ucrânia — para quem os EUA já se empenhou com US$ 113 bilhões em assistência militar, econômica e humanitária.

    Quando a Rússia invadiu a Ucrânia, “o mundo todo enfrentou um teste de todos os tempos”, disse Biden após uma visita-relâmpago a Kiev. “A Europa estava sendo testada. Os EUA estavam sendo testados. A OTAN estava sendo testada. Todas as democracias estavam sendo testadas”.

    Eu ouvi sentimentos similares sendo expressos para justificar outras guerras por procuração.

    “Eles são nossos irmãos, estes lutadores pela liberdade, e nós lhes devemos a nossa ajuda”, disse Ronald Reagan sobre os Contras, que saquearam, estupraram e massacraram no seu caminho na Nicarágua. “Eles são os equivalentes morais dos nossos Pais Fundadores [dos EUA] e dos bravos homens e mulheres da Resistência Francesa”, adicionou Reagan. “Nós não podemos abandoná-los, porque a luta aqui não é da direita contra a esquerda, ela é do correto contra o errado”.

    “Eu quero ouvi-lo dizer que nós vamos armar o Exército Sírio Livre”, disse John McCain sobre o presidente Donald Trump. “Vamos nos dedicar a remover Bashar al-Assad. Nós faremos os russos pagarem um preço pelo seu engajamento. Todos os participantes aqui terão que pagar uma penalidade e os EUA estarão ao lado do povo que luta pela liberdade”.

    Aqueles festejados como heróis da resistência, como presidente Volodymyr Zelensky ou o presidente Hamid Karzai no Afeganistão, frequentemente são problemáticos, especialmente quando os seus egos e as suas contas bancárias se inflam. A enchente de louvores efusivos direcionados publicamente aos que fazem as lutas por procuração pelos seus patrocinadores raramente correspondem ao que eles dizem sobre eles em privado. Nas conversações de paz de Dayton, nas quais o presidente sérvio Slobodan Milosevic vendeu os líderes dos sérvios e croatas bósnios, ele disse sobre os mesmos: “Eles não são meus amigos. Eles não são meus colegas… Eles são uns merdas”.

    “Dinheiro sujo por todas as partes”, escreveu o Washington Post após obter um relatório interno produzido pelo Escritório do Inspetor-Geral Especial para a Reconstrução do Afeganistão.

    “O maior banco do Afeganistão se liquidificou em uma latrina de fraudes. Os viajantes arrastavam malas carregadas com US$ 1 milhão, ou mais, em voos saindo de Cabul. Mansões conhecidas como ‘palácios de papoulas’ surgiram dos escombros para alojar chefões do ópio. O presidente Hamid Karzai venceu a sua reeleição depois que seus comparsas estufaram milhares de urnas. Mais tarde, ele admitiu que a CIA havia entregue sacos de dinheiro em espécie ao seu escritório durante anos, chamando isso de ‘nada fora do comum’”.

    “Em público, enquanto o presidente Obama escalava a guerra e o Congresso aprovava bilhões em dólares adicionais para apoiar, o comandante-em-chefe e os legisladores prometeram reprimir a corrupção e fazer os trapaceiros afegãos responderem pelos seus atos”, o jornal reportou. “Na verdade, as autoridades estadunidenses recuaram, olharam para outro lado e deixaram a roubalheira se tornar mais entrincheirada que nunca, segundo um tesouro de entrevistas confidenciais de governo obtidas pelo The Washington Post”. 

    Aqueles que eram celebrados como os baluartes contra a barbárie enquanto as armas estavam chegando a eles, são esquecidos uma vez que o conflito termina, como no Afeganistão e no Iraque. Os antigos combatentes por procuração tinham que fugir do país ou sofrerem as vinganças daqueles contra quem eles haviam lutado — como aconteceu com os membros da tribo Hmong que foram abandonados no Laos e os sul-vietnamitas. Os antigos patrocinadores, uma vez generosos com a ajuda militar, ignoram apelos desesperados pela assistência econômica e humanitária — como os desalojados pela guerra, ficam famintos e morrem por falta de cuidados médicos. Pela segunda vez, o Afeganistão é a imagem desta indiferença imperial.

    O colapso da sociedade civil gera violência sectária e extremismo, muito disso hostil aos interesses daqueles que fomentam as guerras por procuração. As milícias por procuração de Israel no Líbano, juntamente com as suas intervenções militares de 1978 e 1982, foram projetadas para expulsar a Organização pela Libertação da Palestina (OLP) do país. Este objetivo foi alcançado. Mas a remoção da OLP do Líbano fez surgir o Hezbollah, um adversário muito mais militante e eficaz, juntamente com a dominação do Líbano pela Síria. Em setembro de 1982, em três dias, o Partido Kataeb Libanês, mais comumente conhecido como as Falanges — apoiados pelas forças militares israelenses — massacraram entre 2.000 e 3.500 refugiados palestinos e civis libaneses nos campos de refugiados de Sabra e Shatila. Isso produziu a condenação internacional e a agitação política dentro de Israel. Os críticos chamaram o conflito prolongado de “Lebaname”, juntando as palavras ‘Vietname’ e ‘Líbano’. O filme israelense “Waltz with Bashir” documenta a depravação e a matança arbitrária de milhares de civis realizada por Israel e os seus agentes por procuração na guerra no Líbano.

    As guerras por procuração, como Chalmers Johnson assinalou, engendram contragolpes não intencionados. O apoio aos mujahedeen que lutaram contra os soviéticos no Afeganistão — que incluiu armar grupos como aqueles liderados por Osama bin Laden — fez surgir os Talibãs e o al-Qaeda. Isto também espalhou o jihadismo reacionário por todo o mundo muçulmano; aumentou os ataques terroristas contra alvos ocidentais que culminaram nos ataques de 11 de setembro de 2001; e alimentaram duas décadas de fiascos militares liderados pelos EUA no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Somália, na Líbia e no Iêmen.

    Caso a Rússia prevaleça na Ucrânia, caso Putin não seja removido do poder, os EUA terão não só cimentado no lugar uma potente aliança entre a Rússia e a China, mas terão garantido um antagonismo contra a Rússia que voltará para nos assombrar. A enxurrada de bilhões de dólares de armamentos na Ucrânia, o uso da inteligência estadunidense para matar generais russos e afundar o encouraçado Moskva, para explodir os gasodutos Nord Stream e as mais de 2.500 sanções dos EUA tendo como alvo a Rússia, não serão esquecidos por Moscou. 

    “Em um certo sentido, um contragolpe é simplesmente outra maneira de dizer que a nação colhe o que plantou”, escreve Johnson. “Apesar de as pessoas geralmente saberem o que semearam, a nossa experiência de contragolpe é raramente imaginada em tais termos, porque tanto do que os gerentes do império estadunidense semearam foi mantido em segredo”.

    Aqueles apoiados em guerras por procuração, incluindo os ucranianos, frequentemente têm poucas chances de alcançar uma vitória. Armamentos sofisticados como os tanques M1 Abrams são na maioria inúteis caso aqueles que os operam não tenham passado meses e anos sendo treinados. Antes da invasão israelense no Líbano em junho de 1982, o bloco soviético proveu os combatentes palestinos com armamentos pesados, incluindo tanques, mísseis e artilharia anti-aérea. A falta de treinamento tornou ineficazes estes armamentos contra o poder aéreo, a artilharia e as unidades mecanizadas israelenses.

    Os EUA sabem que o tempo está acabando para a Ucrânia. Eles sabem que as armas de alta tecnologia não serão dominadas a tempo para mitigar uma ofensiva russa contínua. O Secretário de Defesa dos EUA, Lloyd Austin, advertiu em janeiro que a Ucrânia tem “uma janela de oportunidade aqui, entre agora e a primavera”. “Isto não é muito tempo”, ele adicionou.

    No entanto, a vitória não é o ponto. O ponto é a destruição máxima. Mesmo que a Ucrânia derrotada seja forçada a negociar com a Rússia e conceder território por paz, bem como aceitar uma posição como nação neutra, Washington terá alcançado a sua meta primária de enfraquecer a capacidade militar da Rússia e isolar Putin da Europa.

    Aqueles que montam guerras por procuração são cegos por desejos ilusórios. Havia pouco apoio para os Contras na Nicarágua ou para o MEK no Irã. O armamento dos rebeldes “moderados” na Síria viu armas fluindo para as mãos de jihadistas reacionários.

    A conclusão de uma guerra por procuração geralmente vê a nação ou grupo que está lutando em prol de um estado patrocinador ser traído. Em 1972, o governo Nixon proveu milhões de dólares em armamentos e munições para os rebeldes curdos no norte do Iraque para enfraquecer o governo iraquiano, o qual naquela época era visto como sendo próximo demais da União Soviética. Ninguém, muito menos os EUA e o Irã, que entregaram as armas aos combatentes curdos, queria que os curdos criassem um estado próprio. O Iraque e o Irã assinaram em 1975 o Acordo de Argel, no qual os dois países resolveram as disputas ao longo da sua fronteira comum. O acordo também terminou com o apoio militar para os curdos.

    As forças militares do Iraque logo lançaram uma campanha impiedosa de limpeza étnica no norte do Iraque. Milhares de curdos, incluindo mulheres e crianças, foram “desaparecidos” ou mortos. Vilarejos curdos foram dinamitados até se tornarem escombros. A condição desesperada dos curdos foi ignorada porque, como disse Henry Kissinger naquela época, “as ações clandestinas não devem ser confundidas com trabalho missionário”.

    O governo islâmico em Teerã retomou o auxílio militar para os curdos durante a guerra entre o Irã e o Iraque, de 1980 a 1988. Em 16 de março de 1988, o residente iraquiano Saddam Hussein despejou gás-mostarda e os agentes de nervos sarin, tabun e VX na cidade curda de Halabja. Umas 5.000 pessoas morreram em minutos e até 10.000 foram feridas. O governo Reagan, que apoiava o Iraque, minimizou os crimes de guerra cometidos contra os seus antigos aliados curdos.

    A reaproximação do presidente Richard Nixon à China, num outro exemplo, incluiu o cancelamento da assistência clandestina aos rebeldes tibetanos.

    A traição é o ato final de quase todas as guerras por procuração.

    O armamento da Ucrânia não é um trabalho de missionário. Isto nada tem a ver com liberdade. Trata-se de enfraquecer a Rússia. Tire a Rússia da equação e haveria pouco apoio tangível para a Ucrânia. Há outros povos ocupados, incluindo os palestinos, que sofreram tão brutalmente e por muito mais tempo que os ucranianos. Mas a OTAN não visa armar os palestinos para lutarem contra os seus ocupantes israelenses, nem de considerá-los como heroicos combatentes pela liberdade. O nosso amor pela liberdade não se estende aos palestinos ou ao povo do Iêmen que está sendo bombardeado atualmente com armamentos britânicos e estadunidenses, nem aos curdos, yazidis e árabes que resistem à Turquia, um membro da OTAN de longa data, na sua ocupação e guerra de drones em todo o norte e o leste da Síria. O nosso amor pela liberdade só se estende a pessoas que servem o nosso “interesse nacional”.

    Haverá um tempo em que os ucranianos, como os curdos, se tornarão descartáveis. Eles desaparecerão, como muitos antes deles desapareceram, do nosso discurso nacional e das nossas consciências. Eles nutrirão por gerações a sua traição e o seu sofrimento. O império estadunidense seguirá adiante, usando outros, talvez o povo “heroico” de Taiwan, para fazer avançar a sua busca fútil por hegemonia mundial. A China é o grande prêmio para os nossos Doutores Strangeloves. Eles empilharão ainda mais cadáveres e flertarão com a guerra nuclear a fim de cercear o crescente poder econômico e militar da China. Este é um jogo antigo e previsível. Ele deixa no seu rastro nações em ruínas e milhões de pessoas mortas e desalojadas. Ele alimenta a soberba e a autoilusão dos mandarins em Washington que se recusam a aceitar a emergência de um mundo multipolar. Se permanecer não controlado, este “jogo das nações” pode acabar matando a todos nós.

    * Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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